
Ferramenta que transforma a maneira de ver o mundo, a arte é capaz de quebrar barreiras, traduzir sentimentos e expressar emoções. Para além de um trabalho ou objeto de fuga da realidade, a experiência artística é também um recurso terapêutico. O Correio conheceu histórias de artistas que, com Transtorno do Espectro Autista (TEA), são provas de que diagnósticos e estereótipos não definem ninguém.
Dom de infância
Falante e sorridente. Nícolas Xavier da Silva transparece a personalidade comunicativa de longe. Diagnosticado com TEA, nível 1 de suporte, e altas habilidades, é, aos 17 anos, um escritor orgulhoso de seu trabalho. Lançou o livro Astro Guardiões: A Busca das Dez Fontes, uma obra de fantasia e ficção científica, em novembro de 2023.
O contato com a literatura ocorreu quando tinha 10 anos, ganhou um livro e decidiu criar uma continuação. "Pensei em comercializar, mas seria como roubar a ideia de outro artista. Então, tentei criar algo original", lembrou Nícolas. "Pouco tempo depois, escrevi o Gameverse, uma história com personagens de videogame lutando contra seres desconhecidos. Não publiquei porque a ideia usava personagens famosos, então teria a questão dos direitos autorais." O desejo de dedicar-se a uma obra para publicação surgiu na pandemia, e o livro foi lançado alguns anos depois.
Nícolas vive no Incra 9 com os pais, Lidiane Xavier, 43, e Sansão da Silva, 51, além da irmã, Sofia Xavier, 12. Ao falar do trabalho do jovem, todos transparecem o orgulho que sentem. Os pais, que inicialmente não levaram a ideia a sério, contam que a literatura tornou-se a terapia mais eficaz dos tratamentos já experimentados. O autor adiantou à reportagem que outros projetos estão por vir.
Como um remédio
No caso da artesã Karoline Queiroz Rocha Moura, 28 anos, o diagnóstico de TEA, nível de suporte 1, veio somente há dois anos. O apreço pela arte, porém, nasceu na infância. "Sempre gostei de pintar e fazer esculturas. A arte impacta demais o meu dia a dia. Quando chego em casa, cansada do trabalho, sempre vou escolher fazer arte, porque é isso que me regula e faz eu me sentir bem", aponta.
Para Karoline, a autocobrança, impulsionada pelo transtorno, é uma das maiores barreiras enquanto artesã e artista com TEA. "Se eu achar que não está perfeito, não adianta. Já me desfiz de obras por não estar em acordo com o que idealizei. Dependo do meu hiperfoco para produzir, por mais que eu queira ou que tenha um prazo para entregar o projeto, não consigo se não estiver hiperfocada", explica.
A artesã destaca que a arte ajuda na comunicação. "Tenho dificuldade em expressar meus sentimentos e falar às pessoas o que elas significam para mim. É produzindo esculturas que consigo me expressar. Se estou numa fase depressiva, praticamente não faço arte, e isso me deixa muito introspectiva", confessa.
O poder da música
Lorenzo Barreto Graça Gomes, 21 anos, é nível 2 de suporte no TEA. À reportagem, recebida pelo jovem com largos sorrisos, Aurea Daia Barreto, 52, conta que, com um 1 ano, o filho não falava, mas cantava de forma extremamente afinada, o que chamava sua atenção. "O diagnóstico veio porque ele não tinha comunicação. Comecei a estudar e desconfiei do autismo, mas ele sempre teve o diferencial de ser muito musical. Na verdade, Lorenzo nasceu um músico, mas eu não tinha noção do quanto."
Logo descobriu que o menino tem ouvido absoluto — capacidade de identificar uma nota musical sem a necessidade de uma referência. Então, o matriculou na musicoterapia e passou a incentivar o "dom". Hoje, Lorenzo é multi-instrumentista. Toca baixo elétrico, berimbau, bongô, bateria, guitarra, pandeiro, piano, sanfona, tambor, tamborim, tombadora, violão e ukulele.
Além da ligação com a música, é marcado pela presença de câmeras. Desde que entrou para a musicoterapia, aos 4 anos, teve suas sessões gravadas pelo cineasta e músico André Luiz Oliveira, que transformou os registros em um documentário. Meu amigo Lorenzo, lançado em 2 de abril do ano passado, mostra a relação de cumplicidade ao longo de 15 anos entre Lorenzo e André. O jovem tem orgulho do documentário e ama cantar as músicas do filme. Segundo a mãe, há previsão para que uma segunda parte do documentário seja lançada.
Timeout
A banda Timeout também é um bom exemplo de talento na música. Nina Pinheiro de Almeida, 22 anos, moradora da Asa Norte, tecladista e vocalista da banda, conta que quando era pequena sempre via os parentes tocando instrumentos musicais e amava o som do piano. Em 2014, começou a ter aulas para aprender a tocar o instrumento.
