FEMINICÍDIO

Homem que matou a ex no Gama recebe a maior pena por feminicídio da história

Wallison Felipe de Oliveira recebeu 67 anos de prisão pelo assassinato da ex-companheira Juliana Soares, em sentença histórica no DF. O crime ocorreu no Gama, em 2024. Familiares destacam que a justiça foi feita

Juliana Soares foi morta no dia de seu aniversário, no Gama -  (crédito: Arquivo pessoal)
Juliana Soares foi morta no dia de seu aniversário, no Gama - (crédito: Arquivo pessoal)

Wallison Felipe de Oliveira, 30 anos, foi condenado a 67 anos, 6 meses e 14 dias de prisão em regime inicialmente fechado pelo assassinato da ex-companheira Juliana Soares, 34, atropelada de forma brutal em agosto de 2024, no Gama. A condenação representa a maior registrada no país para o crime de feminicídio desde a entrada em vigor da Lei nº 14.994/2024, que tipificou o feminicídio como crime autônomo e elevou os parâmetros para a pena privativa de liberdade, que varia entre 20 e 40 anos de reclusão. Até então, a maior sentença havia sido proferida em março deste ano, quando o Tribunal do Júri de Samambaia condenou Daniel Silva Vítor a 43 anos e quatro meses de prisão por feminicídio triplamente qualificado.

O crime ocorreu na noite de 20 de agosto de 2024, por volta das 23h, na Quadra 3, do Setor Sul do Gama. De acordo com a denúncia, momentos antes do atropelamento, Wallison teria aparecido no bar onde Juliana comemorava seu aniversário e a ameaçou de morte de forma direta, diante de amigos e clientes. Após o episódio, o réu aguardou que a ex-companheira saísse do local e, enquanto ela caminhava com a filha e a mãe, avançou com o carro sobre elas. Ele manobrou o veículo e atropelou Juliana pelo menos três vezes, causando múltiplas fraturas graves. A vítima morreu no local. Durante uma das investidas do criminoso, a filha, de 5 anos, e a mãe de Juliana também foram atingidas, mas conseguiram sobreviver, apesar dos ferimentos e do trauma emocional intenso.

 24/09/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Condenado por juri popular homem que matou a ex-namorada no Gama. Maria do Socorro Barbosa Soares, mãe de Juliana Barbosa Soares (vítima de feminicídio)
Para a mãe de Juliana, Maria do Socorro, a condenação não ameniza a dor (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

A sentença foi proferida na última terça-feira, após sessão do Tribunal do Júri no Fórum do Gama, marcada por tensão e expectativa. Os jurados acolheram todas as qualificadoras apontadas pela promotoria: motivo torpe (matou a vítima por não se conformar com o fim do relacionamento); emprego de meio cruel (passou o veículo sobre a ex-companheira diversas vezes, causando múltiplas fraturas); crime praticado contra mulher em contexto de violência doméstica e familiar; e recurso que dificultou a defesa das vítimas (as manobras do acusado surpreenderam a filha e a mãe da vítima). Além do feminicídio, Wallison também foi responsabilizado pelas tentativas de homicídio contra a filha e a mãe de Juliana, agravando ainda mais a pena.

Advogada especializada em direito das mulheres, Jaqueline Costal destaca que a condenação tem relevância não apenas pelo rigor, mas também pelo caráter simbólico. "O endurecimento das penas tem um valor simbólico e jurídico importante, mas não é suficiente para impedir que esses crimes continuem acontecendo. O Direito Penal, por natureza, é reativo: chega depois, quando a violência se consumou. Por isso, não podemos depender exclusivamente da punição", avaliou.

 24/09/2025 Crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press. Brasil. Brasília - DF - Condenado por juri popular homem que matou a ex-namorada no Gama. José Soares, pai de Juliana Barbosa Soares (vítima de feminicídio)
O pai da vítima, José Soares, agradeceu a atuação da Justiça (foto: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

Ela ainda ressaltou que a pena aplicada no caso do Gama reflete a soma de crimes cometidos pelo réu. "Foi um caso fora da curva. Essa pena não veio de um único feminicídio, mas da soma de vários crimes, cada um com suas circunstâncias, incluindo as tentativas contra a filha e a mãe da vítima. Embora a nova lei permita punições mais severas, o cumprimento máximo continua limitado a 40 anos pelo Código Penal, o que mostra que ainda há desafios na aplicação da legislação", explicou.

