
A velocidade de envelhecimento no Brasil é uma das mais altas já registradas no mundo. Enquanto a França demorou mais de 100 anos para que sua população com mais de 60 anos saísse de 7% para 28%, os brasileiros traçam a mesma trajetória na metade do tempo. E com outra complexidade: sem uma preparação econômica para isso. O alerta é feito pela médica Martha Oliveira, doutora em envelhecimento, no novo episódio do podEnvelhecer.
Martha, que também é especialista em saúde pública e epidemiologia, acredita que é possível olhar para experiências bem-sucedidas desenvolvidas em outros países e adaptá-las à realidade brasileira. Novas formas de cuidado, reorganização das cidades, uso de tecnologias, reorganização do mercado de trabalho e programas de planejamento financeiro são exemplos de iniciativas promissoras, na avaliação da diretora executiva da Laços Saúde. "É uma quebra de paradigma tremenda", mas essencial para que o país se mantenha sustentável, afirma a médica em entrevista às jornalistas Carmen Souza e Sibele Negromonte.
Como o Brasil está lidando com o seu envelhecimento?
O tema envelhecimento acaba chegando tardiamente aqui. A gente podia ter se preocupado com isso um pouquinho antes. Hoje, temos o Brasil com uma das velocidades de envelhecimento mais altas que já se viu no mundo. Só para dar um exemplo, a França, para sair de 7% de idosos para 28% de idosos, levou 105 anos. A gente está levando 50 anos. E os países europeus enriqueceram antes de ter essa virada. A gente, não. Então, temos vários desafios, não só pela velocidade, mas pela forma como encaramos esse envelhecimento.
Quais são esses desafios?
Envelhecer tem muito a ver com saúde, que é o meu objeto, mas também com a organização do país. Precisa de calçada, de transporte, de lugar para as pessoas se divertirem. Precisa de um monte de outras coisas. Reorganização para voltar ao trabalho. Falo muito que, antes a gente se aposentava com 60 e morria com 65. Agora, a gente se aposenta com 60, mas morre com 90. O que a gente vai fazer durante esses 30 anos? Hoje, para óbito, a solidão é um fator de risco maior do que hipertensão. A Holanda, por exemplo, 20 anos atrás, fez uma reforma do sistema de saúde para poder recompô-lo com uma faixa só para atendimento a idosos. A Alemanha, também, há 30 anos, criou uma espécie de imposto, mas que você capitaliza só para o seu envelhecimento. Teve uma preparação. A gente não está conseguindo ter preparação nenhuma.
Tem a questão cultural. O envelhecer no Brasil ainda é algo envolto em preconceito.
É extremamente... Mudar essa mentalidade é um desafio muito grande. Tem um pouco a ver com a nossa cultura de estética, mas acho que a gente ainda se reconhece como um país jovem, que já não é mais o caso. Evitamos falar do envelhecimento. E os maiores de 60 anos já são as pessoas que hoje mantêm a maior parte dos lares no Brasil. Então, tem um fator econômico que precisaremos olhar daqui para frente. Como é que a gente entende que esse envelhecer é uma conquista? Conquistei o direito de ter uma expectativa de vida maior, e o que faço com isso? Como uso esses anos de forma produtiva? Como devolvo isso em qualidade de vida, em possibilidade de estar melhor a cada dia? Obviamente, a gente vai ter um limite. E esse é um outro assunto que precisamos começar a trabalhar: a finitude.
E como chegar a esse lugar, de viver a velhice da melhor forma possível?
A OMS chama de contração do tempo de doença. Vou ter que envelhecer, mas que eu envelheça o mais próximo possível da minha morte. Esse é o ideal. Que eu passe a maior parte do meu tempo bem, saudável, com qualidade de vida. Esse tem que ser o nosso objetivo. É uma quebra de paradigma tremenda. Precisamos ser um país dos idosos, senão o bicho vai pegar.
Você esteve na China, que está envelhecendo mais ou menos na mesma velocidade que o Brasil. Os desafios são os mesmos?
A velocidade (de envelhecimento) é a mesma, eles chegam aos percentuais nos mesmos anos. Só que, se a gente for olhar o número absoluto, o deles é muito maior. Então, o problema deles, de ter estrutura para esse envelhecimento, é maior do que o nosso. Culturalmente, eles são diferentes. Lá, a ideia do apoio familiar vem desde pequeno. Aqui no Brasil, a gente vai muito rapidamente se deparar com a necessidade de um cuidador não familiar. Estruturas para que isso aconteça precisam ser feitas. Eu falo para o meu pai que a geração dele é a última geração que tem o cuidador familiar de uma forma com maior magnitude. A partir dos 60 anos, as pessoas não vão ter mais cuidador familiar.
Ter um cuidador não familiar é algo muito caro para a realidade brasileira, não? A saída seria investir mais em políticas públicas?
Exatamente. E, por isso, novas formas vão chegar. E a tecnologia ajuda muito. Essa metodologia que a gente traz de fora também é uma forma de ter apoio ao cuidado sem necessariamente precisar ter alguém 24 x 7 em casa.
Você está falando de dispositivos eletrônicos, do uso de inteligência artificial?
Temos muito pudor com câmeras. Então, estamos trazendo para o Brasil câmeras que não veem a pessoa. Elas só sentem o calor ou a radiofrequência que acontece naquele ambiente. Consigo monitorar ações repetitivas, queda, ou ausência de ações que chamem a atenção, por exemplo, de uma inteligência artificial, e que me fale alguma coisa que está acontecendo de diferente naquela casa. Começa a ter formas de a gente garantir a segurança daquela pessoa com estruturas diferentes.
Ajudaria também na adesão a tratamento e medicamentos?
Sim. Não sei se vocês sabem, mas a gente é campeão mundial de polifarmácia, ou seja, a quantidade de medicamentos que você toma por dia. Se você toma acima de cinco, já é polifarmácia. E por que é perigoso? Porque a polifarmácia dá confusão mental, tontura, queda, você desorienta, pode dar amnésia, um monte de coisas que vão confundir você. Esse é um assunto que temos que botar luz: o quanto a polifarmácia está afetando o nosso envelhecer?
E existe gente no setor público olhando para essas questões?
Se a gente estivesse falando isso há cinco anos, eu ia dizer: não, estou aqui desesperada. Mas, de cinco anos para cá, acho que falaram assim: opa, isso existe, vão ser 30% da população daqui a 20 anos, a gente precisa olhar pra isso. Ainda não está organizado, não está do jeito que a gente gostaria, ainda não está com gestão. Nada disso. Mas, pelo menos, já se faz existir. O Kalache (Alexandre Kalache, médico) durante muito tempo foi uma voz única, solitária. E agora não é mais. As pessoas estão começando a perceber que isso é um nicho, um público, um mercado. Hoje, talvez, seja um mercado com maior poder aquisitivo do Brasil. E o que mais cresce também.
Se você pudesse dizer "esse aqui é um ponto em que o Brasil precisa agir agora", qual seria?
Eu, quando pediatra, falava que criança não é um adulto anão. O idoso também não é um adulto de cabelo branco. Essa é a primeira coisa. Tudo o que a gente pensa para o adulto, o jovem, não serve para o idoso. A medicação é diferente, a lógica como eu olho é diferente, a necessidade é diferente, a forma de entrar no ônibus é diferente. Se essa fichinha cair cada vez que eu for fazer uma política pública, já estou feliz, porque sei que, em cada coisa que eu fizer, vou ter que botar uma virgulazinha ali, com aquela especificidade para essa população.
Cidades DF
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