
Um dos maiores contadores da história política do Brasil nos deixou nesta sexta-feira. O documentarista Silvio Tendler morreu aos 75 anos, no Rio de Janeiro, em decorrência de uma infecção generalizada. O cineasta estava internado no Hospital Copa Star, no Rio de Janeiro. O velório será no domingo, no Cemitério Comunal Israelita do Caju, às 11h. Ele dirigiu mais de 70 documentários, entre eles, os clássicos Os anos JK - Uma trajetória política, Jango, O veneno está na mesa, O mundo mágico dos Trapalhões e Glauber no labirinto Brasil.
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Nascido em 12 de março de 1950 no Rio de Janeiro, Silvio era de uma família judia de classe média que morava em Copacabana. O golpe militar de 1964 foi o que levou o carioca para o cinema e para a política. Em entrevista à Fundação Getúlio Vargas para o projeto de pesquisa Cinema e história no Brasil, Silvio contou:" Os artistas e intelectuais começaram a se manifestar contra à ditadura, e naquele momento, entre as artes, a mais importante, a mais respeitada era o cinema. E, então, eu comecei a viver o sonho do cinema."
Sua primeira escola de cinema foi por meio de cineclubes. O cineclubismo na época havia grande conexão com o movimento estudantil e Tendler começou a pensar em unir as duas paixões. Em 1968, virou presidente da Federação de Cineclubes e lançou seu primeiro documentário, Almirante Negro, que falava sobre João Cândido que chefiou a Revolta da Chibata. Em meio a ditadura, Tendler se exilou no Chile onde trabalhou como cinegrafista e alguns anos depois, foi estudar cinema e história na França.
Em 1976, Silvio Tendler retorna ao Brasil e com a sua experiência na França, decide fazer um cinema que retratasse a história e se instaurou como documentarista. Quatro anos depois, estreia o documentário Os Anos JK — Uma trajetória política, que retrata a história do país de 1945 a 1970 com foco no presidente. Em 1981, dirigiu o documentário O mundo mágico dos Trapalhões, que falava sobre o famoso grupo de comediantes. Outros destaques da sua filomografia são Jango (1984), Castro Alves - Retrato Falado do Poeta (1999) e Glauber o Filme, Labirinto do Brasil (2003).
O cineasta Renato Barbieri comenta ao Correio que o Brasil perde um dos seus maiores documentaristas e uma pessoa apaixonante. "Os documentários que ele fez no início da carreira foram filmes que atingiram 1 milhão de espectadores em salas de cinema. Nunca mais o cinema brasileiro atingiu essa marca quando se fala de documentários", afirma o cineasta. "Tendler fez essa façanha de popularizar o documentário brasileiro, de levar essa pedagogia da história para grandes parcelas da população", destaca.
Barbieri descreve Tendler como um grande biógrafo. "Ele fez filmes sobre José de Castro, Castro Alves, Marighella,Glauber Rocha, Milton Santos. Retratou a história do Brasil recente de uma maneira incrível", comenta. Por conta de problemas de saúde, Silvio ficou paraplégico por volta de 2010. "O que mais me impressiona é a energia, mesmo com limitações físicas como cadeirante, ele não parou. Parece que ele filmou mais ainda. Então, de lá para cá, de 2014 para cá, ele fez uma produção incrível de um cinema engajado na defesa da vida", destaca. O cineasta se refere a o filme O veneno está na mesa, documentário que denuncia o uso de agrotóxicos.
Em 2022, Silvio estreou o documentário Saúde tem cura, que aborda as forças e fragilidades do Sistema Único de Saúde. No lançamento, o documentarista concedeu uma entrevista ao Correio e ao ser perguntado se iria retratar apenas as partes boas, disse: "Acho importante o debate: levantar questões até para melhorar a qualidade e o rendimento do SUS. Tudo encerra meu método de trabalho, como documentarista. Eu não sou publicitário: não preciso ocultar a realidade para promover um produto. Eu tenho que falar a verdade, tratar da realidade."