Para a advogada, a resposta ao feminicídio não está apenas no aumento das penas. "É necessária a identificação precoce de situações de risco, medidas protetivas eficazes, acolhimento seguro e apoio psicológico, jurídico e econômico às vítimas, além de uma mudança cultural com educação para a igualdade de gênero e combate à misoginia", destacou, reforçando que a prevenção é tão importante quanto a punição.

Saudade e memória

Para a mãe de Juliana, Maria do Socorro Barbosa Soares, 60, a filha era uma pessoa dedicada, alegre e sempre atenta às pessoas ao seu redor. "Ela era tão boa, tão dedicada com todo mundo. Era devota de Nossa Senhora e tinha muita fé nas pessoas. Sempre me ligava para saber se eu precisava de algo, se estava bem. Não tem uma foto no meu celular em que ela apareça sozinha, porque ela sempre estava junto, cuidando da gente e das filhas", relembrou a mãe, emocionada.

O relacionamento de Juliana com Wallison também marcou a família. "Ela me apresentou em 2021, disse que estava namorando. Ele sempre se mostrava uma pessoa agradável para a família, mas tinha muito ciúme da Juliana. Nunca passou pela minha cabeça que ele seria capaz de fazer isso. Quando aconteceu, fiquei em choque, sem acreditar", disse Maria.

 Wallison Felipe de Oliveira foi condenado a 67 anos, 6 meses e 14 dias de prisão
Wallison Felipe de Oliveira foi condenado a 67 anos, 6 meses e 14 dias (foto: Reprodução)

Ela recorda o choque e o horror que tomaram conta da família no dia do crime. "Aquela noite, ele jogou o carro em cima dela de repente. Eu corri, mas ele ainda passou por mim e pela minha neta. Foi desesperador. Não consigo esquecer a dor, o braço quebrado, o tornozelo, a platina no joelho, tudo fruto da covardia dele. O impacto foi tão forte que acordei no hospital sem lembrar o que tinha acontecido e só sabia perguntar da minha filha. Ninguém tinha coragem de me contar", relembrou.

Maria também destacou as marcas emocionais deixadas pela tentativa de homicídio contra ela e a neta, de 5 anos na época. "Durante o julgamento, foi como reviver tudo aquilo de novo. Relembrar o desespero de ver minha filha caída no chão, de tentar ajudar e ser atingida. A última coisa que lembro é de falar para a pessoa que nos socorreu: 'Foi o namorado da minha filha que fez isso'", disse.

O pai da criança, Antonio Adonel, contou que a menor ainda enfrenta consequências psicológicas do ocorrido. "Mesmo depois de um ano, minha filha não esquece um só dia. Ela ainda não consegue superar o luto pela morte violenta da mãe, mesmo com acompanhamento psicológico", explicou, ressaltando a necessidade de apoio contínuo para vítimas de violência doméstica e familiares.

Apesar da condenação trazer algum alívio, não ameniza a saudade e a dor. "Agora estou mais conformada porque a justiça foi feita. A vida da minha filha não volta mais, mas pelo menos ele foi condenado. A saudade é muito grande, só eu e Deus sabemos o que sentimos", declarou Maria. Emocionado, o pai da vítima, José Soares, 63, agradeceu a atuação da Justiça e disse esperar que a condenação seja mantida. "Nada preenche o vazio que ela deixou, mas precisamos seguir em frente. É um passo importante para que outros casos não fiquem impunes", concluiu.

Opinião

Não basta punir: é preciso impedir que elas morram

Dr. Guilherme Gama, advogado criminalista e mestre em Direito e Processo Penal

A Lei 14.994/2024 ("Pacote Antifeminicídio"), que transformou o feminicídio em crime autônomo e ampliou sua pena máxima para 40 anos (maior pena máxima do ordenamento jurídico), é um marco no enfrentamento à violência de gênero no Brasil. Ao desvincular o feminicídio da categoria geral de homicídio, a norma reconhece a especificidade dessa violência e sua raiz estrutural: o assassinato de mulheres motivado por misoginia, controle e discriminação. 

