Nutrição

Aumento no consumo de ultraprocessados gera alerta internacional

Cientistas pedem ação de governos. Grupo de 43 pesquisadores de vários países faz grave alerta contra o avanço exponencial no consumo desses alimentos, marcados por excesso de gorduras, açúcar, sal e aditivos químicos diversos

Comida ultraprocessada torna-se cada vez mais presente nas casas dos consumidores: embalagens chamativas, marketing agressivo -  (crédito: PxHere/Divulgação )
Comida ultraprocessada torna-se cada vez mais presente nas casas dos consumidores: embalagens chamativas, marketing agressivo - (crédito: PxHere/Divulgação )

Baratos, prontos para o consumo e repletos de substâncias químicas para conferir cor e sabor, os alimentos ultraprocessados (AUPs) estão significativamente associados a pelo menos 12 doenças crônicas, incluindo obesidade, câncer e depressão, além de morte prematura por todas as causas. O avanço global nas vendas desses produtos deveria ser alvo de ações governamentais, porque impõe uma grave ameaça à saúde pública. O alerta foi feito por 43 pesquisadores de vários países em três artigos publicados na revista The Lancet e em uma coletiva de imprensa on-line. 

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Depois de uma revisão robusta da literatura científica recente, os autores chegaram a 92 artigos que trazem evidências inegáveis de que o consumo excessivo de produtos ricos em gordura, açúcar e sal, além de aditivos químicos, elevam o risco de doenças graves, com um fardo considerável para a saúde pública. Embora reconheçam a necessidade de mais estudos sobre os mecanismos por trás dessa associação, os pesquisadores dizem que é urgente a adoção de ações para estimular o consumo de dietas saudáveis, com produtos in natura ou minimamente processados (veja quadro). 

"O crescente consumo de alimentos ultraprocessados está remodelando as dietas em todo o mundo, substituindo alimentos e refeições frescos e minimamente processados", defende Carlos Monteiro, professor da Universidade de São Paulo e principal autor de um dos artigos da série. Foi ele quem, em 2009, cunhou o termo "ultraprocessado" para definir produtos que passaram por tantas modificações industriais que sequer são considerados alimentos por muitos especialistas. Exemplos são biscoito recheado, refrigerante, salgadinhos, cereais açucarados e macarrão instantâneo. 

Em todo o mundo, o consumo de alimentos ultraprocessados está aumentando: no Brasil, a contribuição estimada desses produtos nas dietas passou de 10% para 23% nas últimas quatro décadas. Na Espanha, a ingestão triplicou e, nos Estados Unidos e no Reino Unido, mantém-se acima de 50% em 20 anos. "Essa mudança nos hábitos alimentares é impulsionada por poderosas corporações globais, que geram lucros priorizando grandes volumes de produtos ultraprocessados, apoiadas por extenso marketing e lobby político para impedir políticas eficazes de saúde pública que promovam uma alimentação saudável", denuncia Monteiro. 

Marketing

Na série de artigos, os autores afirmam que a indústria usa ingredientes baratos e nocivos para reduzir os custos de produção, enquanto investem em marketing agressivo e embalagens atraentes para aumentar o consumo. Estima-se que, anualmente, as vendas globais de AUPs cheguem a US$ 1,9 trilhão, o que faz desses produtos os mais lucrativos do setor alimentício. 

"Corporações poderosas — e não escolhas individuais — estão por trás do crescimento global dos alimentos ultraprocessados", denuncia Simon Barquera, pesquisador do Instituto Nacional de Saúde Pública do México e um dos autores da série. "Por meio de grupos de interesse, essas corporações frequentemente se posicionam como parte da solução, mas suas ações contam uma história diferente, focada na proteção dos lucros e na resistência a uma regulamentação eficaz."

Os autores reforçam que um poderoso lobby associado a doações políticas e brigas judiciais dificultam a adoção de políticas públicas que tentam, entre outras ações, regulamentar os ultraprocessados. Nos Estados Unidos, por exemplo, a indústria consegue impedir o destaque, nos rótulos, de ingredientes que indicam o superprocessamento e o excesso de gordura, açúcar e sal, o que já ocorre desde 2022 no Brasil. Segundo Barry Popkin, pesquisador da Universidade da Carolina do Norte e coautor dos artigos, a estratégia protege os fabricantes, em detrimento da saúde do consumidor. 

Além de restrições de marketing mais rigorosas, especialmente para anúncios direcionados a crianças, os pesquisadores propõem a proibição de ultraprocessados em instituições públicas, como escolas e hospitais, e a limitação da venda em supermercados. Os artigos citam o bem-sucedido Programa Nacional de Alimentação Escolar do Brasil, que reduziu para 15% a participação de AUPs na merenda, com objetivo de limitar o percentual a 10% no próximo ano. 

Frescos

Os autores também pedem ampliação do acesso a alimentos frescos e sugerem a tributação de alguns ultraprocessados para subsidiar itens in natura destinados a famílias de baixa renda. A médica endocrinologista Jamilly Drago, da Clínica Metasense, em Brasília, destaca a importância da educação nutricional acompanhada de ações públicas, como o destaque do excesso de sal, açúcar, sódio e gordura saturada em embalagens.

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"É fato que o ultraprocessado está relacionado com o aparecimento de doenças crônicas não transmissíveis e a diversos tipos de câncer. É importante reduzi-los especialmente da dieta da população infanto-juvenil. Políticas como a que proibiu, no Brasil, propagandas de alimentos para crianças, geram muito engajamento, assim como o aumento da taxação de produtos ultraprocessados, que são, geralmente, mais baratos", diz. "A educação continuada também é uma grande arma para a decisão de escolhas de compra."

