Por Jorge Henrique Cartaxo e Lenora Barbo, especial para o Correio — “É o lado cabaré do mundo comunista!” A observação, entre a ironia e a verdade, do poeta e editor Augusto Frederico Schmidt, dita na sacada da sua cobertura da Avenida Atlântica, em julho de 1945, se deliciando com a algaravia em torno de Pablo Neruda, antecipava um epíteto, ligeiramente mais delicado, que iria marcar os “marxistas tropicais” algumas décadas depois, numa outra ditadura: a esquerda Ballatines.
No alvorecer da nova paz mundial, o grande poeta chileno desembarcou no Rio de Janeiro para acompanhar Carlos Prestes, agora anistiado, em um grande comício em São Paulo. Pablo Neruda, mais do que comunista, era a mais nova pérola lírica da América Latina. Se mobilizaram para receber a “lira marxista” em ascensão, Jorge Amado, Paulo Mendes Campos, Franklin de Oliveira, Vinicius de Moraes, Astrogildo Pereira, Carlos Drummond de Andrade, dentre outros. A jovem plêiade da nova inteligência carioca não tinha espaço e menos ainda dinheiro para bancar uma recepção adequada para Pablo Neruda, já famoso, também, pelo seu amor à boa mesa.
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Alguém lembrou do poeta Augusto Frederico Schmidt, que, dentre outras manias, criava galos dentro de casa. Rico, bonachão, agradável e amigo de todos. Era de direita, integralista, primo do fascismo recém-derrotado na Europa ainda ácida de pólvora. Mas, na sua antiga e festejada editora — Livraria Schmidt Editora —, Graciliano Ramos, Jorge Amado, José Lins do Rêgo, Rachel de Queiroz, Lúcio Cardoso, e tantos outros, tiveram suas obras publicadas. E mais: sua adega era famosa e farta; sua generosidade quase etílica. Foram todos para lá. Uísques, vinhos, champagne, conhaques, queijos franceses, italianos e suíços.
Canapés, camarões, lagostas e tutti quanti. Grande noite!
Os poetas Pablo Neruda e Augusto Frederico Schdmit — o comunista e o fascista — ambos sorridentes e simpáticos, naquela varanda na Avenida Atlântica, entre um gole e outro, tinham diante de si uma das mais belas paisagens do mundo. Acreditavam, certamente, que tudo ia ser diferente e que a beleza da vida apenas se refazia. Ao lado das sete maravilhas do mundo, duas outras começavam a ser admiradas no Rio de Janeiro: o que se podia ver da varanda do apartamento do poeta; e a Tônia Carrero, com 23 anos, de maiô azul-marinho, na pérgola da piscina do Copacabana Palace, ainda desconhecida como o destino, mas a mulher mais linda do mundo!
Doze dias após o anúncio da morte de Adolfo Hitler, em Berlim, Franklin Roosevelt, já bastante debilitado, faleceu no dia 12 de abril de 1945, em Washington. Silenciava um grande líder do conturbado século XX. Calava-se o homem, agigantava-se o símbolo! No dia 20 daquele mesmo maio, em frente a embaixada americana, a já poderosa União Nacional dos Estudantes promoveu um comovente ato em homenagem ao ex-presidente dos Estados Unidos. Quem estava lá, na sua primeira aparição pública depois de sair da cadeia, no dia anterior: Luiz Carlos Prestes!
Desde 1943, as pressões sobre Getúlio Vargas — internas e externas, militares e civis —, vinham se acentuando. O famoso “Manifesto dos Mineiros”, um documento assinado por 92 intelectuais, advogados e políticos, pedindo a redemocratização, teve o seu impacto. Em 1945, Vargas deu início ao processo de reorganização política do País. A criação de partidos políticos foi permitida, a liberdade de imprensa foi assegurada, as eleições foram anunciadas para dezembro de 1945, a anistia foi concedida e o Congresso a ser eleito em 1945 teria poderes de uma Assembleia Nacional Constituinte. O PSD e o PTB, surgiram das mão hábeis de Vargas. A UDN era a reorganização das lideranças estaduais derrotadas em 1930 e 1937. O Partido Comunista tinha um pouco da naftalina do tenentismo dos anos 20 com a aura simbólica do stalinismo durante e depois da guerra.
Em setembro de 1946 o Brasil já tinha uma nova Constituição que defendia a transferência da nova capital para o Planalto Central. O presidente Dutra, em 19 de novembro de 1946, nos termos da Constituição, constituiu a Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital, que seria dirigida pelo general Polli Coelho. Vale lembrar que na sessão da Constituinte em 20 de maio de 1946, o então deputado Juscelino Kubistchek de Oliveira — que havia subscrito a proposta do deputado Benedito Valadares de transferir a capital da República para o Triângulo Mineiro — solicita seja incluído nos Anais da Constituinte a “Memória sobre a Mudança do Distrito Federal” do engenheiro Lucas Lopes que procurou justificar, tecnicamente, combatendo a opção do “Quadrilátero Cruls”, a opção do Triângulo Mineiro.
