A Polícia Civil (PCDF) desarticulou uma rede internacional de golpistas chineses, responsável por enganar vítimas em todo o país no chamado golpe do falso investimento. Em pouco mais de um ano, o grupo desviou cerca de R$ 1 bilhão, de pessoas que eram atraídas para a plataforma EBDOX, onde aplicavam recursos em busca de altos retornos, nunca concretizados. Por trás da fraude, estavam chineses residentes em Taiwan e em Singapura, que recrutaram outros chineses, de São Paulo, e também brasileiros para intermediar a operação.
Batizada com o nome da própria plataforma, a Operação EBDOX foi desencadeada, nesta quarta-feira (3/9), pela 17ª Delegacia de Polícia (Taguatinga Norte) e pela Delegacia de Repressão ao Crime Cibernético (DRCC), com apoio de polícias civis de outros estados. As investigações começaram após uma moradora de Taguatinga registrar ocorrência relatando prejuízo superior a R$ 220 mil, depois de investir na plataforma e não receber retorno financeiro. Na capital, a polícia identificou mais de 10 vítimas.
O relato da moradora de Taguatinga se une a outros cerca de 430, registrados em um site oficial de reclamações. Nesse portal, os comentários negativos se assemelham. Um homem alega ter depositado R$ 130 mil, mas conta que não conseguiu retirar o dinheiro. "Fiquei desesperado ao perceber que se tratava de um golpe e que o dinheiro estava perdido", escreveu.
Teia criminosa
A PCDF mapeou a raiz do golpe e descobriu que o esquema era gerenciado por chineses, a partir do Centro de São Paulo, responsáveis por cooptar brasileiros para gerenciar grupos de WhatsApp e de Telegram. As comunidades eram compostas pelos "clientes", ou seja, as futuras vítimas e, lá, o conteúdo era investimento.
Em depoimento, um dos investigados, de nacionalidade brasileira, detalhou que eles recebiam pagamento mensal dos chineses, em criptomoedas, para habilitar o chip telefônico, passar o código do WhatsApp e repassar informações em catálogos traduzidos para o mandarim. Os criminosos disparavam conteúdos nos grupos se passando por um doutor pela Universidade de São Paulo (USP), a quem eles chamavam de Mário. O falso professor, criado pelos golpistas, tinha como foto do perfil uma imagem supostamente criada por inteligência artificial.
Uma das vítimas descreveu, no site de reclamações, como agia o suposto professor. "(...) se apresentava como um grande investidor que estava retornando ao país e queria transmitir seus conhecimentos para que todos pudessem ficar milionários, como ele havia ficado. Então, começou a orientar a compra de ações nacionais, com resultados razoáveis, mas nada de mais. Ele dava aulas diariamente sobre o mercado de capitais e demonstrava muito conhecimento. Depois, disse que o negócio eram as criptomoedas e pediu que todos abrissem conta na EBDOX, pois ele faria um depósito inicial. Com esse depósito, foi fazendo operações e o saldo ia aumentando. Aí, ele pediu que todos fizessem depósitos na EBDOX, pois haveria multiplicação dos valores rapidamente. Várias pessoas postaram comprovantes de depósitos de altos valores", escreveu.
Segundo o delegado Thiago Boeing, adjunto da 17ª DP, os chineses de São Paulo, responsáveis por liderar a rede no Brasil, mantinham contato com os chineses de outros países. "Os que estão no Brasil cooptavam brasileiros para fazer esse trabalho de meio de campo, de tradução e de habilitação da linha telefônica. Como os golpistas estão em outro país, precisavam de uma linha para receber o código. A partir das próprias declarações dos envolvidos, temos certeza de que há pessoas operando de outros países", frisou.
O golpe
Incluídas nos grupos e atraídas pela oferta tentadora, as vítimas não notavam de imediato que haviam caído em um golpe. Inicialmente, os rendimentos apareciam no sistema, o que dificultava identificar qualquer erro. No entanto, segundo a polícia, ao tentar sacar os valores, os investidores ficavam sabendo de um bloqueio fictício da Polícia Federal e eram pressionados a pagar uma caução de 5%, para liberar os saques. Após esse novo aporte, o dinheiro nunca foi devolvido e a plataforma saiu do ar.
Em pouco mais de um ano, a rede criminosa movimentou cerca de R$ 1 bilhão. O delegado explica que o dinheiro era lavado de três formas: por meio da compra de criptoativos, créditos de carbono e até exportação de alimentos de Boa Vista para a Venezuela.