Embora reconheçam os desafios de políticas públicas de enfrentamento ao consumo excessivo de AUPs, os autores dos estudos acreditam que não há como adiar mais a regulamentação desses produtos e a adoção de medidas contundentes. "Precisamos de uma forte resposta global de saúde pública, como os esforços coordenados para desafiar a indústria do tabaco. Isso inclui proteger os espaços políticos da influência de grupos de pressão e construir coalizões poderosas para defender sistemas alimentares saudáveis, justos e sustentáveis e resistir ao poder corporativo", acredita Phillip Baker, da Universidade de Sydney, Austrália, que participou da série da Lancet

 

O que são

 

- Alimentos in natura e minimamente processados: os primeiros são aqueles obtidos de plantas ou animais que chegam ao consumidor sem terem passado por nenhum tipo de processamento. Já os minimamente processados sofreram alterações mínimas na indústria, por meio de processos como secagem, pasteurização e fermentação, sem adição de sal, açúcar ou outra substância.

-- Alimentos processados: são derivados diretamente de alimentos in natura, mas passaram por um processo de adição de sal, açúcar, óleo ou vinagre para torná-los mais duráveis e agradáveis ao paladar. Exemplos: legumes em salmoura, extrato de tomate, carne seca, frutas em calda, queijo e pães.

-- Alimentos ultraprocessados: são formulações industriais fabricadas a partir de substâncias extraídas ou derivadas de outros alimentos (sal, açúcar, óleos, proteínas e gorduras) e sintetizadas em laboratório (corantes, aromatizantes, conservantes e aditivos). No geral, são ricos em calorias, gorduras. Exemplos: bolachas, guloseimas, sorvetes, bolos e produtos congelados e prontos para o consumo. 

Implicações à saúde

O padrão alimentar baseado em AUPs resulta na deterioração da qualidade da dieta, especialmente em relação à prevenção de doenças crônicas porque:

  • Causa desequilíbrios nutricionais (mais açúcares livres, gordura total, gordura saturada; menos fibra, proteína, vitaminas e minerais).
  • Promove o consumo excessivo (devido à alta densidade energética, hiperpalatabilidade, textura suave e matriz alimentar desorganizada).
  • Reduz a ingestão de fitoquímicos protetores.
  • Aumenta a ingestão de compostos tóxicos, desreguladores endócrinos (de embalagens) e classes e misturas de aditivos potencialmente prejudiciais.

Fontes: The Lancet Series on Ultra-Processed Foods and Human Health; nutróloga Marcella Garcez 

 

 

Três perguntas para

Ana Carolina Teixeira, nutricionista, especialista em Obesidade e Nutrição Esportiva pela Universidade de São Paulo (USP), proprietária da Clinica Evoá, em Brasilia.

Há evidências suficientes para associar os ultraprocessados com diversas doenças crônicas?

Sim. Hoje já existe um volume robusto de evidências científicas mostrando que o consumo frequente de alimentos ultraprocessados está associado a maior risco de doenças crônicas, como obesidade, diabetes tipo 2, hipertensão e doenças cardiovasculares. Esses produtos têm, em geral, alta densidade calórica, maior teor de açúcares, gorduras e sódio, além de menos fibras e micronutrientes quando comparados aos alimentos in natura ou minimamente processados. Por serem formulações industriais, muitas vezes provocam maior pico glicêmico, menor saciedade e incentivam um padrão alimentar que favorece o adoecimento ao longo do tempo. Além disso, estudos recentes apontam que não é apenas a composição nutricional que importa — mas também os aditivos, a matriz alimentar modificada e o grau de processamento, que podem impactar mecanismos inflamatórios e metabólicos.

O fato de esses produtos serem geralmente mais baratos é um atrativo em países em desenvolvimento, como o Brasil?

O preço mais baixo é um fator central na escolha alimentar, especialmente em países em desenvolvimento. Os ultraprocessados, além de baratos, têm alta durabilidade, fácil acesso e estão amplamente disponíveis. Mas não é só isso: existe também a realidade dos "desertos alimentares". Em muitas periferias e regiões mais vulneráveis, há pouquíssima oferta de alimentos frescos, como frutas, verduras e legumes. Assim, a combinação de menor acesso e menor preço dos ultraprocessados acaba direcionando o consumo para esses produtos. Ou seja, não é apenas uma questão individual, mas um reflexo das desigualdades sociais e ambientais que moldam o comportamento alimentar da população.

Quais ações poderiam ser úteis para frear o consumo de ultraprocessados?

Algumas estratégias já são debatidas e têm potencial de impacto significativo, como incentivar e subsidiar pequenos produtores locais, ampliando o acesso a alimentos frescos e encurtando a cadeia entre produtor e consumidor. Também sobretaxar bebidas açucaradas e ultraprocessados, como já acontece em outros países, destinando esses recursos para ações de promoção da saúde. Melhorar a regulação da publicidade, principalmente aquela voltada ao público infantil. Fortalecer programas como a merenda escolar, garantindo alimentos in natura e minimamente processados nas refeições oferecidas. Também são importantes políticas para facilitar o acesso físico a feiras, mercados públicos e hortas urbanas, especialmente em regiões periféricas. Além disso, uma educação alimentar e nutricional contínua, incluindo campanhas de saúde pública e inserção do tema nas escolas. Todas essas ações, somadas, ajudam a criar um ambiente alimentar mais saudável e reduzem a dependência da população em relação aos ultraprocessados. (PO)

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postado em 19/11/2025 05:10
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