série especial do Correio

Para ninguém esquecer: perfil de uma tragédia diária

Em 10 anos, quase três mil pessoas perderam a vida no trânsito. Pedestres e motociclistas são a maioria entre as vítimas. Famílias que passaram pela perda tentam lidar com o luto, mas a dor parece não ter fim

Nas ruas e rodovias da capital — construída sob medida para os carros e demais veículos automotores —, as vidas de motociclistas e de pedestres correm riscos diariamente. Na última década, essa parcela de cidadãos liderou o topo da lista das maiores vítimas do trânsito de Brasília. Em 10 anos, 2.829 pessoas perderam a vida em sinistros. Os pedestres representaram 32,4% do total e os motociclistas, 27,7%. 

Proporcionalmente ao aumento na quantidade de mortes de motociclistas, cuja média no primeiro semestre de 2024 foi 37 e, neste ano, pulou para 48, a frota de motos também subiu. Em 2025, o Departamento de Trânsito do Distrito Federal (Detran-DF) registrou oito mil novas motos nas vias da capital, superando o crescimento da frota de automóveis, que registrou mais 5.407 veículos. 

Leia as demais reportagens da série Para ninguém esquecer:

Mais acessíveis, as motos têm sido a escolha de muitos trabalhadores. Foi o caso de Maria Núbia dos Santos, 46 anos, que, sobre duas rodas, tinha seu percurso de Águas Lindas, no Entorno do DF, ao Noroeste facilitado. O meio de transporte a poupava dos desafios diários típicos do transporte público, além de lhe garantir mais horas de sono. 

Mesmo assim, a diarista saía de casa às 4h20, de segunda a sexta-feira, para chegar ao serviço. Em 17 de abril, ela foi atropelada e morta por um motorista alcoolizado, que não prestou socorro e fugiu. Quase quatro meses após a perda de Maria Núbia, seu marido, Gleidson da Silva, 40, conversou com a reportagem e contou como a família tem convivido com o luto.

"Recomendaram-me colocar as crianças na terapia. Eles têm aprendido a lidar aos poucos, conseguem se distrair e são mais fortes do que eu", afirma o companheiro, que viveu 17 anos ao lado de Núbia, como a chamava. A mãe de Gleidson tem ajudado nos cuidados com os netos — uma menina de 8 anos e um menino de 10.

"Como trabalho durante a noite, é a minha mãe quem os coloca na cama. Todas as noites, as crianças oram juntas, mandam beijos e pedem proteção para a mãe delas", relata o viúvo, que é motorista de ônibus em Águas Lindas. Do dia da tragédia, a lembrança mais dolorida foi o momento de contar aos filhos. "Nossa menina chegou a vomitar de tanto nervosismo diante da situação", recorda.

Cinco dias após atropelar e matar a motociclista, o motorista se entregou, acompanhado de advogados, na 2ª Delegacia de Polícia (Asa Norte). Ele dirigia um GWM Haval quando colidiu com a moto da vítima, atropelando-a. Câmeras de segurança registraram o instante em que ele desceu do carro, mas não prestou socorro à vítima e fugiu. Segundo a investigação, ele havia ingerido bebida alcoólica.

"Ainda hoje, quando bate às 15h, 16h, estremeço. Era o horário em que ela chegava em casa do serviço. Lembro todos os segundos de Núbia. Tem sido uma rotina difícil", desabafa. As crianças não chegaram a se despedir da mãe. "Quis poupá-los de vê-la em um caixão", diz Glaidson.  

Fotos: Arquivo Pessoal - A motociclista Maria Núbia foi atropelada e morta por um motorista alcoolizado

Capacete branco

Diferentemente da família de Matheus Lázaro, motociclista morto na BR-080, os entes queridos de Antonio Eduardo Mendes ainda não conseguem se estender muito quando o assunto é a perda. O analista de sistemas foi atropelado na Primeira Avenida do Sudoeste, onde, hoje, está posicionado um capacete branco no canteiro central. Ele morreu em 2016, aos 52 anos, após ter a motocicleta atingida na traseira por um Hyundai branco.

Antonio tinha o sonho de conduzir uma moto, que foi adiado por três décadas, após ele perder um irmão em um acidente com motocicleta. "Ele atendeu ao pedido da minha avó e se desfez da moto que possuía, à época", relembra o filho da vítima, Daniel de Oliveira Mendes. Na ocasião, ele tinha 25 anos. Hoje, trabalha como piloto de avião e não mora mais no Brasil.

Quando a paixão pelo veículo aflorou, três anos antes da tragédia, o analista de sistemas marcou data para retomar o antigo desejo: assim que Daniel se formasse. Enquanto isso, fez cursos para readquirir a habilitação apropriada. Em cima de uma Harley Davidson, Antonio viajava para Petrópolis (RJ), Belo Horizonte e cidades goianas nos arredores do DF. Em 22 de maio de 2016, no entanto, a moto de Antônio foi atingida na traseira, logo após um quebra-molas. 

Os pais da vítima faleceram depois dela. Uma irmã e uma sobrinha do motociclista disseram à reportagem que ainda não estão preparadas para comentar a tragédia. "Ainda dói", resumiu a sobrinha, acrescentando que pretende reformar o capacete que homenageia Antonio no Sudoeste e colocar o nome dele, para que quem passa pelo local saiba quem ele era.