O vocalista da banda, João Gabriel Melo, 20, morador da Asa Norte, teve seu primeiro contato com a música na barriga da mãe. "Eu ia trabalhar ouvindo música (alta) durante toda minha gestação. Depois que ele nasceu, sempre sorria quando eu tocava as músicas que ele ouvia na minha barriga", conta Flávia, mãe de João Gabriel .
João tem audição apuradíssima para música, mas não costuma ouvi-las enquanto faz outras atividades. Prefere apreciar com calma. Muitas vezes, ao longo de seu desenvolvimento, utilizou letras de músicas para se comunicar com a mãe .
"Por exemplo, ouvíamos muito a música Espatódea, do Nando Reis, e eu substituía o nome da Zoé (filha do Nando reis) pelo nome do João. Depois do trecho, eu sempre emendava com um: 'Te amo muito, meu filho'. Um belo dia, do nada, ele olhou pra mim e disse: 'Meu mundo não teria razão se não fosse a mamãe. Te amo, mamãe'. Ele era um pitoquinho de gente que não falava muita coisa dentro de contexto e me solta uma dessas! Quase morri de alegria. Foi o primeiro de muitos, 'eu te amo'", diz.
João Gabriel deixa um recado para quem é neurodivergente e sonha em seguir carreira na música: "Nada cura e eleva tanto um ser humano quanto a música. Por meio dela, fiz amigos, aumentei minha autoestima e fui muito mais longe do que eu poderia imaginar em 2007, quando fui diagnosticado com autismo", revela.
Expressão
"Pessoas que têm TEA e dificuldade na verbalização encontram na pintura, na música e no teatro formas alternativas de expressão. A música, por exemplo, pode auxiliar na aquisição da linguagem ao trabalhar ritmo e prosódia. O teatro permite a experimentação de emoções e o desenvolvimento da habilidade de compreender as emoções e intenções dos outros, processo importante na empatia", explica Leandro Oliveira, professor e doutor em neurociências da Universidade Católica de Brasília.
O profissional aponta que a ciência comprova a atuação da arte como mecanismo de dessensibilização gradual e de organização sensorial. "O contato com diferentes texturas, cores e materiais pode auxiliar na regulação tátil e visual. Pessoas com TEA frequentemente apresentam hipersensibilidade ou hipossensibilidade a estímulos sensoriais, o que, comumente, gera desconforto, ansiedade e dificuldades na adaptação ao ambiente", revela.
O que é TEA?
O Transtorno do Espectro Autista (TEA) é uma condição do neurodesenvolvimento (início da formação do cérebro) que afeta a comunicação, a interação social e o comportamento de indivíduos que têm o transtorno. Algo comum em pessoas com TEA é a dificuldade na compreensão de sinais sociais, apresentação de padrões de comportamento repetitivos e interesses intensos por determinados temas.
O termo "espectro" diz respeito à ampla variação de manifestações na qual os sintomas podem se apresentar, sendo eles de leves a severos. Nos últimos anos, a nomenclatura do autismo passou por mudanças significativas. O Manual Diagnóstico e Estatístico de Transtornos Mentais (DSM-5), ferramenta utilizada para dar suporte ao diagnóstico clínico, eliminou categorias como Síndrome de Asperger e Transtorno Invasivo do Desenvolvimento, unificando tudo no TEA. Por causa da mudança, reconhecemos, hoje, o autismo como um espectro contínuo, sem divisões rígidas.
Fonte: Leandro Oliveira, professor e doutor em neurociências da Universidade Católica de Brasília (UCB)
Quantidade de diagnosticados
Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), em abril de 2024 a estimativa aproximada de pessoas diagnosticadas com autismo no Distrito Federal era de 60 mil.
Diagnóstico e tratamento no DF
No DF, o diagnóstico de TEA é feito nas Unidades Básicas de Saúde (UBS), a partir do relato dos pais ou responsáveis e da avaliação médica. Depois, o caso é encaminhado para o serviço especializado, se houver a necessidade e demandas específicas do paciente.
Quando o médico faz o diagnóstico, ou em casos de suspeita, o paciente já pode ser encaminhado aos serviços de reabilitação, para que não perca a janela de oportunidade da neuroplasticidade cerebral.
Caso o médico não consiga realizar o diagnóstico, poderá encaminhar o paciente para a Atenção Ambulatorial Secundária (AASE). Nos casos em que o médico de saúde de família, com auxilio da equipe eMulti, não consiga fechar o diagnóstico, pode regular o paciente para o Centro Especializado em Reabilitação (CER), onde há uma equipe que poderá auxiliar no fechamento.
A Secretaria de Saúde ressalta que o tratamento não é feito pelo neuropediatra, exceto em casos em que há necessidade de fármacos, como acontece nos casos de TEA com epilepsia. "Uma vez identificado o diagnóstico, e o paciente não esteja tendo crises epilépticas, sem autoagressão ou heteroagressão, ele pode manter o seguimento na pediatria enquanto aguarda as estimulações, sem necessidade de ser encaminhado ao neuropediatra", informa a pasta.
* Estagiário sob a supervisão de Eduardo Pinho
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