Na última semana, o longa Baby, de Marcelo Caetano, ganhou notoriedade mundial quando, em Cannes, o ator mineiro Ricardo Teodoro foi premiado como Melhor Ator Revelação. Na produção, a atriz Ana Flávia Cavalcanti é uma das protagonistas e comemora a sétima arte brasileira.
"Somos 215 milhões de um povo muito único, complexo, amável, detestável, violento, dançante, poderoso, careta, tem de tudo aqui e isso é material para nossa arte, temos vocação pra contar um causo", afirmou.
Em entrevista, a atriz de 40 anos — que foi babá e faxineira e hoje também é diretora e roteirista — também comenta sobre a visceralidade das séries Os outros, Sob pressão e Onde está meu coração, a importância da cena de beijo entre uma mulher cisgênero e uma trans como a que ela e a atriz Kika Senna protagonizaram na tevê aberta, no especial Falas de Orgulho, e a felicidade de ter sido premiada com o Melhor Curta, com Rã, em Brasília.
Entrevista | Ana Flávia Cavalcanti
Que pergunta cabalística, adorei! Sete obras para a sétima arte, a brasileira e a mundial, né? Porque um festival como Cannes te lança e te projeta em um alcance terrestre. Eu comemoro demais essa seleção, ela é inicialmente uma vitória do Marcelo Caetano, que sentou por anos e anos em frente a um computador e escreveu um roteiro avassalador. Depois, correu atrás para que esse filme fosse realizado, fez dezenas de pitchings, coproduções, escalou elenco e equipe, dirigiu, e cá estamos, então ele merece esse reconhecimento. E é também uma vitória nossa, da equipe de Baby, trabalhamos incansavelmente. Um longa-metragem mobiliza em média umas 300 pessoas para sua realização. É muita gente trabalhando com muito desejo. Eu fico muito encantada quando vejo nos sets de filmagem esse tipo de qualidade de presença. O cinema vicia! E depois é uma enorme vitória para o nosso país. O Brasil vinha de uma excelente fase nos festivais internacionais, e bem pudera, somos 215 milhões de um povo muito único, complexo, amável, detestável, violento, dançante, poderoso, careta, tem de tudo aqui e isso é material para nossa arte, temos vocação para contar um causo. Estamos todos muito felizes com Baby na semana da crítica no Festival de Cannes! Tamo assim: Cês tomaram Dramim? Porque a gente tá um nojo :)
Em Baby, a questão da sobrevivência permeia a narrativa e você vive a maternidade de uma forma intensa. Como esses temas te atravessam?
Você está na série Passinho, da Disney+, e esteve no elenco de Malhação. Como é a sua relação com crianças e adolescentes?
Eu adoro os adolescentes! Em Malhação, eu estava no melhor núcleo, adolescentes pretos periféricos de uma escola pública. Imagina o quanto a gente não ria e o quanto eu me atualizava de hits do momento? E Passinho foi uma comoção, minha primeira diária foi durante uma batalha de passinho que aconteceu na quadra da escola. Eu cheguei meio desavisada, pensando em outras coisas, a vida, mil projetos e parei absolutamente tudo o que estava pensando quando eles começaram a dançar. O poder da dança! Essa série vai arrebatar o Brasil. Vai ter caneca do passinho, camiseta do passinho, bola do passinho, maior axé!
Recentemente, você protagonizou, em Histórias impossíveis, o episódio Falas de orgulho, com o primeiro relacionamento homoafetivo envolve uma mulher cis e uma trans. O quão isso foi representativo para você?
Foi demais. Um dos meus trabalhos preferidos e um dos trabalhos que tenho mais orgulho. Bem pudera! Viva todas as letras do LGBTQIAPN+. Conheci Kika Senna neste trabalho, essa grande atriz e pessoa única! Nós discutimos muito as relações entre nossas corpas no mundo e entre si, eu sinto que evolui na questão identidade de gênero e orientação sexual. Tomara que tenha inspirado Kika também durante nossas trocas, acho que sim. E protagonizamos o primeiro beijo entre uma mulher trans e uma cis. Isso pode parecer pouca coisa, mas não é. Nossa sociedade é forjada na teledramaturgia, todo mundo ama uma série, uma tvzinha quando chega em casa. Aí você liga a tevê, vai assistir um programa que está passando no canal aberto e se depara com uma cena de amor feita com respeito e dignidade. Esse beijo transforma o impossível em possível.
Em Malhação, o tema da educação pública esteve em evidência. O que você acha que é preciso para que o Brasil avance nesse tema?
Principalmente recursos para o ensino fundamental e médio. A educação infantil tem vantagens sobre esses outros dois momentos escolares da vida de uma criança/adolescente. Mas também precisa. E quando digo recursos, quero dizer que é preciso investir na formação dos professores, na remuneração deles, na carga horária, no currículo escolar, ampliar o leque de possibilidades dentro das metodologias de ensino, a arquitetura da escola que poderia atrair mais os alunos. A Educação mudou a minha vida e ela está produzindo recursos pra eu colaborar com a mudança de gerações futuras da minha família. Mas como gosto do copo mais cheio, quero dizer que estou feliz com o Pé-de-meia, esse programa que funciona assim: a cada ano do ensino médio, o governo federal vai pagar R$ 200 pela matrícula e mais nove parcelas de R$ 200 por mês do ano letivo que poderão ser sacadas. Ao todo, serão 2 mil reais em 10 parcelas por ano. Todos os pagamentos vão depender da frequência de 80% nas aulas.
