Dormir permite ao cérebro selecionar informações que devem ser armazenadas e jogar fora aquilo que não é importante. Agora, a ciência descobriu novos mecanismos que podem ajudar na consolidação da memória.
Pesquisadores da Universidade de Tsukuba, no Japão, descobriram que as memórias adquiridas durante o período acordado são armazenadas de forma mais permanente durante o estágio REM do sono, e que esse processo requer a reativação de somente algumas células especializadas. A equipe se concentrou em neurônios adultos (ABNs) na região hipocampal do lobo temporal — estruturas conhecidas por serem essenciais para a manutenção da função adequada da memória, já que sua perda é observada na doença de Alzheimer.
No estudo, modelos animais foram expostos a uma experiência de medo, e os pesquisadores examinaram se a atividade dos ABNs durante a formação inicial da memória era reproduzida durante o sono REM, quando se acredita que os sonhos ocorrem. Os cientistas descobriram que os neurônios foram reativados em padrões semelhantes aos observados durante o aprendizado e que, quando essa atividade foi bloqueada artificialmente, os camundongos apresentaram comprometimento da capacidade de lembrar.
Além disso, os pesquisadores descobriram que, para que as memórias se consolidem, são necessários três ABN com atividade sincronizada, em uma onda rítmica de atividade mais branda, denominada ritmo teta. Para os cientistas, essas descobertas representam um avanço no entendimento de como o cérebro processa e preserva experiências durante o sono.
Prevenção
Para Lúcio Huebra, neurologista, médico do sono e membro do Conselho Administrativo da Academia Brasileira do Sono (ABS), o detalhe mais interessante da pesquisa é que, para consolidação da memória, o número mínimo de neurônios a ser ativado no hipocampo importa menos do que o momento e a frequência dessa ativação. "Isso reforça uma ideia simples, mas marcante: dormir bem é essencial para a memória! E respeitando todos os estágios do sono, especialmente o sono REM. Cuidar disso pode ser uma ferramenta fundamental para prevenção de doenças neurodegenerativas, como o Alzheimer."
Dormir pensando em um problema pode ajudar a resolvê-lo no dia seguinte. A atividade cerebral rítmica durante o sono transforma informações relacionadas à tarefa em memórias mais fortes e de longo prazo. Um artigo publicado recentemente na revista J Neurosci sobre a pesquisa liderada por Dara Manoach, da Escola Médica de Harvard, nos Estados Unidos, avança na compreensão de como essa atividade rítmica no cérebro parece melhorar o aprendizado.
Segundo Andrea Bacelar, neurologista, neurofisiologista, especialista em medicina do sono e membro titular da ABS, a publicação é muito promissora. "Um cochilo ou uma noite sem dormir, sabidamente, vai interferir no desempenho daquela nova função aprendida, isso já é bem estabelecido na literatura. O que esse estudo tenta comprovar é que a área motora é ativada durante o sono."
No estudo, 25 participantes aprenderam uma sequência de digitação enquanto os pesquisadores registravam sua atividade cerebral. Após o treinamento, as gravações cerebrais continuaram enquanto os voluntários dormiam.
Durante o sono, as áreas corticais do cérebro ativadas no treinamento apresentaram mais atividade. O aumento dos ritmos cerebrais nessas regiões se relacionou com o quanto os participantes melhoraram na tarefa após o cochilo. Além disso, o desempenho pré e pós-cochilo teve diferentes correlatos neurais. O aprendizado inicial foi associado ao aumento dos ritmos cerebrais nas áreas de execução de movimento durante o sono, enquanto o desempenho pós-cochilo foi associado ao aumento dos ritmos cerebrais nas áreas de planejamento de movimento durante o sono.
"Os ritmos cerebrais ocorrem em todas as partes do cérebro durante o sono. Mas os ritmos nessas regiões aumentam após o aprendizado, presumivelmente para estabilizar e melhorar a memória", relataram os pesquisadores.
Microbiota intestinal interfere na insônia
Pesquisas recentes estão ampliando a compreensão sobre o papel do microbioma intestinal no sono, sugerindo que dormir pode depender não somente do cérebro, mas também da complexa interação entre os micro-organismos internos e os sistemas biológicos humanos. Os trabalhos revelam como estes pequenos seres influenciam na insônia e em algumas funções cognitivas.
