Vai fazer falta!

Outro Calaf se despede em grande estilo e celebra sua trajetória de cultura

Depois de 32 anos, o Outro Calaf, bar tradicional da cidade, que abrigou múltiplas vertentes musicais, fecha as portas, sob a pressão da pandemia

Pedro Almeida*
postado em 05/03/2022 06:00 / atualizado em 05/03/2022 09:23
 (crédito: Divulgação/Shake It)
(crédito: Divulgação/Shake It)

No dia 13 de março de 2022, após 32 anos de funcionamento, o bar e restaurante Outro Calaf encerrará as atividades. Abalada pela crise pandêmica e pela falta de apoio ao setor, a casa, importante para a cultura brasiliense, fechará as portas, mas não sem antes preparar uma programação de despedida.

É uma terça-feira como qualquer outra. Um trabalhador termina o expediente em um dos grandes prédios do Setor Comercial Sul, desmancha o nó da gravata e atravessa a Galeria dos Estados em direção ao Setor Bancário Sul. Após o dia estressante, encontra respiro em uma roda de samba acompanhada de cerveja bem gelada e quibe recheado. No dia seguinte, quarta-feira, uma aluna da Universidade de Brasília, após ser liberada da matéria optativa noturna, embarca na linha de ônibus 110 em direção à Rodoviária. Ao chegar, decide caminhar para encontrar os amigos de curso em uma festa e tomar uns drinques antes de voltar para casa. Ambas as situações se passam no Outro Calaf. O espaço, que nasceu em 1990, tornou-se baluarte da cena cultural brasiliense. Das clássicas rodas de samba e choro às festas universitárias alternativas, todos tiveram espaço. Com o fechamento da casa, Brasília, que luta contra o caráter funcional de capital política, perde um grande aliado e se vê cerceada.

Em 1990, o geólogo Venceslau Calaf, de origem catalã, resolveu, com a esposa, trazer um pouco da culinária espanhola para aquele que seria o primeiro restaurante do Setor Bancário Sul. Em 18 de junho daquele ano, nascia o Bar do Calaf. As refeições, que criavam diálogo entre Espanha e Brasil, ganharam notoriedade ainda nos anos 1990. Foi em 2000, contudo, que o leque começou a se abrir. Wilson Kunka, percussionista e amigo de Calaf, reuniu os colegas músicos e convenceu o gerente a implementar música aos sábados. A iniciativa foi bem-sucedida e transformou os sábados com samba e choro em um marco. Pouco tempo depois, Pezão e Barata ocuparam as noites de segunda-feira com a festa Criolina, uma das mais importantes da capital. Gradualmente, o estabelecimento abriu as portas todas as noites para os mais variados estilos musicais. A cena cultural havia encontrado uma nova casa.

Em 2022, a pandemia espalhou um toque de recolher pelo mundo e fez com que o setor cultural sangrasse. Com o Outro Calaf, não foi diferente. Priscila Calaf, filha e sócia de Venceslau, relembra as dificuldades: "Desde o início da pandemia, em março de 2020, viemos lutando para manter o Calaf aberto. Nos primeiros seis meses, mantivemos todos os nossos funcionários em casa, com salário integral. Infelizmente, não há políticas públicas para o setor cultural, e essa nova leva de proibições, incluindo proibição de cobrança de ingressos, foi o que jogou uma pá de cal na nossa situação econômica, que já estava muito frágil". Diante de tal encruzilhada, Priscila não viu outra saída: "Fechar tornou-se então a única solução. Uma de nossas maiores preocupações atuais é a recolocação de nossos funcionários no mercado de trabalho — uma equipe maravilhosa, profissional, dedicada, com mais de 20 anos de casa. São dezenas de empregos diretos e indiretos perdidos com o nosso fechamento. Mais um palco da cidade que se cala, mais um bar que se fecha, como os outros 3 mil que fecharam desde a pandemia no DF".

Ao olhar para trás, Priscila relembra com carinho a trajetória e os marcos do espaço: "Os sambas de sábado e as noites de segunda marcaram toda uma geração de brasilienses. A roda de samba do 7 na Roda, há 14 anos tocando todas as terças no Calaf, é um momento de comunhão. As edições do Samba Urgente em que colocamos 8 mil pessoas nas ruas da frente do Calaf. Grandes nomes da música nacional nos nossos palcos: Nelson Sargento, Otto, Karina Buhr, Urias e muito mais gente. Temos muito orgulho de ter sido um celeiro de cultura da capital — no nosso palco, sempre teve espaço pra todo mundo, iniciante ou famoso". Ao se depararem com o anúncio do fechamento, os frequentadores trataram de mostrar o apreço pelo espaço na internet. Calaf ficou entre os assuntos mais comentados do Brasil no Twitter.

"Estamos sendo inundados por mensagens de amor, de apoio, de solidariedade. Muita gente lembrando dos bons momentos que viveram no Calaf, muitos músicos e produtores se prontificando a ajudar no que for necessário. Nós só temos a agradecer. Resistência, luta, cultura, celebração: é o que fomos e o que a cultura brasiliense continuará sendo", afirma Priscila.

