CINEMA

Conheça a atriz brasiliense que teve seu primeiro filme premiado em Berlim

Mirella Façanha estrela, ao lado de Fernanda Vianna e Bruna Linzmeyer, o longa-metragem Cidade; Campo, de Juliana Rojas, que trouxe da Alemanha o prêmio de Melhor Direção. Com equipe feminina, produção retrata e celebra mulheres brasileiras

Mirella Façanha, atriz brasiliense -  (crédito: Feliz Trovoada)
Mirella Façanha, atriz brasiliense - (crédito: Feliz Trovoada)
postado em 05/03/2024 18:16 / atualizado em 05/03/2024 18:16

"Não acredito que podemos nos encaixar no mercado de trabalho, porque para se encaixar precisamos nos apequenar, e a sensação de viver espremidas vai nos matando aos poucos…" Essa é a opinião de Mirella Façanha, atriz brasiliense que estrela, ao lado de Fernanda Vianna e Bruna Linzmeyer, o longa-metragem Cidade; Campo, de Juliana Rojas. O filme foi rodado na cidade de São Paulo e na zona rural do Mato Grosso do Sul, e apresenta personagens que vivem a migração entre áreas urbanas e rurais. Além de ter sido o único representante do Brasil nesta edição da Berlinale Encounter, mostra competitiva paralela do Festival de Berlim, foi indicado em três categorias — incluindo Melhor Filme — e trouxe na bagagem o prêmio de Melhor Direção.

"Precisamos urgentemente seguir construindo novas possibilidades de subjetividades no audiovisual. Desejo que Cidade; Campo possa trazer novas perspectivas para o imaginário coletivo em relação a corpos como o meu na cena”, defendeu. Após passar pelo tapete vermelho do grandioso evento da capital alemã em seu primeiro longa-metragem, Mirella — que é gorda e portadora de esclerose múltipla (sob controle) —, refletiu sobre as possibilidades de inserção no mercado audiovisual. Antes desta produção, todos os convites que recebeu para o audiovisual eram, segundo ela, para personagens subalternizadas e estereotipadas, dentro da rasa análise que o mercado tinha em relação ao seu fenótipo.

"Acredito que o audiovisual é documento histórico do nosso tempo, e se continuarmos a perpetuar a ausência de algumas existências nas telas, estaremos excluindo mais uma vez grande parte da população. Não podemos repetir a história", afirmou a multiartista, que chegou a estudar três anos de artes cênicas na Universidade de Brasília (UnB), mas se formou na Escola de Arte Dramática (EAD) da Universidade de São Paulo (USP).

Com Bruna Lizmenyer, a atriz brasiliense Mirella Façanha protagonizou o filme Cidade; campo, premiado em Berlim
Com Bruna Lizmenyer, a atriz brasiliense Mirella Façanha protagonizou o filme Cidade; campo, premiado em Berlim (foto: Divulgação)

Foi em meio à toda vivência da época de incertezas da pandemia de covid-19 que a atriz, diretora e dramaturga do espetáculo teatral Isto é um negro?, recebeu em sua casa Alice Wolfenson e Juliana Rojas, respectivamente a produtora de elenco e a diretora e roteirista de Cidade; Campo, e aceitou a missão de estrear como atriz em um produto audiovisual. Na ocasião, Mirella estava saindo de um período de adoecimento grave.

"Para terminar esse filme foi muita luta. O processo foi interrompido muitas vezes, num momento muito difícil no nosso país, então foi muito emocionante viver o nascimento do filme no mundo, poder acompanhar a boa recepção do público e a alegria de poder me assistir pela primeira vez numa tela de cinema em um trabalho que acredito e admiro tanto. Ainda estou reverberando tudo que senti quando a Juliana ganhou o prêmio de melhor direção, admiro muito ela e o cinema que ela faz", celebrou a intérprete da protagonista Flávia, ressaltando, ainda, que o longa traz uma equipe formada majoritariamente por mulheres.


