
Pessoas jovens que gostam de videogames com características semelhantes a jogos de azar, como itens de recompensas aleatórias dentro das partidas, têm mais chances de começar a apostar com dinheiro na realidade. É o que sugere um novo estudo belga, publicado ontem na revista International Gambling Studies.
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Uma equipe de especialistas entrevistou pouco mais de 2 mil jovens jogadores duas vezes, com um intervalo de um ano. Em seguida, constataram que aqueles que participavam de jogos com elementos semelhantes aos de azar tinham maior probabilidade de apostar dinheiro real. Conforme os cientistas, os adolescentes precisam ser protegidos desse risco por meio de regulamentações atualizadas e campanhas de informação.
"Adolescentes, pais e educadores podem ser conscientizados sobre os riscos associados a elementos semelhantes a jogos de azar por meio de campanhas de informação", afirmou a autora principal, Eva Grosemans, assistente de pós-doutorado na Universidade Católica de Lovaina, na Bélgica.
Para o trabalho, a equipe aplicou um questionário a 2.289 entrevistados, entre 10 e 17 anos, na Bélgica. Um ano depois, 2.197 entrevistados participaram da segunda fase. Desse total, 561 constituíram a amostra final.
Além disso, os cientistas descobriram que três em cada cinco participantes, 59,1%, interagiram com elementos semelhantes a jogos de azar em ambas as fases da pesquisa, enquanto 46,9% apostaram usando dinheiro real. Na primeira etapa, 75% dos adolescentes usaram loot boxes — pacotes de itens virtuais que contêm recompensas aleatórias — ou outros elementos semelhantes.
Conforme Flávia Marsola, psicóloga do Hospital Brasília Águas Claras, da Rede Américas, as loot boxes trabalham com a promessa de recompensa imediata. "Segundo Dan Siegel, que escreveu O Cérebro do Adolescente, esse sistema acaba funcionando com volume máximo enquanto o autocontrole continua em processo de maturação. O resultado disso é uma sensibilidade ampliada ao prazer e a tudo que é novo e que pode surpreender. Cada caixa aberta no jogo age como um pequeno experimento de risco, que ativa intensamente o circuito dopaminérgico. Tem algumas revisões de estudos que evidenciam que essa exposição aumenta a probabilidade de o jovem migrar para apostas reais no futuro."
Diferenças de gênero
Pela análise, 88.5% dos meninos se mostraram mais propensos a esse tipo de comportamento; entre as meninas, 64,1% usaram dinheiro nessas atividades. A segunda fase da pesquisa revelou que 60,3% dos participantes se envolveram em alguma forma de jogo de azar no último ano. Nesse caso, houve pouca diferença entre participantes do sexo masculino e feminino. Foram incluídas no questionário raspadinhas, a mais popular entre os voluntários, jogar na loteria e jogos de azar on-line.
Segundo Priscilla Montes, educadora e especialista em neuroeducação e desenvolvimento infantil, no Rio de Janeiro, o ponto-chave não é o videogame em si, mas o desenho comportamental utilizado, especialmente aqueles que replicam sistemas de aposta para um cérebro ainda em formação. "Educação digital, supervisão ativa e diálogo aberto são as ferramentas mais potentes. Quando pais e escolas compreendem o impacto neurobiológico desses recursos, conseguem construir ambientes mais seguros, críticos e equilibrados para que adolescentes usem tecnologia com autonomia, não como armadilha emocional."
Para Bart Soenens, professor da Universidade de Ghent e coautor da publicação, embora os efeitos observados no estudo possam parecer modestos, eles são consistentes em magnitude com o que já foi descoberto em estudos anteriores. "Análises adicionais baseadas em uma abordagem de ação racional mostraram que a atitude e a intenção em relação ao jogo desempenharam um papel mediador significativo nos efeitos de elementos semelhantes ao jogo sobre as mudanças no comportamento de jogo."
Os autores afirmaram que, apesar dos pontos fortes dos estudos, os dados apresentados devem ser interpretados com cautela. "Pesquisas futuras poderiam se beneficiar de critérios mais rigorosos para classificar o engajamento", declaram.
Conforme Grosemans, o trabalho pode ajudar a informar os legisladores sobre os efeitos negativos de diversos elementos semelhantes a jogos de azar presentes em videogames. "Os resultados desse estudo destacam a importância de ampliar o escopo das regulamentações para além das loot boxes, incluindo uma variedade de características semelhantes a apostas."
Saiba Mais
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Eu acho
Renata dos Santos, 40 anos, empresária, Niterói, Rio de Janeiro
Tenho dois adolescentes em casa, meu filho, de 16, e meu enteado, 14. Eles adoram jogar on-line e preferem isso a sair de casa. Eu e meu marido temos que "pedir" para eles andarem de bicicleta e paramos de dar opção de sair ou não conosco. Tivemos brigas quando descobrimos que eles estavam gastando com jogos o dinheiro que ganhavam, comprando novos games ou melhorando personagens. Ficamos muito decepcionados e explicamos que eles não podem gastar assim o que uma pessoa trabalha vários dias para ganhar. Acredito que os jogos são produzidos para viciar os jovens e induzi-los a gastar. Aqui em casa estamos tentando diminuir o tempo dessas atividades, mas é muito difícil porque as interações sociais dos adolescentes também estão nessa vida on-line. Sabemos disso porque, nos raros momentos de encontros presenciais, eles conversam sobre videogames.
Duas perguntas para
Artur Costa, psicanalista e professor sênior da Associação Brasileira de Psicanálise Clínica (ABPC)
Como os pais podem perceber que um adolescente está começando a se interessar demais por jogos de azar?
Um dos primeiros sinais costuma ser o aumento repentino do tempo de tela, acompanhado de uma ansiedade constante para jogar ou abrir caixas e recompensas. Muitas vezes aparecem pequenos gastos escondidos, como compras não autorizadas ou “sumiços” no cartão dos pais, além da necessidade insistente de tentar “só mais uma vez”. Irritação quando é impedido de jogar e conversas frequentes sobre chance, probabilidade, skins raras ou itens valiosos também são indicadores importantes. Sob a perspectiva psicanalítica, o alerta maior surge quando o jogo começa a funcionar como uma forma de anestesiar emoções difíceis. O que caracteriza um risco claro de envolvimento problemático com mecanismos semelhantes aos do jogo de azar.
O que pode ser feito para ajudar um jovem a não se envolver em apostas?
Três caminhos costumam funcionar muito bem na prevenção do uso problemático de jogos. O primeiro é a educação emocional: conversar abertamente sobre risco, impulsividade e manipulação digital. Os adolescentes entendem muito mais do que imaginamos, e essa troca reduz a sensação de que o assunto é proibido ou vergonhoso. O segundo é estabelecer limites claros, como tempo de tela, regras de uso e acompanhamento das microtransações. O terceiro é oferecer um ambiente afetivo estável. Quando o jovem se sente ouvido, tem vínculos fortes e mantém uma rotina equilibrada, a tendência de buscar escape emocional nos jogos diminui. Além disso, é importante estimular outras fontes de recompensa na realidade, como esporte, música ou desafios saudáveis.

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