
"Quem há de ler
esta matéria
Seja on-line ou no papel
Vai descobrir que a capital
Também faz arte de cordel"
Em meio ao cenário branco e moderno da capital, histórias se contam por meio da arte e da cultura, que ganham espaço em uma cidade criada pela herança de todo o país. O coletivo Passarema, formado por Davi Melo, 35, Sabiá Canuto, 39, e Fernando Chaflera, 37, ilustra o Cerrado por meio da arte de cordel, literatura nordestina que reúne admiradores na capital.
A amizade entre os três cordelistas nasceu por meio dessa arte. "Viajei para a Chapada dos Veadeiros uma vez e me encantei ao ver um sujeito cercado de pessoas, cantando, contando e atuando uma história. Era o Sabiá. Dali eu soube que aquilo era algo que eu queria fazer também", contou Davi, que começou a se dedicar ao cordel em 2014. Sabiá, por sua vez, conhecia Fernando desde a época da Universidade de Brasília (UnB), onde estudaram juntos.
Reunindo as obras dos três, são mais de 50 cordéis que contam, cada um com a pegada de seu autor, vivências na cidade. "Eu sou formado em engenharia ambiental. Então, o que escrevo é bem puxado para o Cerrado, sua fauna e flora", conta Fernando, que também toca rabeca e pife, instrumentos muito usados nas leituras encenadas de cordel.
Davi, que é fotógrafo, gosta de escrever narrativas fantásticas, misturando elementos diversos nos cenários de Brasília. "Um dos meus cordéis é sobre um forró que começa em Taguatinga e vai parar em Plutão", conta o cordelista, que viajou o Nordeste para estudar a literatura de cordel e trazer o conhecimento para o DF.
Sabiá, nascido e criado em Ceilândia, ambienta muitas de suas obras na cidade. "Um dos meus textos é sobre um candango, nascido na Serra do Teixeira, na Paraíba, que é cego e vem para Brasília na época da construção de Ceilândia", relata o escritor.
O coletivo desenvolve diversos trabalhos, leva suas obras a feiras e oferece oficinas com artistas de xilogravura. Em uma das ações recentes, o trio foi a museus do Distrito Federal apresentar seus textos. "Era uma coisa incrível, reunia desde criancinhas de 5 anos a velhinhos que se interessavam pelas histórias. Acho que essa é uma coisa mágica do cordel. Você vê a história contada e quer contar também, quer fazer parte, quer aprender. É ótimo poder semear essa ideia em outras pessoas", refletiu Sabiá.
<p><strong><a href="https://whatsapp.com/channel/0029VaB1U9a002T64ex1Sy2w">Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular</a></strong></p>
Tradição
O professor da Universidade de Brasília (UnB) e poeta Augusto Niemar explica que esse tipo de literatura, que movimenta a voz e a letra, vem de uma antiga tradição oral associada à publicação de um folheto. "A ideia mais corrente é a de que o cordel teria vindo da Ibéria, mais especificamente com os colonizadores portugueses, e que teria ganhado força e se consolidado no Brasil", conta Niemar. "O certo é que o cordel agrega todas as manifestações artísticas trazidas pelo colonizador, como danças e cantos medievais, que foram se transformando no solo tropical", completa o professor. De acordo com ele, a publicação tem esse nome, segundo a crença do senso comum, pela forma como é exposta e comercializada, pendurada em cordas.
O especialista aponta que a característica principal do cordel é sua forma, que não deve ser alterada. "O diferencial, além do importante movimento de se 'fazer em livro', é sua característica performática. Há sempre uma memória vocal, corporal e espetacularizada em todo texto de cordel. Seja ele uma narrativa, seja uma prosa-poética, uma poesia tetral com um lirismo único, há sempre essa memória do cantador, do poeta popular, do folião, do saltimbanco", aponta.
Embora focada no Nordeste, para Niemar, o cordel ganhou espaço no Distrito Federal, principalmente ao dialogar sobre o Cerrado, sua fauna e flora, além da figura do candango, muitas vezes nordestino, que veio tentar a vida nas terras da capital.
"Nesse processo de migração para o centro do país, nordestinos que vieram para Goiás e para Brasília continuaram essa tradição literária. E, por mais que o cordel tenha formas fechadas e conservadoras em sua composição, é certo que ele foi se transformando na paisagem altiplana do Cerrado", reflete.
"Esse bioma diferente, essa migração para fundação de cidades modernizadoras, com o agravante de não ser mais sertão, certamente movimentou os cenários, as vozes narrativas e os personagens que compunham essa tradição mais antiga", completa.
Um forrozinho em Plutão
"Numa noite, na cidade
Na chamada Taguatinga
Lá tocava um bom forró
Daqueles que o fogo pinga
Um baile bem arretado
Que de longe era escutado
Do Cerrado à Catinga"
Davi Mello
A sambada do boi de chuva
"Deixe a vida renascer
Busquem sempre harmonia
Conheçam nossa Mãe Terra
Entre em sua sintonia
Ela é tu e tu é ela
Sua carne é a carne dela
Isso não é ironia"
Fernando Cheflera
Cordéis astrológicos
"O escorpião é todo sentimento
São águas profundas do inconsciente
Lascivo, manhoso quando está carente
Envolve o amado com hábil talento
Porém se este sofre descontentamento
Seu fel, seu veneno, pode destilar
É Plutão quem rege seu giro solar
Remove nas sombras ocultas verdades
Aonde se lança é com intensidade
Nos dez de galope da beira do mar"
Sabiá Canuto
Saiba Mais
Cidades DF
Cidades DF
Cidades DF