Um estudo publicado na revista General Psychiatry identificou ligações recíprocas entre certos grupos de bactérias intestinais e o risco de insônia. A pesquisa reuniu dados de mais de 386 mil pessoas com insônia e informações sobre o microbioma intestinal de 26 mil indivíduos.
Os resultados comprovaram que 14 grupos de bactérias estavam associados a um aumento de 1% a 4% na probabilidade de insônia, enquanto oito classes estavam relacionadas a uma redução de 1% a 3% do risco. Além disso, pessoas com dificuldades para dormir demonstraram redução na abundância de sete grupos bacterianos e aumento de até quatro vezes em 12 outros. Os micro-organismos Odoribacter destacaram-se pela forte ligação com a insônia.
Segundo os autores do artigo, há uma relação bidirecional complexa entre insônia e microbiota intestinal, mediada por vias imunológicas, inflamatórias e neuroquímicas. Para eles, o estudo abre caminho para novos tratamentos inspirados no microbioma, como o uso de probióticos, prebióticos ou até transplantes de microbiota fecal.
Tudo ligado
Enquanto isso, uma equipe da Universidade Estadual de Washington, nos Estados Unidos, alcançou uma nova compreensão sobre o sono. Em pesquisas publicadas na Frontiers in Neuroscience e na Sleep Medicine Reviews, os cientistas descobriram que o peptidoglicano — uma substância presente nas paredes das bactérias — é encontrado naturalmente no cérebro de modelos animais, em níveis que variam conforme o ciclo do sono e a privação de descanso.
Erika English, autora principal dos estudos, sugeriu que o sono emerge da comunicação entre o corpo e os microrganismos presentes nele — uma "condição holobionte" na qual o ser humano e seu microbioma funcionam como um sistema integrado. Essa hipótese combina duas visões tradicionais, a do sono regulado pelo cérebro e a do "sono local", observado em redes celulares espalhadas pelo organismo
De acordo com os pesquisadores, o sono seria um processo emergente de múltiplos níveis de organização biológica, coordenado entre células humanas e bactérias simbióticas. James Krueger afirmou ainda que o sono pode ter origem evolutiva nas próprias bactérias, cujos ciclos de atividade e inatividade teriam inspirado mecanismos que evoluíram mais tarde em organismos complexos.
Humor
Maria Fernanda Naufel, nutricionista, pesquisadora pela Universidade Federal de São Paulo e coordenadora do Núcleo de Nutrição da ABS, frisou que cuidar do intestino é cuidar do sono. "A ciência mostra que, ao promover um microbioma equilibrado — com boa alimentação, hábitos regulares e, em alguns casos, uso de prebióticos e probióticos — podemos melhorar o humor, reduzir o estresse e dormir melhor."
"O artigo destacou que esses microrganismos também se comunicam com o cérebro e influenciam o sono. Quando o equilíbrio da microbiota intestinal é quebrado, o corpo entra em desequilíbrio, e o descanso pode piorar", completou a especialista.
Duas perguntas para
Andrea Bacelar, neurologista, neurofisiologista, especialista em medicina do sono e membro titular da Academia Brasileira do Sono
Qual a importância de dormir bem e o que pode afetar um bom sono?
Dormir bem é essencial para a vida. Certamente, o indivíduo que negligencia essa necessidade voluntariamente ou tem algum problema, algum distúrbio de sono e não o trata, vai ter comprometimento mental e físico em médio e longo prazo. Não podemos deixar de entender as funções já bem definidas que o sono determina na nossa vida. Logicamente, doenças físicas, mentais, medicações e uso de substâncias podem interferir negativamente nesse sono. Temos que cuidar e olhar para o que estamos ingerindo, como estimulantes, energéticos, remédios e drogas ilícitas também.
Como o cérebro e o corpo adormecem?
O sono é um fenômeno involuntário, então a cada 24 horas, por conta desse ritmo circadiano, a gente vai obrigatoriamente, involuntariamente, adormecer pelo excesso de peptídeos, de proteínas que vão se acumulando durante o dia, gerando essa vontade de dormir. Além disso, estar no escuro faz com que a gente produza hormônios que também vão dizer para as nossas células que é hora de desacelerar para entrar em sono.