ENTREVISTA / Pedro Bruzzi, superintendente-executivo da Funatura

Especialista alerta: "O Cerrado precisa ser considerado patrimônio nacional"

Ao Correio, o engenheiro florestal destaca a importância de incluir o bioma nos debates da COP30. "O desmatamento está ocorrendo de maneira descontrolada e isso afeta, principalmente, as bacias hidrográficas", adverte Pedro Bruzzi

 2025. Pedro Bruzzi superintendente executivo da Funatura. -  (crédito: Lara Requia/Divulgação)
2025. Pedro Bruzzi superintendente executivo da Funatura. - (crédito: Lara Requia/Divulgação)

Às vésperas da COP30, encontro mundial que debaterá mudanças climáticas, o Cerrado surge como ponto de interrogação nas discussões. Mas especialistas alertam sobre a necessidade de priorizar esse bioma tão importante para o Brasil. Pedro Bruzzi, engenheiro florestal, formado na Universidade Federal Rural do Rio de Janeiro (UFRRJ), que hoje trabalha na Superintendência Executiva da Fundação Pró-Natureza (Funatura), alerta sobre o desmatamento implacável do Cerrado: "É, provavelmente, o bioma mais ameaçado do Brasil". De acordo com ele, o avanço da fronteira agrícola impacta diretamente na fauna, na flora e nos aquíferos da região. Ao Correio, critica a emissão desordenada de outorgas para poços artesianos, além do avanço da mineração.

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Quais as principais ameaças para a sobrevivência do bioma Cerrado?

A perda da biodiversidade, associada à questão do desmatamento, pois o bioma é um hotspot (uma área com alta biodiversidade, mas com muitas espécies endêmicas sob grave ameaça de destruição). Além do desmatamento ocorrendo de maneira descontrolada. Você tem também a questão da proliferação da emissão de outorgas — os critérios exigidos pela ANA (Agência Nacional de Águas e Saneamento Básico) são extremamente desconectados com o regime das bacias (hidrográficas), causando um estresse sobre todos os corpos hídricos. Essas outorgas buscam água nos aquíferos que justamente abastecem as nascentes. Está ocorrendo um rebaixamento generalizado dos níveis de água. Outra ameaça é a questão de novas hidrelétricas e também das ditas energias limpas, que têm se espalhado muito pelo sertão afora, justamente para poder garantir o bombeamento desses poços artesianos oriundos das outorgas para o agronegócio. Há, ainda, o problema da mineração, que é bem forte. O Cerrado é, provavelmente, o bioma mais ameaçado do Brasil.

No Distrito Federal, a expansão urbana desordenada impacta a fauna, a flora e os mananciais da região, afetando sobremaneira, entre outros aspectos, o microclima na capital do país. Como mitigar essa situação?

O Distrito Federal tem um sistema distrital de unidade de conservação que é a principal estratégia para mitigar esse impacto que a biodiversidade tem sofrido, principalmente com o avanço desordenado da ocupação urbana. O DF precisa, urgentemente, de implementação de soluções baseadas na natureza. Sofremos, recentemente, uma crise hídrica bem complicada. Águas Lindas (Descoberto), o principal reservatório, chegou bem próximo ao volume morto (em 2014/15). A biodiversidade também está extremamente impactada. Percebemos, pelas iniciativas de monitoramento de fauna, o quanto que os animais têm procurado refúgio (na área urbana). Estão sendo afugentados em função da ocupação desordenada dos condomínios, da atividade urbana como um todo. É preciso um olhar sistêmico para a capital do país, para todo o sistema de unidade de conservação, para a própria APA do Distrito Federal. É preciso uma elaboração de planos de manejo, campanhas para que a comunidade possa conhecer esse patrimônio, que são as unidades de conservação do DF.

O Cerrado faz divisa com o Pantanal, Caatinga e ainda Amazônia. Como atuar na preservação desses biomas de forma sistêmica?

Ainda tem a Mata Atlântica. Ele só não se conecta com o Pampa. A única forma de promover uma preservação é por meio da implementação de ações conjuntas, como o Sistema Nacional de Agenda de Conservação, que olha para a conectividade da paisagem de forma sistêmica, e outros, como o Sinaflor (Sistema Nacional de Controle da Origem dos Produtos Florestais) do Ibama. A forma mais eficiente e adequada é por meio de um pacto federativo, em que as secretarias de Meio Ambiente dos estados, que ficam responsáveis pela maior parte do licenciamento nessas áreas (de desmatamento), integrem-se ao Sinaflor. À medida que a gente consegue ter maior integração de monitoramento e comando de controle, começamos a ter uma condição maior para promover uma conservação dos recursos naturais de forma sistêmica.