Essa mudança corrige uma omissão histórica do sistema penal e representa um avanço ao dar visibilidade estatística ao problema, recrudescendo as penas para aqueles que cometem violência de gênero de um modo geral, cuja nova lei aumentou os patamares de diversos delitos, como, por exemplo, a quem descumprir medidas protetivas impostas. 

No entanto, qualquer celebração precisa conviver com dados que revelam um quadro dramático. Segundo o Conselho Nacional de Justiça (CNJ), mais de 1,3 milhão de casos de violência doméstica seguem pendentes no Judiciário e 13.335 feminicídios aguardam julgamento. 

Neste ano, a Justiça registrou, em média, quase 3 mil novos processos de violência doméstica por dia, e cerca de 2.560 medidas protetivas foram solicitadas diariamente. Somente dois terços dessas solicitações foram concedidas, o que significa que uma em cada três mulheres permanece sem proteção mesmo após buscar ajuda no Poder Judiciário.

Entre 2020 e 2024, as novas ações judiciais por feminicídio cresceram 140%, com 8.758 processos abertos somente no último ano. Isso para não falar dos casos subnotificados. Números como esses mostram que a violência não se resolve apenas com leis mais duras, mas com um sistema institucional eficiente, estruturado e comprometido com a prevenção, visando impedir que agressões escalem até o desfecho fatal.

Também é preciso reconhecer que o problema não se limita ao Judiciário. Trata-se de um fracasso coletivo. É a polícia que não atende com seriedade, o juiz que minimiza o risco, o vizinho que “não quer se meter”, o amigo que silencia. O feminicídio não nasce no tribunal; nasce toda vez que a sociedade normaliza o controle, a ameaça e o ódio às mulheres. A nova lei tem força, mas sozinha não muda uma cultura machista que continua a matar. A resposta necessária vai além da punição: exige questionar privilégios masculinos, cobrar ações efetivas do Estado, ampliar a rede de proteção e, acima de tudo, não tolerar mais qualquer morte anunciada.

Onde pedir ajuda

  • Ligue 190:Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Uma viatura é enviada imediatamente até o local. Serviço disponível 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
  • Ligue 197:Polícia Civil do DF (PCDF).
    E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br
    WhatsApp: (61) 98626-1197
    Site: https://www.pcdf.df.gov.br/servicos/197/violencia-contra-mulher
  • Ligue 180:Central de Atendimento à Mulher, canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de reclamações, sugestões e elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
  • Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam):funcionamento 24 horas por dia, todos os dias.
  • Deam 1: previne, reprime e investiga os crimes praticados contra a mulher em todo o DF, à exceção de Ceilândia.
    Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.
    Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673
    E-mail: deam_sa@pcdf.df.gov.br
  • Deam 2: previne, reprime e investiga crimes contra a mulher praticados em Ceilândia.
    Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia
    Telefoes: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438

 

Onde pedir ajuda

  • Ligue 190: Polícia Militar do Distrito Federal (PMDF). Uma viatura é enviada imediatamente até o local. Serviço disponível 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
  • Ligue 197: Polícia Civil do DF (PCDF).
    E-mail: denuncia197@pcdf.df.gov.br
    WhatsApp: (61) 98626-1197
    Site: https://www.pcdf.df.gov.br/servicos/197/violencia-contra-mulher
  • Ligue 180: Central de Atendimento à Mulher, canal da Secretaria Nacional de Políticas para as Mulheres. Serviço registra e encaminha denúncias de violência contra a mulher aos órgãos competentes, além de reclamações, sugestões e elogios sobre o funcionamento dos serviços de atendimento. A denúncia pode ser feita de forma anônima, 24h por dia, todos os dias. Ligação gratuita.
  • Delegacias Especiais de Atendimento à Mulher (Deam): funcionamento 24 horas por dia, todos os dias.
  • Deam 1: previne, reprime e investiga os crimes praticados contra a mulher em todo o DF, à exceção de Ceilândia.
    Endereço: EQS 204/205, Asa Sul.
    Telefones: 3207-6172 / 3207-6195 / 98362-5673
    E-mail: deam_sa@pcdf.df.gov.br
  • Deam 2: previne, reprime e investiga crimes contra a mulher praticados em Ceilândia.
    Endereço: St. M QNM 2, Ceilândia
    Telefoes: 3207-7391 / 3207-7408 / 3207-7438

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postado em 25/09/2025 04:00
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