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Relatório do MPDFT expõe desafios no serviço social público do DF

Pesquisa do Ministério Público (MPDFT) aponta falta de unidades e profissionais nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras), afetando 370 mil famílias vulneráveis na capital do país. Governo destaca desafios, investimentos e projetos

Segundo a pesquisa, caso todas as famílias cadastradas fossem atendidas, seriam necessárias 74 unidades -  (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)
Segundo a pesquisa, caso todas as famílias cadastradas fossem atendidas, seriam necessárias 74 unidades - (crédito: Marcelo Ferreira/CB/D.A Press)

"Fiquei três meses sem receber o Bolsa Família porque não conseguia agendar o recadastramento. Eu ligava e não tinha vaga, hoje não é muito diferente. Foi ruim porque fiquei sem dinheiro naquele período", desabafou a dona de casa Lindalva Lopes da Silva, 55 anos, moradora do Riacho Fundo I. O relato revela a dificuldade enfrentada por quem depende dos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) no Distrito Federal, responsáveis pela oferta de serviços sociais à famílias em situação de vulnerabilidade. 

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A rotina de longas esperas, falta de profissionais e escassez de unidades evidencia a precariedade do sistema. Atualmente, o Distrito Federal conta com 32 unidades do Cras, mas, segundo uma pesquisa recente do Ministério Público do DF e Territórios (MPDFT), seriam necessárias 56 unidades para atender as 282 mil famílias em situação de pobreza ou baixa renda registradas no Cadastro Único em 2023, dados mais recentes. Se todas as 370 mil famílias cadastradas fossem consideradas, o número de Cras necessários subiria para 74, mostrando a cobertura insuficiente da rede.

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O número representa um sistema fragilizado, explica o promotor de Justiça do MPDFT, Bernardo Matos. "Essa fragilização reflete outros problemas. Um deles, também apontado na pesquisa, é a dificuldade de acesso aos serviços. A maioria dos atendimentos mais importantes, como Prato Cheio e Bolsa Família, depende de agendamento por telefone ou site. Se a pessoa for presencialmente, possivelmente não conseguirá, pois as vagas acabam rapidamente. Se tivéssemos um número adequado de Cras e servidores, talvez não existisse essa dificuldade de acesso", refletiu.

Segundo a pesquisa, apenas cerca de 24% dos 21 serviços previstos são executados por todas as unidades, o que fragiliza a implementação do Programa de Atenção Integral à Família (Paif) e compromete ações de convivência e fortalecimento comunitário. "Hoje o sistema está afogado com a demanda de benefícios. Mas, é só por meio do serviço de fortalecimento de vínculos que os profissionais do Cras vão capacitar o cidadão sobre seus direitos. Esses trabalhos de acompanhamento precisam ser feitos para prevenir violações de direitos", afirmou Matos.

Para o promotor, o cenário exige ações estruturais urgentes, desde a ampliação do número de unidades até a valorização dos profissionais que atuam na rede. "A falta de concursos, o desgaste emocional e a ausência de uma política de cuidado com a saúde mental dos trabalhadores têm comprometido o atendimento. Esses profissionais lidam diariamente com situações de extrema vulnerabilidade e precisam estar em condições de oferecer acolhimento e escuta qualificada. O trabalho precisa ser simultâneo: é preciso fortalecer os Cras já existentes e inaugurar novas unidades, principalmente nas regiões periféricas", concluiu.

A aposentada Fátima Miranda, 73, destaca que, a cada ano, o acesso é mais dificultado, principalmente para idosos. "Antes, a gente chegava lá e resolvia tudo. Tenho medo de quando precisar renovar o benefício, porque faz tempo que ninguém atende mais. O problema é esse: falta gente para atender. Se tivesse mais unidades e mais servidores, talvez fosse diferente", lamentou.

 17/10/2025 Bruna Gaston CB/DA Press. CRAS, Estrutural. Fátima Miranda
Fátima destaca que, a cada ano, o acesso é mais dificultado (foto: Bruna Gaston CB/DA Press)

Necessidade

Para a assistente social Fernanda Moreira, a falta de profissionais impacta diretamente a população. "A comunidade se encontra em vários momentos desassistida ou desmotivada a procurar pelo serviço por saber da demora. Isso impacta fortemente a superação ou mitigação de vulnerabilidades", relatou. 

A desmotivação é vivida pela moradora da Estrutural Poliana Feitosa Teixeira, 37, que relata que os atendimentos têm ficado cada vez mais precários e difíceis de agendar. "A população é muito grande e o número de funcionários é pequeno para atender tanta gente. Os postos ficam cheios e muitas pessoas acabam sem atendimento", contou.

Ela disse que chegou a dormir na fila do Cras para conseguir renovar o Bolsa Família durante a pandemia, em 2020. "A gente recebe o Bolsa Família e, depois de um tempo, eles mandam mensagem dizendo até que dia é possível renovar o cadastro. Muita gente acaba perdendo o benefício porque não consegue vaga para atualizar os dados", lamentou.

A assistente administrativa relata que, mesmo ligando para o 156 ou tentando pelo site, não consegue agendar o atendimento. "A gente vem atrás de benefícios a que temos direito, mas, pela nossa falta de informação, não sabemos onde procurar. Vemos o Cras como um apoio, mas não conseguimos atendimento. Ficamos sem nossos direitos e sem saber a quem recorrer", destacou.

