Literatura

Arte e cultura nos versos dos cordéis candangos

Na paisagem moderna de Brasília, a literatura de cordel ganha força com o coletivo Passarema, que conta a vivência no Cerrado por meio da arte rimada nordestina

Os amigos cordelistas se conheceram por meio da literatura -  (crédito: Fotos: Minervino Júnior/CB)
Os amigos cordelistas se conheceram por meio da literatura - (crédito: Fotos: Minervino Júnior/CB)

"Quem há de ler

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Vai descobrir que a capital

Também faz arte de cordel"

Em meio ao cenário branco e moderno da capital, histórias se contam por meio da arte e da cultura, que ganham espaço em uma cidade criada pela herança de todo o país. O coletivo Passarema, formado por Davi Melo, 35, Sabiá Canuto, 39, e Fernando Chaflera, 37, ilustra o Cerrado por meio da arte de cordel, literatura nordestina que reúne admiradores na capital.

A amizade entre os três cordelistas nasceu por meio dessa arte. "Viajei para a Chapada dos Veadeiros uma vez e me encantei ao ver um sujeito cercado de pessoas, cantando, contando e atuando uma história. Era o Sabiá. Dali eu soube que aquilo era algo que eu queria fazer também", contou Davi, que começou a se dedicar ao cordel em 2014. Sabiá, por sua vez, conhecia Fernando desde a época da Universidade de Brasília (UnB), onde estudaram juntos.

Reunindo as obras dos três, são mais de 50 cordéis que contam, cada um com a pegada de seu autor, vivências na cidade. "Eu sou formado em engenharia ambiental. Então, o que escrevo é bem puxado para o Cerrado, sua fauna e flora", conta Fernando, que também toca rabeca e pife, instrumentos muito usados nas leituras encenadas de cordel.

 31/07/2025. Crédito: Minervino Júnior/CB/D.A Press. Brasil.  Brasilia - DF. Literatura de cordel na Casa do Cantador.Davi Melo(colete), Sabiá Canuto, Fernando Cheflera(cam preta).
Fernando Cheflera, Davi Mello e Sabiá Canuto integram o coletivo Passarema e se conheceram por meio da literatura (foto: Fotos: Minervino Júnior/CB/D.A.Press)

Davi, que é fotógrafo, gosta de escrever narrativas fantásticas, misturando elementos diversos nos cenários de Brasília. "Um dos meus cordéis é sobre um forró que começa em Taguatinga e vai parar em Plutão", conta o cordelista, que viajou o Nordeste para estudar a literatura de cordel e trazer o conhecimento para o DF. 

Sabiá, nascido e criado em Ceilândia, ambienta muitas de suas obras na cidade. "Um dos meus textos é sobre um candango, nascido na Serra do Teixeira, na Paraíba, que é cego e vem para Brasília na época da construção de Ceilândia", relata o escritor.

O coletivo desenvolve diversos trabalhos, leva suas obras a feiras e oferece oficinas com artistas de xilogravura. Em uma das ações recentes, o trio foi a museus do Distrito Federal apresentar seus textos. "Era uma coisa incrível, reunia desde criancinhas de 5 anos a velhinhos que se interessavam pelas histórias. Acho que essa é uma coisa mágica do cordel. Você vê a história contada e quer contar também, quer fazer parte, quer aprender. É ótimo poder semear essa ideia em outras pessoas", refletiu Sabiá. 

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Tradição

O professor da Universidade de Brasília (UnB) e poeta Augusto Niemar explica que esse tipo de literatura, que movimenta a voz e a letra, vem de uma antiga tradição oral associada à publicação de um folheto. "A ideia mais corrente é a de que o cordel teria vindo da Ibéria, mais especificamente com os colonizadores portugueses, e que teria ganhado força e se consolidado no Brasil", conta Niemar. "O certo é que o cordel agrega todas as manifestações artísticas trazidas pelo colonizador, como danças e cantos medievais, que foram se transformando no solo tropical", completa o professor. De acordo com ele, a publicação tem esse nome, segundo a crença do senso comum, pela forma como é exposta e comercializada, pendurada em cordas.

O especialista aponta que a característica principal do cordel é sua forma, que não deve ser alterada. "O diferencial, além do importante movimento de se 'fazer em livro', é sua característica performática. Há sempre uma memória vocal, corporal e espetacularizada em todo texto de cordel. Seja ele uma narrativa, seja uma prosa-poética, uma poesia tetral com um lirismo único, há sempre essa memória do cantador, do poeta popular, do folião, do saltimbanco", aponta.

Embora focada no Nordeste, para Niemar, o cordel ganhou espaço no Distrito Federal, principalmente ao dialogar sobre o Cerrado, sua fauna e flora, além da figura do candango, muitas vezes nordestino, que veio tentar a vida nas terras da capital. 

"Nesse processo de migração para o centro do país, nordestinos que vieram para Goiás e para Brasília continuaram essa tradição literária. E, por mais que o cordel tenha formas fechadas e conservadoras em sua composição, é certo que ele foi se transformando na paisagem altiplana do Cerrado", reflete.

"Esse bioma diferente, essa migração para fundação de cidades modernizadoras, com o agravante de não ser mais sertão, certamente movimentou os cenários, as vozes narrativas e os personagens que compunham essa tradição mais antiga", completa.

Um forrozinho em Plutão

"Numa noite, na cidade

Na chamada Taguatinga

Lá tocava um bom forró

Daqueles que o fogo pinga

Um baile bem arretado

Que de longe era escutado

Do Cerrado à Catinga"

Davi Mello

A sambada do boi de chuva

"Deixe a vida renascer

Busquem sempre harmonia

Conheçam nossa Mãe Terra

Entre em sua sintonia

Ela é tu e tu é ela

Sua carne é a carne dela

Isso não é ironia"

Fernando Cheflera

Cordéis astrológicos

"O escorpião é todo sentimento

São águas profundas do inconsciente

Lascivo, manhoso quando está carente

Envolve o amado com hábil talento

Porém se este sofre descontentamento

Seu fel, seu veneno, pode destilar

É Plutão quem rege seu giro solar

Remove nas sombras ocultas verdades

Aonde se lança é com intensidade

Nos dez de galope da beira do mar"

Sabiá Canuto 

 

 

 

 

  •  Fernando Cheflera (esquerda), Davi Mello (meio) e Sabiá Canuto (direita) integram o coletivo Passarema
    Fernando Cheflera (esquerda), Davi Mello (meio) e Sabiá Canuto (direita) integram o coletivo Passarema Foto: Minervino Júnior/CB
  • O coletivo realiza diversas atividades literárias no Distrito Federal
    O coletivo realiza diversas atividades literárias no Distrito Federal Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Os cordéis brasilienses combinam histórias do cerrado com a estética nordestina
    Os cordéis brasilienses combinam histórias do cerrado com a estética nordestina Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  • Um dos traços do cordel é combinar elementos musicais às apresentações literárias
    Um dos traços do cordel é combinar elementos musicais às apresentações literárias Foto: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
  •  Fernando Cheflera, Davi Mello e Sabiá Canuto integram o coletivo Passarema e se conheceram por meio da literatura
    Fernando Cheflera, Davi Mello e Sabiá Canuto integram o coletivo Passarema e se conheceram por meio da literatura Foto: Fotos: Minervino Júnior/CB/D.A.Press
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postado em 01/08/2025 04:00
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