Valdo Virgo - Vítimas do trânsito no DF

Indiciamento

Em setembro do ano passado, Neilton Meira dos Santos morreu após um caminhão com sistema de freios em más condições e sem buzina, colidir contra sua motocicleta. A vítima chegou a ser atendida e encaminhada para a Unidade de Pronto Atendimento (UPA) de São Sebastião, porém, não resistiu aos ferimentos.

Catiana dos Santos, 70, mãe de Neilton, ainda se indigna com a perda. "Ele era muito trabalhador. Meu filho trabalhava até doente. Passei mal quando recebi a notícia, aqui na Bahia, que ele tinha se acidentado. O motorista sequer ousou aparecer e pedir desculpas por tirar a vida do meu filho", lamenta. O caminhão também atingiu vários automóveis na via e capotou. 

Agnaldo Venâncio Gomes, motorista do caminhão, foi denunciado por homicídio culposo — quando não há intenção de matar — há um mês pela Promotoria de Justiça Criminal e do Tribunal do Júri de São Sebastião. O Ministério Público do Distrito Federal e Territórios (MPDFT) também solicitou à Justiça a fixação de um valor mínimo de R$ 100 mil para reparação de danos morais e materiais aos dependentes de Neilton. 

Palavra de Especialista | Comportamento infrator

O comportamento imprudente no trânsito pode, claro, ter relação com a característica do indivíduo, de ser mais agressivo ou impulsivo, mas também existem variáveis contextuais. Muitas vezes, há o entendimento de que se está em uma cultura permissiva, portanto, atitudes erradas não serão punidas. O comportamento infrator é tolerado e, a depender da cultura, até valorizado. Por exemplo: quantas vezes as pessoas estimulam que se vá a um happy hour, tome um chope e dirija? Dizem que o destino é perto e não haverá problema. Não se percebe o risco desse comportamento transgressor.

Pensando nas características das pessoas envolvidas em sinistros, em especial dos motoristas, o padrão é masculino e jovem. Trata-se de um perfil mundial e que se repete há décadas. Os estudos apontam haver uma relação muito forte com a questão da impulsividade e da agressividade, que tendem a ser maiores nesse tipo de condutor. Além disso, a autoconfiança superestima as próprias habilidades e subestima os perigos.

Isso impacta, ainda, nos índices de mortalidade entre motociclistas, a maioria dos pilotos, homens e jovens. Com relação a esse grupo, o aumento da frota e a escolha por motos, visto que são veículos mais baratos, permite uma mobilidade teoricamente mais fluida e mais rápida pela cidade. Maior velocidade, maiores riscos.

Brasília, enquanto uma cidade planejada, apresenta um contexto atípico no trânsito, com vias muito largas — a exemplo do Eixo Monumental e do Eixão — que são, na verdade, praticamente rodovias dentro do meio urbano. Isso estimula um comportamento que prioriza o excesso de velocidade, um dos principais vilões da segurança. Não ter uma infraestrutura de transporte público positiva também incentiva o uso do carro e ocasiona um volume de veículos bem maior nas vias, outro ponto que contribui para o aumento de sinistros.

Ingrid Neto é doutora em psicologia pela Universidade de Brasília (UnB), professora da Universidade Católica de Brasília. Em seu mestrado, desenvolveu um estudo sobre as justificativas de motoristas para infrações de trânsito

Divulgação/CBMDF - Na BR-080, dois carros ficaram completamente destruídos pelas chamas e pelo impacto da batida

Memória

Alguns dos casos mais graves em 2025:

  • 1º de janeiro: o farmacêutico Tiago Gonçalves de Oliveira, 38, foi morto após ser atingido no acostamento por um carro de passeio, na BR-070, enquanto pedalava. O motorista do veículo foi preso.
  • 12 de abril: Gabriel Gastal, 18, morreu após bater o carro, um BMW M2 Coupé, em uma árvore na altura da SMDB do Lago Sul. O jovem ficou preso às ferragens e faleceu no local do sinistro.
  • 19 de abril: o casal Jucilene Costa Cabral, 52, e Valdeci Barbosa de Souza, 57, morreram em uma colisão frontal no Eixão Norte.
  • 16 de junho: Joeldir Vieira da Silva, 69, foi vítima de um sinistro de trânsito fatal na EPIA Sul, que envolveu dois veículos e uma viatura da Polícia Penal.
  • 12 de julho: Eduardo Rodrigues, 26, e Wanderson Sousa, 38, morreu em uma colisão frontal entre dois veículos na BR-080, no trecho do Povoado da Vendinha e Brazlândia. A violência da batida foi tamanha que os carros pegaram fogo.
  • 10 de julho: a motociclista Caroline Araújo, 37, morreu após envolver-se em uma colisão contra um cavalo na Estrada Parque Ceilândia, em Vicente Pires.

Leia no domingo (3/8):

Correio vai mostrar as possíveis soluções que podem ser implementadas para reduzir o número de sinistros de trânsito.

*Estagiário sob a supervisão de Malcia Afonso

 


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