A capital de Roraima está na lista dos locais alvos dos mandados de busca e apreensão. Além dela, os policiais cumpriram 21 ordens judiciais de busca e três de prisão temporária em São Paulo, Guarujá (SP), Curitiba, Dourados (MT) e Entre Rios (BA). Também foram determinadas medidas de sequestro de valores. Os investigados vão responder por estelionato eletrônico, organização criminosa e lavagem de dinheiro.
Crime em expansão
Em abril deste ano, um relatório da Organização das Nações Unidas (ONU) revelou a expansão de redes criminosas do Sudeste Asiático. O documento aponta atos criminosos que envolvem fraudes cibernéticas, lavagem de dinheiro e serviços bancários clandestinos, além de mercados ilícitos com venda de dados roubados e serviços de hackeamento.
Os pesquisadores associaram o crescimento desses grupos à capacidade de lavar dinheiro por meio de criptomoedas e de bancos clandestinos, como exposto na operação da PCDF. A ligação com o Brasil não é recente. Em fevereiro deste ano, os brasileiros Phelipe de Moura Ferreira, 26 anos, e Luckas Viana dos Santos, 31, desembarcaram no Brasil depois de terem sido mantidos reféns por três meses por uma máfia de golpes cibernéticos, em Mianmar, no Sudeste Asiático.
Segundo as investigações, Phelipe e Luckas foram convencidos com falsas promessas de emprego, em 2024, e foram vítimas de tráfico humano em KK Park, Mianmar, local considerado polo de golpes on-line. Depois de conseguirem fugir, foram resgatados com a ajuda de uma ONG.
Quatro perguntas para
Filipe Azevedo, professor de finanças do Ibmec Brasília
Como o senhor avalia a aplicação de golpes a partir de outros países? Isso dificulta o trabalho da polícia brasileira? Por quê?
Quando a estrutura de um golpe está sediada em outro país, a investigação criminal torna-se significativamente mais complexa. Isso porque a polícia brasileira depende de mecanismos de cooperação internacional, o que envolve a interlocução com autoridades estrangeiras por meio de tratados e acordos que, em regra, apresentam trâmites burocráticos e lentos. Além disso, as diferenças legais entre as jurisdições constituem um obstáculo adicional, uma vez que determinadas condutas podem não ser tipificadas da mesma forma, dificultando tanto o bloqueio de contas quanto eventuais pedidos de extradição.
É mais difícil para a vítima perceber que caiu no golpe do investimento?
Esse tipo de golpe apresenta um grau de sofisticação muito maior do que fraudes mais diretas, como aquelas frequentemente aplicadas por meio do WhatsApp. Enquanto neste último caso a abordagem costuma ser imediata e objetiva — geralmente um pedido urgente de transferência de valores —, nas fraudes financeiras, os criminosos constroem uma narrativa elaborada, recorrendo a sites falsos, relatórios aparentemente técnicos e até a serviços de atendimento que simulam a formalidade de instituições legítimas. Para reforçar a credibilidade do esquema, é comum que a vítima receba pequenos retornos financeiros iniciais, o que aumenta a confiança e prolonga a ilusão de estar realizando um investimento seguro.
Por que criminosos preferem usar criptomoedas para movimentar valores ilícitos?
Há um conjunto de características inerentes a esse tipo de ativo digital. Em primeiro lugar, a descentralização elimina a necessidade de recorrer à rede bancária, conferindo maior autonomia na movimentação de recursos. Ademais, o caráter de pseudoanonimato das transações, registradas em blockchain e, por isso, não vinculadas a identidades pessoais, dificulta a identificação dos verdadeiros envolvidos. Soma-se a isso a facilidade de circulação internacional, uma vez que transferir grandes somas em criptomoedas é menos burocrático e menos sujeito às regras de combate à lavagem de dinheiro do que os sistemas bancários tradicionais. Por fim, a possibilidade de rápida conversão em moeda fiduciária, por meio de exchanges ou mercados peer-to-peer, reforça a atratividade desse mecanismo para fins ilícitos.
É comum termos golpistas estrangeiros operando no Brasil?
Sim, sobretudo no ambiente digital, devido a um conjunto de fatores que torna o país especialmente atrativo para esse tipo de prática. O primeiro deles é a ampla base de investidores iniciantes, frequentemente seduzidos por promessas de ganhos elevados em curto prazo, o que cria um mercado propício à exploração fraudulenta. Além disso, a elevada digitalização da sociedade brasileira, marcada pelo uso massivo de aplicativos financeiros e redes sociais, facilita o contato direto com potenciais vítimas. As barreiras linguísticas também não constituem um grande obstáculo, vez que os criminosos adaptam materiais traduzidos para tornar a fraude mais convincente.
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