CINEMA

Festival de Brasília homenageia legado de cineastas

Os documentaristas Vladimir Carvalho e Silvio Tendler e o ensaísta Jean-Claude Bernardet são reverenciados no Festival de Brasília por suas contribuições à consolidação desse grande evento do cinema nacional

Vladimir Carvalho (1935-2024) -  (crédito: Rafael Ohana/CB)
Vladimir Carvalho (1935-2024) - (crédito: Rafael Ohana/CB)

Há quase 30 anos, foi a imortal Fernanda Montenegro quem cravou, numa passagem pela capital, com protesto no qual pleiteou a revisão nos cortes destinados ao audiovisual, a dimensão do Festival de Brasília do Cinema Brasileiro: "Contar a história deste festival é contar a história da cultura neste país". Na ocasião, ela emendou ser a cultura "o coração da matéria". Figura de honra na edição do 58º Festival, a atriz, naqueles discursos, parecia alinhar pensamentos e esforços de três colegas que deram bases para o tradicional evento que prossegue no Cine Brasília até o próximo sábado: o ensaísta Jean-Claude Bernardet (morto há dois meses) e a dupla de documentaristas Silvio Tendler (que partiu no início do mês) e Vladimir Carvalho (falecido há 11 meses). Todos eles são lembrados nesta edição do festival, que teve a mostra competitiva iniciada ontem. Hoje, às 14h, os filmes Homenagem a Kiarostami e Os ruminantes, no Teatro Sesc Sílvio Barbato (SCS), saúdam, por exemplo, Bernardet.

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A tríade citada acima fomentava debates e protestos sempre atrelados à palpitação do Festival de Brasília. Folhear a publicação Cineastas e imagens do povo (de autoria de Bernardet) traz a pérola da reunião dos três, em capítulo que, de quebra, versa sobre a capital. Os anos JK: como fala a história? trata do clássico documentário de Tendler, que com o diretor teria formulado "a redenção dos aborrecidos cinejornais (da época)". Seria o ocaso da "crônica dos vencedores", centrada nos louros a autoridades, políticos e militares; com afiada lente, Tendler ceifaria tons oficialescos. Neste mesmo escrito de Bernardet, ele consagra Vladimir, pela obra Brasília segundo Feldman: "O filme não se interessa pela figura do candango, mas pelos candangos, por sua vida, suas condições de trabalho".

Brasília, como vitrine potente de cinema, regozijou-se com a interferência de Vladimir no seu cotidiano, atento ao cinema de seu interesse: aquele que capta "as relações diretas do homem com a natureza, com os outros homens, com a sobrevivência, com os símbolos", como certa vez definiu. Curioso que, em 2006, a disputa por prêmios Candango tenha confrontado Encontro com Milton Santos (de Tendler) com O engenho de Zé Lins (de Vladimir), criados por diretores combativos à ditadura. Nisso, uma análise do histórico do festival dá equiparação aos talentos e às oportunidades: Vladimir apresentou Rock Brasília — Era de Ouro (2011), trouxe Giocondo Dias — Ilustre clandestino (2019) e Barra 68 — Sem perder a ternura (2000), tudo fora de competição.

O inconformismo brotava em muitos gestos do mestre Vladimir, que, na imprensa, observou: "O subdesenvolvimento, um verdadeiro karma na minha vida, voltou a me perseguir. Como é que na cara do poder viceja chaga de tal dimensão?". Nesse naipe de sentimentos, o autor do unânime Conterrâneos velhos de guerra (1990) atacava, na denúncia das "misérias" que cercavam os "reais" construtores da capital, depois de ser alvo dos picotes e tentativas de cala-boca como no caso de O País de São Saruê (recusado na seleção pela Fundação Cultural, em 1971) e que atravessou década, até a consagração em 1979, quando a obra forjou a criação do Prêmio Especial do Júri (com instituição de diploma e troféu). Vencedor da menção especial do Clube de Cinema de Brasília, por A bolandeira (1969), o mestre Vladimir recebeu a Homenagem ao Cinema Brasiliense (pelo curta O espírito criador do povo brasileiro, em 1975) e, em 1977, ainda disputou Candangos, à frente de dois curtas: Quilombo e Mutirão.

  • Jean-Claude Bernardet (1936-2025)
    Jean-Claude Bernardet (1936-2025) Fabio Rodrigues Pozzebom/Agência Brasil
  • Vladimir Carvalho (1935-2024)
    Vladimir Carvalho (1935-2024) Rafael Ohana/CB
  • Sílvio Tendler (1950-2025)
    Sílvio Tendler (1950-2025) Janine Moraes/CB/DA Press

Arsenal de memórias

Peça fundamental do festival de cinema, Carvalho, atento ao acervo de imagens sobre a memória, criou em 1998 o troféu Conterrâneos, atribuído dado o esforço da criação da Fundação Cinememória. O zelo pelo evento o fazia esbravejar, em ocasiões como a da transferência do evento para as salas do ParkShopping. "Na maioridade, o Festival vai virar garoto propaganda de eletrodomésticos?!", esbravejou, por exemplo. Noutro momento, ressentia da falta de debate, de ideias, e de "projeto cultural" atrelado aos festejos. "Nós somos hospedeiros de um pequenique cinematográfico. O Festival de Brasília perdeu em essência, visão e brilho. É um festival de carregação, as pessoas vêm aqui se banhar nas piscinas dos hotéis", ironizou, à época do vicejo.

Na 58ª edição que festeja Cacá Diegues (outro pilar do cinema, e que tem as memórias estampadas no longa Para Vigo me voy!, a ser exibido hoje, às 15h, no Cine Brasília), sente-se o peso da história (feita agora, na nossa cara) organizada em ecos, "positivos e negativos", como definiu Bernardet, que almejava, como pensador ver o "povo consciente", alerta para os "problemas atuais" e desenvolto nas "formas de ação e de agressividade". Reinventado, Bernardet se fez ator (ao mesmo tempo em que perdia o sentido da visão), tendo atuado em filmes como Fome (2015) e Pingo d'água (2014). Ele venceu Candango de melhor ator, em 2008, pelo impactante longa Filmefobia. Multiplicidade legítima do premiado roteirista de filmes como Hoje (2011), Um céu de estrelas (1996) e do clássico O caso dos irmãos Naves (1967), todos premiados na capital.

Igualmente associado a vigor e revitalização, coube a Silvio Tendler, entre outros legados, o de comandar o veio artístico da edição de 2020 do Festival, em plena pandemia — 24 anos depois de na 29º haver prometido, como gestor, a realização do "festival que nós cineastas sempre sonhamos em fazer", trazendo a exuberância de talentos estreantes como Tata Amaral, Lírio Ferreira e Paulo Caldas. Caprichos do autor do emblemático documentário Glauber — o filme, Labirinto do Brasil, de 2003, agora carregado nos ecos da história, como diria Bernardet.

 

 


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postado em 14/09/2025 06:00
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