Recursos humanos

A pesquisa do MPDFT reforça a percepção de quem vive a rotina dos Cras. O levantamento apontou carência de recursos materiais — desde transporte interno até mobiliário, computadores, impressoras e artigos de escritório — e problemas na estrutura de pessoal, como equipes incompletas, alta rotatividade e uso irregular de cargos comissionados.

Para o presidente do Sindicato dos Servidores e Empregados da Assistência Social e Cultural do GDF (Sindsasc), Clayton Avelar, o estudo confirma o que o sindicato vem denunciando há anos. "O DF tem uma média de desemprego bem maior que a nacional, é destino constante de migrantes e possui a maior desigualdade de renda do país. Tudo isso pressiona fortemente a rede de assistência social, sobretudo os Cras", afirma. Segundo ele, a estrutura atual é insuficiente para dar conta da demanda crescente. "Trabalhamos com apenas um terço do quadro de pessoal necessário e, em muitas unidades, em condições muito precárias", completa.

Avelar explica que a sobrecarga de trabalho e a falta de estrutura adequada afetam diretamente a qualidade do atendimento. "Diariamente, os Cras são procurados por milhares de pessoas. A recepção fica lotada, e o atendimento inicial costuma ser feito por agentes sociais ou auxiliares, que registram as demandas e orientam sobre benefícios. Outras centenas são atendidas por especialistas — assistentes sociais, psicólogos e educadores —, mas com o quadro reduzido, fica impossível oferecer o acompanhamento adequado", disse. "A consequência é o enfraquecimento dos vínculos com as famílias e a interrupção de ações preventivas, que deveriam ser o foco do trabalho", avalia.

Além da falta de pessoal, as condições físicas das unidades também preocupam. O relatório identificou problemas estruturais graves, e Avelar cita exemplos: "Temos Cras com forro comprometido pela chuva, falta de ar-condicionado, água contaminada por roedores, ausência de acessibilidade e móveis quebrados que chegam a causar problemas ortopédicos em servidores". Ele afirma que os trabalhadores estão em mobilização permanente para reivindicar melhorias. "Nossa pauta tem 19 itens, entre eles, melhores condições de trabalho. Espero que o Ministério Público e o governo sejam sensíveis às demandas da nossa categoria", conclui.

Medidas

A Secretaria de Desenvolvimento Social do Distrito Federal (Sedes-DF) esclarece que o aumento de pessoas vulneráveis e da demanda nos Centros de Referência de Assistência Social (Cras) ainda é reflexo consequências sociais e econômicas da pandemia, não só no DF, mas no Brasil e em todo o mundo. 

Segundo a pasta, desde o início da atual gestão, foram inauguradas seis novas unidades socioassistenciais e, até 2026, estão previstas mais seis: Santa Luzia (Estrutural), Morro da Cruz (São Sebastião), Pôr do Sol, Água Quente, Condomínio Privê (Ceilândia Norte) e Paranoá Parque.

"O Distrito Federal é atrativo e em constante crescimento. Isso também se reflete na alta procura pelos serviços da assistência social. Nesta gestão, entregamos melhorias estruturais em quase metade das unidades, muitas delas sem receber nenhum reparo há mais de 20 anos. Modernizamos o sistema de confirmação de agendamento, que agora pode ser confirmado pelo WhatsApp, reduzindo em 50% as abstenções nos atendimentos, que antes acabavam tirando de outra pessoa a oportunidade de ser atendida", declarou a secretária, Ana Paula Marra. 

A secretária também informou que tem investido na valorização dos servidores, com a nomeação de mais de mil profissionais, ampliação da carga horária para 40 horas, reestruturação de carreira e oferta de atendimento psicológico gratuito. Para reduzir filas e melhorar o acesso, a Sedes estuda criar um percentual de vagas para agendamentos presenciais, priorizando idosos, gestantes e pessoas com deficiência. 

A Sedes reconheceu desafios como a venda ilegal de agendamentos e o alto índice de faltas, que chega a 30%. Segundo a pasta, já houve prisões pela Polícia Civil relacionadas à comercialização de vagas, e o novo sistema de confirmação via WhatsApp reduziu as abstenções pela metade. Por fim, informou que mantém diálogo com o Ministério Público do DF em busca de fortalecer a rede de proteção social e aprimorar o atendimento às famílias em vulnerabilidade. "Estamos trabalhando de forma contínua para melhorar tanto a estrutura quanto o acesso da população aos Cras", acrescentou Ana Paula Marra.

 

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    Lindalva: três meses sem benefício por não conseguir se recadastrar Ana Carolina Alves/CB
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    Poliana relata que os atendimentos têm ficado mais precários Bruna Gaston CB/DA Press
  • Fátima destaca que, a cada ano, o acesso é mais dificultado
    Fátima destaca que, a cada ano, o acesso é mais dificultado Bruna Gaston CB/DA Press

Dados da pesquisa

Atualmente, o DF possui 31 unidades do Cras em funcionamento, mas seriam necessárias ao menos 56 para atender a cobertura mínima das famílias em vulnerabilidade. Caso todas as famílias cadastradas no Cadastro Único fossem consideradas referenciadas, seriam necessárias 74 unidades.

Até 2023, havia mais de 370 mil famílias registradas no Cadastro Único, das quais 76% viviam em condições de pobreza ou baixa renda, ou seja, 282.225 famílias.

Apenas 24% dos 21 serviços previstos pelo Paif são executados por todas as unidades, fragilizando ações de convivência e fortalecimento comunitário.

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postado em 24/10/2025 04:00
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