“Uma análise minuciosa das diversas partes do Relatório da Comissão Exploradora (Comissão Cruls) deixa-nos, hoje, a impressão de que as decantadas maravilhas da região eram ilusórias, e que os seus característicos de riquezas naturais são os mesmos das pobres savanas tropicais do Brasil Central... Não conhecemos a região de Formosa, mas, lendo as memórias escritas sobre ela, por naturalistas e engenheiros, perdura em nosso espírito a impressão de que não é uma área ‘rica de fato’, mas apenas uma extensão semelhante a tantas outras de nossos campos e chapadões de Goiás e Mato Grosso... Uma fotografia que a Comissão inclui em seu Relatório do acampamento no vértice S.E do Distrito Federal demarcado, transmite-nos a impressão desoladora dos ‘carrascais’ infinitos do nosso sertão, com horizontes limpos e abertos, em que se desenham as silhuetas de arbustos retorcidos e ressequidos...Parece-nos que a nova capital federal deve localizar-se em zona de influência das áreas de grandes possibilidades de concentração demográfica, e, também em posição de irradiar os seus estímulos às regiões de menor poder de sustentação”, disse Lucas Lopes no seu arrazoado contra o trabalho de Luiz Cruls.
Diante da repercussão do texto de Lucas Lopes e da mobilização política de Minas Gerais, o então governador do Estado de Goiás, o também engenheiro Jerônimo Coimbra Bueno, que na época integrava, assim como Lucas Lopes, a Comissão de Estudos para a Localização da Nova Capital do Brasil, dirigida pelo general Polli Coelho, solicita ao engenheiro Manoel Demósthenes, um estudo-resposta ao texto de Lucas Lopes. No seu “Estudo sobre a Nova Capital do Brasil”, de 1947, Demósthenes revisita a região e o trabalho da Comissão Cruls atualizando dados e referências da literatura e dos novos conhecimentos da época, mas sempre
no sentido de reconfirmar as qualidades do “Quadrilátero Cruls”.
“O engenheiro Lucas Lopes, na sua ‘Memória sobre a Mudança do Distrito Federal’, apresenta uma tese oportuna, rica de pormenores, gráficos e mapas elucidativos, argumentos sobre as vantagens da localização da Metrópole no chamado ‘Pontal do Triângulo Mineiro’... Conquanto já houvesse vantagens no deslocamento do Distrito Federal atual para aquelas paragens, pensamos resultar em solução parcial do problema, já que, citadas regiões, sendo economicamente da órbita exclusiva do Sul do País, não traria tal medida repercussão
apreciável de ordem nacional e permaneceria com seu caráter puramente regional, sem possiblidade de efetivar o entrosamento das várias unidades da Federação em um “agregado de forças construtivas’ como pensamento e objetivo dos nossos homens públicos... A maioria, contudo, dos brasileiros que se têm dedicado ao estudo da interiorização da capital dá a sua preferência ao quadrilátero demarcado pela Comissão Cruls e parece realmente que só há no Brasil uma gleba capaz de se tornar o centro geopolítico do País, efetivando a conexão das várias regiões brasileiras. Lugar de onde o Governo poderá supervisionar ao mesmo tempo o desenvolvimento da Amazônia ao Rio Grande do Sul, sem ligações preferenciais com esta ou
aquela unidade da Federação”, sublinhou Manoel Demósthenes no seu trabalho que de encontro
as teses de Lucas Lopes.
Integrava também esse debate, em principio técnico, o famoso estudo do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, de 1945, “Problemas de Base do Brasil”. Em seu item “Interiorização da Metrópole Federal”, o estudo apontava Belo Horizonte como a “capital provisória do Brasil”. O trabalho do IBGE, curiosamente, reconhece todas as qualidades geográficas e geopolíticas da escolha do “Quadrilátero Cruls”, mas sugere um “pit stop” em Belo Horizonte — de 50 a 100 anos — para depois edificar, definitivamente, a nova capital onde ela existe hoje. “Convirá que a interiorização da nossa metrópole não sofra maior retardamento. E retardamento haverá se ficarmos na dependência da construção da nova cidade — Brasília, digamos — no planalto de Formosa. Mais: essa construção, que deve ser projetada com a maior perfeição, e caprichosamente executada, para não prejudicar o futuro do país, seria, além de muito cara no momento, bastante difícil em virtude da falta de comunicação e do despovoamento da região”, sugeriam os técnicos do IBGE.
Enquanto esses documentos circulavam nos gabinetes do governo federal, no Rio de Janeiro, e nos Palácios da Liberdade e das Esmeradas, em Belo Horizonte e Goiânia, o general Polli Coelho coordenava o trabalho e administrava as divergências na sua Comissão, integrada pelos engenheiros Luiz Augusto da Silva, Antônio Carlos Cardoso, Arthur Eugênio Magarinos Torres Filho, Christovam Leite de Castro, Francisco Xavier Rodrigues, Jeronymo Coimbra Bueno, Jorge Leal Burlamaqui, Lucas Lopes, Luiz de Anhaia Mello, Odorico
Rodrigues de Albuquerque e o doutor Geraldo de Paula Souza.
Como observou o professor Laurent Vidal, na sua obra magistral “De Nova Lisboa a Brasília – A invenção de uma capital (século XIX-XX)”, os militares e os técnicos “confiscaram” o debate, estudos e decisões, sobre a localização e construção da nova capital. Mas, se os grande estudos e pareceres não estavam mais com os políticos e o Parlamento, a política não abandonaria nem os técnicos e nem os militares, como veremos nos artigos seguintes.
» Jorge Henrique Cartaxo é jornalista e diretor de Relações Institucionais do IHGDF
» Lenora Barbo é arquiteta e diretora do Centro de Documentação do IHGDF
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