Visão do Direito

Visão do Direito: A mulher e a faca

Quando a Lei Maria da Penha foi editada não faltaram vozes questionando sua razoabilidade

Leonardo Jubé de Moura, promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios
 -  (crédito:  MPDFT/ Divulgação)
Leonardo Jubé de Moura, promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios - (crédito: MPDFT/ Divulgação)

Por Leonardo Jubé de Moura* — Existe um fato cuja realidade nem o mais impermeável espírito anda conseguindo negar. A estranha, empedernida e virulenta violência contra a mulher.

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Quando foi editada a "Lei Maria da Penha" (Lei nº 11.340, de 2006), não faltaram vozes questionando sua razoabilidade. Falava-se em excesso ideológico, em feminismo tóxico, em "lei joão da penha".

Ainda hoje, veem-se circular vídeos com uma versão alternativa, supostamente contramajoritária, como se resgatasse uma verdade escondida, questionando o calvário sofrido por ninguém menos que a própria senhora Maria da Penha, cujo nome se transformou em símbolo de luta e de justiça. Essa mulher era estudiosa, trabalhava e foi atingida por um tiro quando estava em casa, na cama dormindo. Ficou paraplégica. Eram os anos 80, voltou para casa e tornou a ser agredida. A Polícia Técnica do Ceará, estado conhecido pelas belezas naturais e pelo tradicional machismo, concluiu que os vestígios desmentiam a versão absurda do agressor, de que teriam sofrido uma tentativa de assalto.

Assaltantes que esquecem o macho e atiram contra uma mulher deitada. O seu caso precisou da condenação por dois Júris populares (o primeiro foi anulado) e de reconhecimento de negligência do Estado brasileiro pela Comissão Interamericana de Direitos Humanos da OEA.

Veio a Lei nº 13.104, de 2015, com a figura penal do feminicídio. Ecoaram vozes, de respeito, dizendo que era coisa ideológica, desnecessária, pois já havia o crime de homicídio e suas hipóteses agravantes ("qualificadoras", então previstas no §2º do art. 121 do Código Penal). Eu, Promotor de Justiça do Tribunal do Júri por duas décadas, fui uma dessas vozes.

Mas a realidade dos fatos se impõe. Atuei em casos, e não foram poucos, em que a mulher, quando sobrevivia, prestava depoimento a favor do agressor, mesmo mutilada, retalhada, queimada. Muitas vezes, a família da vítima louvava o agressor, porque era um "homem de bem" e bom provedor.

Há poucos dias, Brasília, a Capital Federal (art. 18, §1º, da Constituição), ficou conhecendo uma moça jovem, bonita, dedicada a ponto de ousar: ingressou nas fileiras do Exército Brasileiro, com a sensibilidade e o encanto da arte musical. Motivo de orgulho para a família, os amigos, a sociedade e mesmo para Instituição que, forte na memória de Caxias, conta com uma ímpar credibilidade da nação.

Todavia, ficou conhecida tarde demais. Sucumbiu em sangue, traída por uma faca. Uma faca guiada por um macho, valente em sua covardia, que, por infelicidade do destino, também vestia uma farda.

A Constituição afirma, entre os direitos e garantias fundamentais, que o Tribunal do Júri é competente para julgar os crimes dolosos contra a vida (art. 5º, XXXVIII, "d"). Diz a mesma Carta de 1988, é certo, que à Justiça Militar compete julgar os crimes militares definidos em lei (art. 124). Com razão, pois uma Justiça especializada está apta a compreender as peculiaridades de fatos que atingem a caserna.

Em 2017, a Lei nº 13.491 trouxe uma previsão do que se chama de "crimes militares por extensão", quando praticados "por militar em situação de atividade ou assemelhado, contra militar na mesma situação ou assemelhado". A Lei nº 14.688, de 2023, aprimorou a redação para: "militar da ativa contra militar na mesma situação".

Ocorre que não se fez qualquer menção ao crime de homicídio, menos ainda ao hediondo feminicídio, que, desde sua criação, vem recebendo tratamento diferenciado pela legislação, como categoria máxima da violência contra a mulher.

Aí o cidadão se pergunta: quem foi a vítima de maior relevo, a moça ou o quartel? Ora, o pundonor castrense segue preservado pelo julgamento de crimes próprios, como a prática de atos impróprios na caserna, o desprezo pelo patrimônio militar. Além disso, a punição disciplinar, conforme os rígidos valores militares, aplica-se em sua integralidade.

O Júri popular tem tradição secular em nosso país. Respeitadas as críticas, é inegável que se cuida da expressão maior da democracia no âmbito judiciário, uma peculiar democracia direta, exercida pelos cidadãos.

A legislação — mesmo tão criticada, sobretudo no início — elevou a proteção à integridade da mulher de forma destacada. O dia a dia não deixa margem a dúvidas: enquanto os homicídios vêm diminuindo sensivelmente (por fatores diversos, com destaque para boas políticas de segurança pública), os feminicídios aumentam, perdendo-se no anonimato das estatísticas. Esse infortúnio, essa nova mácula para o senso mínimo de humanidade, faz lembrar um belo poema, de João Cabral de Melo Neto, pernambucano: "A mulher e a casa".

Reconhecendo a sedução desse ser de "plácida elegância", que desafia a contemplação. Mulher, que tem suas "paredes bem revestidas". Mulher, firme, significativa e bela como uma casa, como um lar. Mulher, que não foi feita para ficar em casa. Foi feita para ficar onde quiser, e onde chega conquista, com naturalidade, o seu lugar, até mesmo nas exigentes Forças Armadas.

Homens, machos, reconheçamos-nos machistas, como eu reconheço que sou, mas não sejamos covardes. A sociedade não aguenta mais. O tempo passa e é inexorável. O mundo tem seus relógios. É preciso reconhecer que estamos bem atrás dos ponteiros. A covardia precisa de freio, mas ao Estado, à Polícia, até mesmo ao Exército, não é viável a onipresença.

Aqui não se escreve uma solução, apenas uma reflexão. Já basta de (tomando de empréstimo outros versos do mesmo poeta) "imagens de furor", com "bala, relógio ou faca".

Promotor de Justiça do Ministério Público do Distrito Federal e Territórios* 

 

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Por Opinião
postado em 18/12/2025 05:00
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