Autoridades mundiais debatem a questão da Amazônia, mas se esquecem da importância do Cerrado, como matriz de água doce, por exemplo.

O Cerrado precisa ganhar mais importância. Uma pauta histórica sobre isso é a (urgência na) aprovação da PEC (504/10), projeto de emenda constitucional, que coloca o Cerrado como patrimônio nacional. É preciso movimentar essa PEC, isso vai dar bastante visibilidade (para o problema ambiental). A principal agenda do Cerrado é a questão da água. Oito das 12 bacias hidrográficas brasileiras partem do Cerrado.

A monocultura, o uso de sementes exóticas (além de geneticamente modificadas), está mudando as características do bioma?

O bioma sofre com o problema da monocultura, vários tipos de monocultura se adaptaram muito bem ao Cerrado, entre eles a soja, o algodão, e nós temos também um problema sério com relação a pastagens, há uma variedade de gramínea africana que é uma espécie extremamente difícil de erradicar. Quando você vai trabalhar com a restauração do Cerrado, esse é o principal desafio de recuperação de áreas degradadas, como a presença da braquiária, que consegue manter bancos de sementes no solo por mais de cinco anos. Então, por mais que você combata a gramínea, ela sempre acaba retornando, e é um problema muito sério para a restauração da vegetação nativa.

Muitos destacam a resiliência do Cerrado em meio às queimadas, mas o que se vê é a redução da fauna, da flora e a degradação de grandes áreas. Quais políticas públicas podem ser adotadas para combater esses ataques à natureza?

De fato, essa questão sobre a resiliência do Cerrado é muito comentada. Mas é importante a gente esclarecer: a resiliência do Cerrado foi desenvolvida para o fogo natural, que normalmente é provocado por raios, descargas elétricas, no início do período chuvoso, quando ainda tem muita matéria seca (na vegetação) e ocorrem esses incêndios. O que tem ocorrido, sistematicamente, são incêndios provocados pelo homem. Temos visto, de fato, uma grande degradação da biodiversidade e a fauna tem sido extremamente impactada. É uma tragédia, as cenas que são observadas durante os incêndios, da grande perda de mamíferos, de répteis, etc. O que pode ser feito é um monitoramento, e também a responsabilização dessas pessoas por incêndios criminosos.

Há um monitoramento da redução do bioma a cada ano?

Sim, há um monitoramento anual da redução do bioma, que é feito, principalmente, pela ferramenta MapBiomas. O Ministério da Ciência e Tecnologia, por meio do Inpe, faz essa análise anual e acompanha o avanço do desmatamento. O Brasil é uma referência mundial em monitoramento da dinâmica do uso e ocupação do solo, da dinâmica do desmatamento, da dinâmica do fogo, todas essas informações associadas ao meio ambiente.

Como ter uma agricultura com aumento de produtividade, mas sem ampliação da fronteira agrícola? 

Tem-se falado muito sobre isso. Existe uma área muito grande e significativa no Cerrado, em torno de 30 milhões de hectares, que já são áreas desmatadas, que estão aptas para a pecuária, para a restauração de pastagens e também para a agricultura. Essa área seria aproveitável (para a produção). Aí está a grande recomendação: em vez de expandir a agricultura para onde tem vegetação nativa, basta trabalhar nessas áreas já convertidas. Isso reduziria significativamente a pressão (no bioma). Também é preciso ampliar a tecnologia, que o Brasil tem de sobra, especialmente na Embrapa, para aumentar a produtividade nas áreas de cultivo, introduzindo técnicas de agricultura mais sustentável. Temos muitos resultados com relação a isso, na integração dos sistemas de lavoura, floresta, pecuária e pastagem, amplamente desenvolvidos. Enfim, agora precisa ter vontade política, firme, investimento alto, para que o país, de fato, possa tomar esse caminho.

 

  • Selo-COP30
    Selo-COP30 Foto: Valdo Virgo
  •  Materia sobre pesquisa do cerrado brasileiro
    Materia sobre pesquisa do cerrado brasileiro Foto: David/divulgação
  • A degradação do Cerrado afeta todo o bioma
    A degradação do Cerrado afeta todo o bioma Foto: Foto Cerrado
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postado em 30/10/2025 04:00
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