
Nos últimos anos, a inteligência artificial (IA) deixou de ser apenas uma ideia futurista para se integrar ao cotidiano de muitas pessoas. Hoje, ela participa de decisões rotineiras, cria conteúdos, fornece informações e influencia dinâmicas sociais e econômicas. Diante desse cenário, surgem questões essenciais: o que a IA pode fazer? Quais limites devem ser impostos ao seu uso?
Com essa perspectiva, o Senado Federal aprovou, no último ano, o marco regulatório da inteligência artificial no Brasil. A proposta visa estabelecer regras para o desenvolvimento e a utilização responsável da tecnologia, assegurando segurança jurídica, ética no uso da IA e a proteção de direitos fundamentais e autorais.
O texto substitutivo tem como base o Projeto de Lei 2.338/2023, do senador Rodrigo Pacheco. O projeto surgiu a partir de um anteprojeto elaborado por uma comissão de juristas e incorporou trechos de outras sete propostas legislativas, incluindo o PL 21/2020, já aprovado pela Câmara dos Deputados, além de emendas apresentadas por senadores durante a tramitação.
Antes de ser votada em plenário, a proposta foi analisada por uma comissão temporária, que realizou 14 audiências públicas com ampla participação da sociedade civil, especialistas em tecnologia e inovação, representantes do setor público e da iniciativa privada.
Fabiano Carvalho, especialista em transformação digital e CEO da Ikhon, empresa de tecnologia da informação, destaca que, se aprovado definitivamente, o texto exigirá que empresas e desenvolvedores de IA adotem medidas como transparência, explicabilidade, segurança da informação e prevenção de impactos discriminatórios. Caso essas obrigações não sejam cumpridas, os responsáveis poderão ser penalizados por eventuais danos.
Entre os mecanismos previstos estão a rastreabilidade e a auditabilidade dos sistemas, o que permitirão identificar com clareza quem desenvolveu e quem operou cada tecnologia, elementos essenciais para a responsabilização penal, civil e administrativa em casos de uso indevido. O projeto também estabelece regras específicas para as inteligências artificiais generativas, com o objetivo de coibir fraudes, manipulação da opinião pública e disseminação de desinformação.
"As novas regras exigirão adaptações significativas nos sistemas de IA já em uso no Brasil, que deverão se adequar às exigências do marco regulatório, como a implementação de mecanismos de supervisão, transparência na coleta e no uso dos dados, documentação contínua e avaliações de risco", detalha Fabiano.
Para a advogada Layla Abdo, especialista em inteligência regulatória e presidente da Comissão Especial de Inteligência Artificial do Conselho Federal da OAB, o projeto tem como eixo central a valorização da pessoa humana. "O PL subordina a inovação tecnológica à proteção dos direitos fundamentais e à preservação do regime democrático, adotando uma lógica de risco escalonado que impõe obrigações proporcionais ao potencial de impacto dos sistemas de IA", afirma.
Ela também destaca que a relação entre inovação e proteção de direitos é uma das questões mais sensíveis do debate. "Durante a tramitação no Senado, foram apresentadas mais de 240 emendas ao texto original. Isso demonstra a relevância do tema e o esforço dos parlamentares em construir um marco regulatório robusto", completa.
Um dos pilares da proposta é a classificação dos sistemas de IA conforme o grau de risco que representam à vida humana e aos direitos constitucionais. Quanto maior o risco, maior o nível de exigência regulatória e fiscalização. Essa abordagem busca garantir um controle proporcional ao impacto potencial de cada tecnologia.
"Essa abordagem é juridicamente adequada por ser proporcional e eficiente, e representa uma harmonização regulatória que facilita o comércio com um dos maiores mercados do mundo, a Europa que já adota o método", explica a advogada.
O projeto também determina que os cidadãos sejam informados sempre que estiverem interagindo com sistemas automatizados e exige a identificação clara de conteúdos gerados ou modificados por IA, como os deepfakes. "A transparência nesse processo é fundamental para proteger a autonomia individual, evitar manipulações e promover uma relação de confiança com a tecnologia", afirma Layla Abdo.
Outro ponto relevante é a garantia dos direitos autorais. Os autores de obras utilizadas no treinamento de sistemas de IA deverão ser devidamente remunerados e ter seus direitos preservados. Além disso, o uso de imagem ou voz de qualquer pessoa em conteúdos gerados por IA dependerá de consentimento explícito.
"Ao garantir direitos autorais e o consentimento informado, o projeto protege criadores de conteúdo e evita a apropriação indevida de materiais em áudio, texto ou vídeo, promovendo um ambiente tecnológico mais justo e ético", ressalta a especialista.
Para que essas medidas sejam cumpridas, o projeto de lei propõe a criação do Sistema Nacional de Regulação e Governança de Inteligência Artificial (SIA). Ele será coordenado pela Autoridade Nacional de Proteção de Dados (ANPD) e terá como papel regulamentar sistemas de alto risco, realizar estudos frequentes para aprimorar a legislação e adotar medidas de fiscalização para garantir que o uso da inteligência artificial esteja em conformidade com a lei.
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Na visão de Fabiano Carvalho, o marco regulatório cria um ambiente de maior segurança jurídica, um dos principais fatores levados em conta pelos investidores na hora de tomar decisões e realizar investimentos. "A regulamentação não impede o desenvolvimento de sistemas no país, apenas organiza as tecnologias dentro de parâmetros que respeitam a privacidade de dados e a proteção das pessoas", afirma.
O especialista em transformação digital também defende a necessidade de integrar o marco regulatório da IA com outras legislações existentes, como a Lei Geral de Proteção de Dados (LGPD), para evitar sobreposição de competências e detalhar procedimentos como auditoria e critérios para avaliação de risco.
"Um dos principais riscos das IAs é a ameaça à privacidade, já que os sistemas atuais coletam e processam grandes volumes de dados pessoais sem o devido controle. Também há o risco de reprodução e amplificação de discriminações, além da criação de conteúdos enganosos como deepfakes", detalha.
Agora o texto substitutivo segue para análise na Câmara dos Deputados, onde será discutido, votado e, se aprovado, sancionado pelo presidente da República.
Direito e Justiça
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