Renato Barbieri complementa: "Isso tudo é muito tocante. É o exemplo inspirador do Silvio Tender para todos nós seguirmos na jornada da vida com muita força, com muita vibração. É um nome que está escrito para sempre na história do cinema brasileiro,grande cineasta."
O cineasta brasiliense Mauro Giuntini conheceu Silvio nas gravações de seu documentário Janela da alma, em 1988. "Desde então, convivi com ele em diversas situações, como quando foi secretário de cultura do DF e trouxe o roteirista Jean Claude Carriere para uma inesquecível oficina na cidade", relembra. "É um dos maiores documentaristas brasileiros. Fez filmes vistos por milhões de espectadores nas salas de cinema como Jango e Os anos JK. Uma figura", finaliza.
A professora Rose May, da disciplina de Documentário na Universidade de Brasília, conta que era comum Tendler ser chamado de documentarista da utopia possível. "Além de ser um baita documentarista, ele também foi amigo, tinha um bom humor, foi homenageado em uma mostra que eu coordenei no Sesc ano passado. É uma perda lamentável para o cinema e para aqueles que puderam compartilhar um pouquinho da sua jornada", comenta a professora.
Pela disciplina que leciona, Rose May destaca que é impossível falar de documentário contemporâneo sem esbarrar no nome de Silvio Tendler. "Não tem como falar de Silvio sem pensar na história brasileira e do cinema com seus personagens e pesquisas. O Silvio sentia as coisas pelo coração e os batimentos dele batiam em relação a tudo que precisava mudar. Ele não tinha um olhar encarcerado, era um documentarista de olhos livres", finaliza.
Ao longo de mais de 50 anos de carreira, Silvio Tendler dirigiu e produziu mais de 70 filmes e deixou um registro relevância para a história política e memória brasileira. Tendler deixa a filha Ana Rosa Tendler, também cineasta, e um neto.
Artista homenageado
Em 2013, a Mostra Competitiva da 46º edição do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro foi finalizada com uma homenagem ao cineasta, representado no documentário A arte do renascimento - Uma cinebiografia de Silvio Tendler. Na ocasião, a equipe responsável pelo longa realizou um discurso emocionado sobre a produção e a importância do trabalho do documentarista. Com roteiro e direção assinados por Noilton Nunes, o longa acompanha Tendler na recuperação depois que uma doença o deixou tetraplégico. "Minhas principais motivações na hora de renascer foram a vontade de viver e a de continuar contando histórias", diz o cineasta em um dos trechos.
Um dos mais importantes documentaristas do Brasil, Tendler não só produziu obras que marcaram o gênero como também sempre colaborou na fomentação do cinema no país. Bartolomeu Rodrigues, ex-secretário de Cultura do DF, conta que as edições da pandemia do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro não teriam acontecido sem a colaboração dele. "Silvio foi peça fundamental para garantir a realização do festival, que estava ameaçado de sofrer interrupção. Juntos, lembramos que o evento só foi interrompido durante a ditadura militar, e por isso, decidimos não poupar esforços para sua realização. Foram dias angustiantes que me serviram para mostrar a grandeza da alma de Sílvio, que praticamente me segurou pelas mãos repetindo sempre: não vamos nos entregar a essa crise. Desde então, mantivemos uma amizade profunda e o meu respeito por ele não tem limites. Sou eternamente grato", destaca.
Em uma edição especial do Correio em 2019, Vladimir Carvalho, outro grande cineasta e documentarista brasileiro, escreveu um texto em celebração à arte e à carreira de Silvio Tendler. Além de descrever interações dos dois ao longo dos anos, Vladimir destaca a importância de Tendler para o cinema brasileiro admira, a cada frase, o trabalho do amigo. "Em pouco tempo e queimando etapas, quem não o conhecesse não identificaria naquele jovem um documentarista de insuspeitada força e competência, tal era a qualidade do seu primeiro filme de longa metragem, Os Anos JK ", ressalta em um dos trechos.
(Maria Luísa Vaz*)
Diversão e Arte
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