O incêndio que deixou cinco mortos e 11 feridos na Comunidade Terapêutica Liberte-se, domingo, no Paranoá, acendeu o alerta sobre a importância da fiscalização nesses locais. De acordo com a Secretaria de Saúde (SES/DF), há 39 Comunidades Terapêuticas cadastradas pela Vigilância Sanitária no Distrito Federal, das quais 31 foram vistoriadas, resultando em quatro autuações e em uma interdição. Segundo o Ministério Público (MPDFT), a instituição que pegou fogo no Paranoá funcionava irregularmente. O órgão informou que havia solicitado, sem retorno, comprovação de licenciamento e registro aos responsáveis.
A investigação policial aponta para a existência de três estabelecimentos identificados como Comunidade Terapêutica Liberte-se. Familiares e internos relataram que eles fazem parte de uma rede, com um único dono. "Estamos verificando a veracidade dessa informação. Se for confirmado, essas instituições serão investigadas", explicou o delegado Bruno Cunha, da 6° Delegacia de Polícia (Paranoá), responsável pelo caso. O proprietário da Comunidade Liberte-se, Douglas Costa, não quis comentar o assunto.
A polícia ouviu familiares, internos e sobreviventes da tragédia, que confirmaram terem ficado presos na casa em chamas. "O local era trancado por fora e as janelas, gradeadas. Isso impediu que eles escapassem", comentou o delegado. A origem do fogo não foi definida, mas a investigação trabalha com duas hipóteses: incêndio intencional ou acidental.
O Corpo de Bombeiros (CBMDF) informou que não há registro de vistoria no local nem pedidos de inspeção para obtenção de licença de funcionamento. O Conselho de Política sobre Drogas (Conen/DF) reforçou que o instituto não possuía, nem sequer solicitou, registro no Cadastro de Entes e Agentes Antidrogas (CEAAD/DF), pré-requisito para funcionamento regular.
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Diferenças
De acordo com o psiquiatra Thiago Blanco Vieira, conselheiro do Conselho Regional de Medicina do DF, as comunidades terapêuticas não integram a rede de atenção psicossocial e não são consideradas unidades de saúde. "Funcionam como residências temporárias para pessoas que buscam ajuda de forma voluntária, geralmente ligadas a entidades filantrópicas ou religiosas", destacou. Já as clínicas de reabilitação, segundo ele, são equipamentos de saúde e, portanto, estão sujeitas a fiscalização rigorosa da Vigilância Sanitária e demais órgãos de controle.
A advogada especialista em direito da saúde, Alexandra Moreschi, reforça essa diferença, destacando que clínicas contam com estrutura médica e psicológica para casos mais graves, incluindo processos de desintoxicação. "As comunidades terapêuticas têm foco em reabilitação social e emocional, com base em espiritualidade e acolhimento", enfatizou. "A principal diferença é a estrutura do tratamento", disse.
Investigação
Para o defensor público Thiago Kalkmann, do Núcleo de Promoção e Defesa dos Direitos Humanos, é preciso investigar "todos os envolvidos, especialmente para verificação das denúncias de possível cárcere privado no local". "Entendemos que todas as comunidades terapêuticas devem ser fiscalizadas da maneira correta, especialmente por atenderem pessoas em situação de vulnerabilidade", afirmou.
A Comissão dos Direitos Humanos da Câmara Legislativa, presidida pelo deputado distrital Fábio Félix (PSOL), fez denúncias após a tragédia, sendo duas ao Ministério Público, uma à Secretaria de Justiça e outra à Secretaria de Segurança Pública. Na opinião do deputado, várias perguntas devem ser respondidas. "É muito grave que cinco pessoas tenham morrido e outras 11 tenham se machucado em um espaço que era para ser de acolhimento e de cuidado. Recebemos denúncias graves de violações de direitos humanos praticadas nessa comunidade terapêutica", alertou.
Maus-tratos
Cerca de duas semanas antes do incêndio, a mãe de um dos internos denunciou as condições do local à ouvidoria do GDF. Familiares de internos relataram ao Correio as práticas violentas na Comunidade Terapêutica Liberte-se, como castigos físicos, trabalhos forçados e abuso psicológico.
G.C.S., de 24 anos, irmão de uma das vítimas fatais do incêndio e ex-interno, comentou sobre a violência dentro da instituição. "Eles batiam na gente, amarravam o pessoal e amordaçavam o pessoal durante a noite. Deixavam todo mundo trancado", relatou. Segundo ele, os pacientes eram obrigados a trabalhar. "Eles escolhiam quem deveria realizar certos serviços braçais", afirmou.
Dione da Silva de Oliveira, pai de João Pedro, relatou que a instituição só avisou sobre o incêndio horas depois da tragédia. "As mensagens que eles mandavam no grupo (de WhatsApp) não informavam nada sobre o incêndio. Era como se nada tivesse acontecido", contou. O delegado Bruno Cunha comentou que a polícia recebeu várias denúncias de maus-tratos, que estão sendo investigadas.
Responsabilização
O advogado criminalista Thiago Oliveira destacou que os gestores da instituição podem ser responsabilizados em diferentes esferas. "Administrativamente, estão sujeitos a multas e interdições. Na esfera civil, podem ser obrigados a indenizar as vítimas por danos. Já no campo criminal, dependendo do caso, podem responder por exercício irregular da atividade, lesão corporal e homicídio culposo ou com dolo eventual", explicou.
Oliveira classificou como privação de liberdade e tratamento degradante o uso de grades e cadeados que impedem a saída dos pacientes. "Isso transforma a comunidade terapêutica em um ambiente de cárcere privado, violando a Constituição e tratados internacionais de direitos humanos dos quais o Brasil é signatário", avaliou.
Em relação às famílias, o advogado ressaltou que elas têm o direito de buscar reparação judicial. "Podem propor ações de indenização por danos morais e materiais, além de pensão em casos em que a vítima contribuía financeiramente. Também é possível o ajuizamento de ações coletivas pelo Ministério Público ou associações para responsabilizar a clínica e até o poder público por falhas de fiscalização", afirmou.
As cinco pessoas que perderam a vida no incêndio foram Darley Fernandes de Carvalho, José Augusto, Lindemberg Nunes Pinho, Daniel Antunes e João Pedro Santos. Outros 11 internos seguem hospitalizados com queimaduras e sintomas de intoxicação por inalação de fumaça.