Muito chique esse tipo de incentivo, é uma maneira de oferecer boas condições pro aluno poder concluir a educação básica. Eu mesma precisei parar de estudar por um ano para poder trabalhar. Se tivesse esse pé-de-meia não tinha parado.
Já nas novelas Amor de mãe e Vai na fé, a segurança pública e a justiça estiveram no foco do debate. É muito importante colocar holofote na forma como a população negra é abordada nesses setores. O que você pode comentar?
No Brasil, são 832 mil pessoas encarceradas, estamos em terceiro lugar no ranking mundial, perdemos apenas para os EUA e a China. E vale dizer que essa população é majoritariamente composta por pessoas negras, mais precisamente por homens negros na média de 23 anos. Esses dados são estarrecedores e por isso mesmo merecem um debate amplo na nossa sociedade. Eu não sou uma especialista em justiça penal, não tenho ferramentas adequadas para dizer o que temos que fazer, mas me assombra pensar que estamos perdendo nossos jovens para o crime organizado, não vejo nem como justo nem como eficaz nosso sistema prisional. Precisamos rever esse modelo. Toda possibilidade de discussão é bem vinda.
No manifesto A babá quer passear e na peça Conforto você fala abertamente sobre a realidade dos trabalhadores domésticos. Como ex-empregada e hoje atriz, acredita que essa realidade possa mudar?
Acreditar eu acredito, sou uma artista, vivo de ter fé, de imaginar e construir o invisível, mas não posso ser leviana sobre um assunto tão caro pra mim. O tema trabalho doméstico é nevrálgico na sociedade brasileira, são pontos em que você reconhece o racismo estrutural e estruturado. Veja, um trabalho exercido por uma uma população composta majoritariamente de pessoas negras que vivem em condições às vezes desumanas — temos visto vários casos de trabalhadoras domésticas escravizadas sendo resgatadas em casas de família, não é uma coisa que não acontece, gera espanto pelo horror e não pelo ineditismo. Por isso sigo falando, fazendo peça, performance e, se eu soubesse compor música, comporia também com esse tema no centro do debate. Eu fui faxineira e, hoje, sou atriz e desejo que outras faxineiras consigam e possam ser o que mais elas quiserem ser, mas antes disso, enquanto forem faxineiras, que elas sejam bem remuneradas. A recompensa do trabalho é o salário e que esse salário ou diária possa dar a elas e as suas famílias dignidade. Considero justo pagar por uma diária de faxina R$ 350.
Nas séries Sob pressão e Onde está meu coração, um assunto muito potente foi abordado, que é a dependência química. Que tipo de sensações esses trabalhos te causaram?
Investigamos com muito carinho e respeito a questão da dependência química e tanto em sob pressão quanto em Onde está meu coração a dramaturgia deu um desfecho positivo para essas pessoas doentes, tanto a Diana quanto a Inês, minhas personagens, eram dependentes químicas e através de tratamentos adequados, grupos de apoio, medicação, redução de danos melhoraram a qualidade de vida e sempre de olho na doença, né? Então, se você sofre com essa doença, procure ajuda, existe o NA (Narcóticos Anônimos) que dá muito suporte para quem precisa.
Antes de ser atriz, você trabalhou na enfermagem. Chegou a vivenciar de perto o caos da saúde pública que se agravou com a covid-19, mas que também trouxe à tona a importância do SUS?
Falando em pandemia, é impossível não falar sobre a polarização do país. Na série Os outros, esses extremos da convivência humana foram escancarados, de uma forma muito crua. Imagino que estar nessa produção tenha sido uma experiência muito visceral...
Os outros é um fenômeno justamente porque escancarou o que somos nós, como reagimos, qual nossa moral, nossos valores quando se trata de um microcosmos familiar e de como muitas vezes perdemos a humanidade da porta para dentro. Eu sou suspeita pra falar dessa série. Ela me atravessa muito. E agora, recentemente tivemos o desfecho do caso Marielle Franco com a milícia e uma parte da polícia envolvidos. Deu uma sensação de déjà vue.
Seu curta, Rã, foi premiado em Brasília. Qual a sua relação com a capital do país?
Rã estreou na Berlinale, um festival muito lindo em Berlim. Ficamos muito felizes, mas, desde quando estávamos filmando, cada um dizia o festival que gostaria de ir. Eu sempre disse: quero que Rã seja selecionado para o festival de Brasília, pela força dessa terra, meio do nosso mundo, né? Um dos mais antigos do Brasil. E aí que eu sonhei não só que o filme era selecionado para Brasília, como ganhávamos o prêmio de melhor filme. Juro, sonhei isso um mês antes de ir. E no final da premiação não tínhamos ganhado nada, só faltava melhor filme, e eu disse: não é possível! E eles anunciaram: Melhor filme: RÃ!
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