O samba

Breno Alves canta e toca pandeiro no grupo de samba 7 na Roda, residente do Calaf às terças. O artista remonta a criação do grupo e a importância do estabelecimento para isso: "O grupo era só uma reunião de amigos. Na época, em 2007, só havia show em palco, não existia roda de samba. Nós surgimos com a ideia de fazer a roda entre amigos. Começamos a tocar na terça-feira e a coisa foi ficando séria. Decidimos virar um grupo. Primeiro, veio a roda; depois, o grupo. Se não fosse o Calaf, esse grupo não teria existido". O cantor ainda reflete sobre o impacto do fechamento e a perda de uma praça importante: "Uma coisa é a gente falar de uma casa que é reduto de um gênero só, que, por si só, já seria muito; mas o Calaf é um abrigo de diferentes vertentes. Lá, acontece de tudo. Tem várias tribos. É um impacto profundo. Fechando um polo cultural desses, você perde uma janela importante para expor seu trabalho".

As lembranças e os momentos marcantes, felizmente, ficam: "Foi especial quando comecei a tocar aos sábados. Foi uma grande escola para mim. Comecei a tocar com os meus mestres, meus professores. Aprendi muito. Com o 7 na Roda, tivemos momentos especiais acompanhando grandes músicos. Na nossa terça-feira, recebemos Nelson Sargento, mestre Monarco, Toninho Geraes, Zé Katimba, Mauro Diniz, Marquinhos Diniz… Sem contar as inúmeras vezes que um artista apareceu sem que esperássemos. São diversas lembranças especiais", relembra Breno. O pandeirista reforça a importância e a ajuda do bar para o grupo: "Calaf nos ajudou muito financeiramente e logisticamente. Nos ajudou na gravação dos dois discos. Sempre que precisávamos de alguma coisa, eles estavam dispostos a ajudar. No dia da gravação do nosso disco, eles mandaram refeição para todo mundo no estúdio. É uma parceira que dói (perder). A nossa história existe, com toda certeza, por conta do Calaf".

As festas

Envolvido há 20 anos com produção cultural em Brasília, Daniel Spot já esteve à frente da produtora de discos e eventos Abismado, do programa de entrevistas Nome na lista, do evento Cineme-se, atua como DJ na noite brasiliense e produziu a festa Moranga, um dos marcos do Calaf. A festa acontecia às quartas e arrastou a juventude brasiliense para o Setor Bancário Sul. Segundo Spot, o local foi crucial pelas oportunidades dadas aos produtores e músicos iniciantes: "O Outro Calaf teve um papel muito importante.

Fundamental, eu diria. Ele proporcionou profissionalização. A gente já fazia eventos há muito tempo, mas o nível de estrutura que nós tínhamos no Calaf era único. O espaço maleável permitia que você fizesse eventos para 200 ou mil pessoas. Além disso, por ser uma casa muito tradicional, isso ajudava na divulgação. Quem não conhecia a festa acabava conhecendo por lá. As pessoas frequentavam independentemente da atração do dia". E completa: "Era uma casa com curadoria bem específica. Era um palco que dava espaço para artistas alternativos. Muita gente que não tinha um público para lotar uma casa enorme, mas que tinha um público cativo, conseguia lotar o Calaf. A cidade tem essa carência de casas de show com espaço médio. Por isso, não há outra casa com as características do Calaf hoje em dia".

No Calaf, Daniel soma centenas de festas ao longo de cinco anos. Quando perguntado sobre as memórias, ele recorda com bom humor: "Os momentos inusitados são os mais marcantes. Fizemos a Moranga 'na laje', em que enchemos uma piscina de 10 mil litros no Calaf; a Moranga 'rodeio', em que colocamos um touro mecânico; e até a festa Moranga 'topa tudo por dinheiro', em que imitávamos dinâmicas de palco do Silvio Santos". Apesar do fim, o produtor encontra otimismo no legado: "Todo mundo tem uma história no Outro Calaf. Muita gente se conheceu lá, namorou lá. Pessoas que me marcaram e eu levo para a vida, eu conheci na casa. A questão da formação de produtores e de DJs. Muita gente começou lá. Era uma casa aberta ao novo".

Para quem deseja se despedir, o Outro Calaf prepara uma programação de despedida. Até o dia 13 de março, data do encerramento, produtoras de eventos que passaram pela casa nos últimos anos serão convidadas a retornar e fechar o ciclo. O bom e velho samba também terá espaço no adeus. Para saber mais sobre os últimos brindes, basta acessar as redes sociais do Outro Calaf.

Estagiário sob a supervisão de Severino Francisco

 


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Sarra da independência, 
no Calaf
    Festa Sarra da independência, no Calaf Foto: Divulgação/Shake It
  • Daniel 
Spot: baladas inesquecíveis 
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    Daniel Spot: baladas inesquecíveis no espaço Foto: Shake it
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    Grupo 7 na Roda: trupe nasceu no Outro Calaf Foto: Daniel Basil
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