É a ideia de que a imagem naturaliza, a noção de que, de tanto ver, deixamos de ver, que o leitor deve levar ao mergulhar em Imagens da branquitude — A presença da ausência, de Lilia Moritz Schwarcz. Fruto de uma pesquisa "que nunca acaba", a obra, recém-chegada às livrarias, é um verdadeiro exemplo de como um documento visual é capaz de produzir realidades e representações de tal modo calcificadas que é preciso investir em "contranarrativas contraintuitivas" para perceber significados nem sempre explícitos.
No livro, Lilia reúne uma série de imagens — de pinturas, esculturas e mapas dos séculos 18, 19 e 20 a fotografias e peças publicitárias do século 21 — para refletir sobre a construção do racismo a partir da concepção do olhar dominada pela branquitude, responsável por moldar a maneira de encarar e representar o negro na produção imagética do Brasil e do mundo. "A branquitude é uma tremenda presença. (As pessoas brancas) não são classificadas, porque são as donas da classificação, criam normas, mas não vivem essas normas. É um mundo muito poderoso, mas muito ausente", afirma a antropóloga. "Como diz Foucault, o poder está de fato disseminado quando você não o vê. A branquitude é também um modelo de vigilância, quanto mais presente, mais ausente".
Se o branco é a norma, então o diferente é o outro, o estrangeiro, o que não pertence. É a partir dessa ideia que a autora estrutura a análise proposta no livro: deixar de lado uma leitura naturalizada e focar nos detalhes, nas ausências e no que elas contam ao observador. Uma pintura de autoria desconhecida, intitulada Don Eusebio de la Santa Federación, dá início à proposta de Lilia. Don Eusebio era uma figura conhecida na história da Argentina, um bufão que acompanhava o caudilho Juan Manuel de Rosas. À primeira vista, o retrato pode até ser enaltecedor, mas nos detalhes se percebe as insinuações preconceituosas que nortearam o autor.
Na obra, vê-se um negro bem-vestido, com trajes nobres. Um olhar mais atento aponta para o sapato furado, a veste rasgada no cotovelo. "O artista quer nos fazer olhar uma coisa mas, se você olhar pelos detalhes, o imaginário de uma época escapa. E você começa a não tornar tão óbvia a imagem", diz Lilia. "Toda imagem trabalha com convenções visuais e essas convenções não são um duplo da realidade, é a falácia da imagem ideológica. Elas não duplicam, elas produzem a realidade de maneira que a gente não vê".
Mais adiante, uma fotografia de 1910, tirada por Chichico Alckmin, dono de ateliê badalado na Diamantina do início do século 20, apresenta uma família brasileira formada por um casal e dois filhos, todos muito arrumados, asseados e brancos. Nas laterais, duas moças negras seguram a paisagem que servirá de fundo para a imagem. Na foto de família feita na época, as moças foram cortadas do registro. Só retornaram ao lugar de origem em 2017, quando o Instituto Moreira Salles (IMS) exibiu, em uma exposição, a imagem revelada do filme original. A ausência das negras no recorte da época é reveladora do apagamento em uma sociedade na qual a branquitude é a norma.
O capítulo do livro dedicado à fotografia, com as coleções de cartões-postais dos "tipos" negros brasileiros para serem apreciados como souvenirs de uma terra exótica e registros domésticos das amas de leite sem nome e seus sinhôs e sinhás devidamente nomeados, só não é mais revelador do que aquele dedicado à produção visual mais recente. Nesse, Lilia retoma uma coleção de imagens publicitárias de todo o século 20 para propor uma leitura na qual, a essa altura, o leitor já embarca com certa facilidade. A campanha do publicitário Oliviero Toscani para a Benetton com a menina loira penteada como um anjo e a negra, como um demônio, os folhetos de sabonete que prometem tornar a pele escura mais clara, a campanha de 1997 da Parmalat na qual uma moça negra abraça um rapaz banco sob o slogan "O café à altura do nosso leite", os exemplos são muitos.
A autora encontrou até uma peça do Governo do Distrito Federal (GDF), de 2023, para uma campanha de combate às queimadas na qual os cabelos de um rapaz negro são transformados no fogo que consome a natureza. Como bem lembra a pesquisadora, "não são pessoas negras que têm destruído nossas florestas". A peça foi retirada de circulação após o GDF alegar que se tratava de uma campanha educativa de apelo à consciência para a preservação da natureza.
Imagens da branquitude nasceu, principalmente, do curso Lendo imagens, ministrado por Lilia na Universidade de São Paulo (USP) e na Universidade de Princeton (EUA), nas quais é professora. O objetivo é sempre dar instrumentais para os alunos de ciências humanas em geral perceberem como os documentos não são reflexos nem ilustrações de uma época, mas produções de realidades e representações. Em entrevista ao Correio, Lilia fala sobre o livro e sobre as escolhas para a produção de um texto que propõe uma abordagem particular e didática para a educação do olhar.
Entrevista /Lilia Schwarcz
Você fala muito, em todo o livro, da necessidade de exercitar uma contranarrativa contraintuitiva na leitura das imagens e documentos. Como isso funciona?
Contranarrativa e contraintuitiva porque o artista quer nos fazer olhar uma coisa mas, se você olhar pelos detalhes, o imaginário de uma época escapa. E você começa a não tornar tão óbvia a imagem. Essas imagens produzem a realidade de maneira que a gente não vê. São feitas para a gente não ver. E a gente sempre tem que pensar estruturalmente, as imagens carregam sua estrutura de visão. Muitas vezes as imagens se revelam a partir de detalhes aleatórios, pequenos. A gente aprende muitas coisas a partir dos detalhes.
Há uma obviedade perversa que nem sempre notamos, e o retrato de Eusebio parece óbvio após uma leitura detalhada, assim como os mapas, que trazem uma cartografia feita pelo conquistador, com uma postura já colonial…
Eusebio, quando olhei a primeira vez, não vi. Também penso muito a partir da agência, sobretudo no caso das fotografias. Como se tratam de fotografias do século 19, a câmera abre muito lentamente e, nesse tempo lento da câmara, o modelo poderia realizar todo tipo de contrariedade. Então leio dessa maneira: o que o fotógrafo incluiu ou não. Nos mapas, é preciso perguntar aos geógrafos: 'o que está incluindo?'. Lemos de maneira muito racional. Na hora de fazer o território invadido, você coloca monstros, nativos. Há 'terras desconhecidas', mas, se está no mapa, ela é desconhecida para quem?
Em 2020, depois de um artigo sobre um filme de Beyoncè, você recebeu muitas críticas de artistas negros por não estar no lugar de fala por ser branca. Isso gerou dúvidas em relação a escrever Imagens da branquitude?
Esses embates me deram mais força. Recebi, sobretudo no contexto da Beyoncé, mensagens que me ajudaram a entender várias coisas: do que devo falar e do que não devo, afrofuturismo, minha inserção nesse lugar. Foi um livro que relutei muito em fazer, mas falei, quer saber, esse é meu processo, não é despolitizado, é um livro que inclui. Podem me acusar de não estar no meu lugar de fala, mas tem um lado urgente que as pessoas brancas falem desse tema, mesmo levando pedrada. O racismo incide mais fortemente na população negra, por razões óbvias, mas diz respeito às pessoas brancas também.
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