Confira a entrevista que Mirella Façanha concedeu ao Correio:

 

Mirella Façanha, atriz brasiliense
Mirella Façanha, atriz brasiliense (foto: Feliz Trovoada)

Mirella, como foi a "façanha" de representar o filme de estreia em uma mostra internacional, fora do país, e voltar com um prêmio na bagagem?

Por admirar e conhecer o festival, sempre desejei que o filme tivesse sua estreia lá porque, pela sua curadoria, sempre achei que era o lugar perfeito pra gente. Para terminar esse filme foi muita luta. O processo foi interrompido muitas vezes, em um momento muito difícil no nosso país, então foi muito emocionante viver o nascimento do filme no mundo, poder acompanhar a boa recepção do público e a alegria de poder me assistir pela primeira vez numa tela de cinema em um trabalho que acredito e admiro tanto. Ainda estou reverberando tudo que senti quando a Juliana (Rojas) ganhou o prêmio de melhor direção, admiro muito ela e o cinema que ela faz. Poder representar o cinema brasileiro nessa premiação significa muito. Voltar pra casa com um prêmio desses na bagagem significa muito, é ter uma das maiores diretoras de cinema do Brasil tendo seu trabalho reconhecido em uma das maiores competições de cinema do mundo. Espero que isso posso abrir muitas portas pro nosso filme, e que essa história tão importante de mulheres brasileiras possa ser contada em muitos lugares e dialogar com muitas pessoas mundo afora.

Cidade; Campo fala da migração. Na vida real, você fez o caminho inverso de sua personagem no filme, deixando a tranquilidade de Brasília pelo caos de São Paulo. Como foi essa transição?

Eu sempre disse que nunca moraria em São Paulo… Já tinha vindo pra cá algumas vezes pra acompanhar programa culturais que eu não tinha acesso em Brasília, e me espantava muito com o tamanho da cidade e a quantidade de informação. Sou muito conectada com a natureza, e viver numa metrópole tão gigante parecia incabível pra mim naquele momento. Paguei a língua (risos)! Eu não estava feliz profissionalmente em Brasília… Comecei a trabalhar com teatro ainda criança, tinha o desejo de ter um tempo para aprofundar meus estudos e me desafiar. Cheguei a cursar três anos de artes cênicas na UnB, tive encontros muito potentes, mas quando você começa a trabalhar muito cedo parece que o caminho vai ficando monótono quando você cresce. E eu sentia a necessidade de conhecer outros pontos de vista, outras referências, outras paisagens... Só nunca imaginei que seria trocando o céu por arranhas-céus que eu me encontraria (risos). Ter migrado de Brasília pra São Paulo não foi fácil… demorei bastante para me adaptar a essa cidade complexa e imensa, trocar o céu ao alcance dos olhos da minha cidade foi um choque. Durante muito tempo, me senti lenta em relação ao ritmo das pessoas que viviam aqui. Muitas informações o tempo todo, visuais e sonoras, deslocamentos longos diariamente… Mas, como toda experiência não é só uma coisa, enquanto buscava incansavelmente encontrar como era dar conta de quem eu era nessa imensidão, foi um momento de muita alegria e coragem. Estava estudando na EAD da USP, lugar que assentei minhas escolhas enquanto artista, onde tive encontros e parcerias que hoje se tornaram minha família, pude aprofundar meu pensamento crítico e, com alguns professores, pude me reconhecer em linguagens que eu nem sabia que existiam, em especial o encontro com Cristiane Paoli Quito, que me apresentou um mundo dentro da atuação que foi um divisor de águas na minha trajetória e carrego comigo até hoje. Também é lá que nasce o Isto é um negro?, trabalho que me deu a oportunidade de viajar o mundo fazendo teatro com aquilo que acredito e acho necessário estar na cena. Sou feliz por ter feito essa migração, e espero seguir migrando enquanto estiver viva. É o movimento e os novos conhecimentos que me nutrem enquanto pessoa e, consequentemente, enquanto profissional.

O que você tem a dizer a mulheres que têm o seu tipo físico em relação ao encaixe no mercado de trabalho, especialmente em áreas onde a estética dá o tom?

Que se cuidem antes de qualquer coisa — psiquicamente, espiritualmente, energeticamente, como fizer sentido para cada uma. Não precisamos ser fortes a qualquer custo e nem dar conta de tudo sempre… Esse processo de ser fortaleza o tempo todo para lutar com o mundo por dignidade e reconhecimento nos desumaniza. Já sabemos como funciona a normatividade, e como as oportunidades são infinitamente menores pra gente, o padrão de beleza é uma construção social, assim como o desejo. Não acredito que podemos nos encaixar no mercado de trabalho, porque para se encaixar precisamos nos apequenar, e a sensação de viver espremidas vai nos matando aos poucos… Acredito que o quanto antes a gente relaxar sendo que somos, e construindo uma auto estima de dentro pra fora, caminharemos em busca de espaços que suportem nossa imensidão. É importante saber reconhecer quando o problema é o mundo e não a gente, não há nada de errado em nosso corpo e na nossa imagem. É um trabalho diário lembrar que ninguém pode dizer quem somos e onde deveríamos estar, o nosso lugar são todos aqueles em que desejamos nos ver.

O filme foi gravado em meio à pandemia e a um processo de cura física na sua vida...

Quando adoeci, olhei na cara da morte e a finitude se tornou algo muito real e crível. Nesse momento, precisei fazer a escolha de ficar viva. E entendi que estar viva tem muitas dimensões para além de um coração batendo… Senti muito medo nos últimos anos, e quando o medo nos toma por completo, a gente paralisa, e isso é um tipo de fim, porque a vida é movimento. Precisei de muita análise para encontrar o movimento na vida de novo e entendi que o medo é importante como balizador de escolhas, como um instinto em relação ao perigo, mas não pode ser o sentimento que impera na minha vida e nas minhas escolhas. Entender que o fim é, na verdade, o meio entro um início e outro faz com que a gente redimensione a ideia do tempo. Tive medo quando começamos as gravações do filme no meio da pandemia, mas não foi ele que me trouxe até aqui; quem me trouxe até aqui foi o desejo de contar essa história, foi a importância que vi nesse trabalho, foi a admiração que sinto pela Juliana e foi, principalmente, o contrato que fiz comigo mesma de ter coragem de caber no meu tamanho e ocupar os lugares que sempre sonhei. Pensar em cura é pensar que existe algo de errado comigo que é preciso consertar.

Como você canaliza essa energia do medo e da finitude?

Veja bem, tenho uma condição de saúde que me acompanhará até meu último dia de vida, ela faz parte de mim assim como minha personalidade, minhas alegrias, minhas tristezas, as experiências que vivi… mas, assim como tudo isso que citei, a Esclerose Múltipla não me define, ela é uma parte de quem sou. O capacitismo te encerra na sua deficiência e o processo de exclusão é dolorido demais, não permitirei nunca mais na minha vida que isso aconteça de novo. Estou muito feliz que minha saúde esta ótima, a ciência avançou muito nos últimos anos, e minha saúde psíquica também (risos). Esse combo é imbatível! Gostaria que nenhuma pessoa que tenha a mesma condição que a minha tivesse vergonha de falar sobre isso, ou ter vergonha de ser quem se é, eu sei de onde vem esse comportamento, o medo de ser vista só por essa ótica é aterrorizante, mas me movo pelo coletivo e desejo que o espaços mudem e sejam ampliados para que cada pessoa pessoa possa existir em sua grandeza e singularidade.

Quais são os seus planos para agora?

Meus planos para agora são no caminho da expansão. Desejo trabalhar muito esse ano. Tenho um solo em construção, que faz parte de um projeto longo e grande que se desdobra em três frentes: uma peça, um documentário e uma instalação. Tenho desejo de fazer mais cinema, estou completamente apaixonada. E desejo novos encontros profissionais, com coisas que nunca fiz e que acredito que possam transformar de alguma maneira quem eu sou e o que a minha imagem pode representar no mundo.

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