Literatura

Octávio Santiago lança livro que discute o preconceito contra nordestinos

O jornalista potiguar Octávio Santiago lança, na terça-feira, livro que discute de maneira polêmica o preconceito contra os nordestinos

 Octávio Santiago -  (crédito: Rierson Marcos)
Octávio Santiago - (crédito: Rierson Marcos)

A motivação para o jornalista potiguar escrever Só sei que foi assim - A trama do preconceito contra os nordestinos nasceu da indignação com situações muito cotidianas. Ao sair do Nordeste, ele sempre ouviu frases que revelavam um desconhecimento e uma discriminação impressionantes. E, quando assistia a novelas, filmes e séries, ele também não se reconhecia e não reconhecia o povo de sua região nos personagens em tela. Por isso, Octávio resolveu empreender uma pesquisa no curso de doutorado da Universidade do Minho, em Portugal. Embora tenha como origem a tese, o livro é escrito com clareza, fluência e verve nordestina. Na terça-feira (7/10), Octávio autografa a obra, que promete alimentar a reflexão e o debate sobre a realidade brasileira. E, nesta entrevista ao Correio, Octávio fala sobre a gênese do livro, a fonte do preconceito, o racismo, a representação na arte, o tratamento da mídia e as possibilidades de superação.

Entrevista com Octávio Santiago

O que o moveu a escrever um livro sobre o preconceito contra os nordestinos?

A gênese advém de um lugar de incômodo duplo: primeiro, as vivências discriminatórias  que a gente ainda passa, sobretudo ao sair do nordeste, quando é notificado do excesso ou da ausência de nordestinidade, seja para o bem ou para o mal. A gente ouve frases como "você não tem cara de nordestino", "não há quem diga que você é do Nordeste", "você é competente apesar de ser do Nordeste." Conheço experiências de familiares, amigos e colegas que são ainda piores e vão para além dessas frases. São, concretamente, obstáculos e impedimentos de oportunidades profissionais e acadêmicas. E outro incômodo  é a da representação artística. É muito comum produções audiovisuais retratarem o Nordeste como se fosse uma coisa só.  É muito falsa  essa ideia que do sul da Bahia ao oeste do Maranhão tudo é Nordeste. Não bastasse essa camada falaciosa sempre somos colocados em um lugar menor. E esse  incômodo que me levou a fazer a pesquisa e a escrever o livro.

Parece que essa depreciação da imagem do nordestino é algo dado pela natureza.

Sim, durante muitos anos, esse lugar menor reservado aos nordestinos não foi questionado sequer pelos próprios nordestinos, o que chamei de Complexo de Macabéa. É exatamente estar na subalternidade e não conseguir questionar, pois essa depreciação vem acompanhada de discursos inferiorizantes e um epistemenicídio muito forte. O que é o nordestino senão o retirante que chega ao sul em um pau de arara e é direcionado para a construção civil ou para ser empregada doméstica? Essa é a visão que o Sul, o sudeste e parte do Centro Oeste têm para nós, nordestinos,  nesse espectro. Porque essa foi a construção do inicio do século 20 e que se firmou nesse inconsciente nacional como se fosse o único lugar para o Nordeste. É por isso que temos avanço no sentido de tornar o Brasil menos racista, menos transfóbico, homofóbico, com mais igualdade de gênero. Houve avanço neste campo, mas com relação à população nordestina o que  ouve, lê, assiste e vivencia é exatamente o que foi dito sobre o Nordeste há 100 anos. As linhas de hoje são reprodução de subalternidade.

Como esse preconceito contra os nordestinos nasceu?

Isso nasceu com a ideia de Nordeste e nordestino. Uma porção do Norte é subdividida como Nordeste e aí nasce essa unidade geográfica, que vem acompanhada de reivindicação política e econômica. E, neste momento, o Nordeste é apresentado ao Brasil. Nordestinos migraram para o sul em busca de oportunidade, só que São Paulo tem outros planos, importava imigrantes europeus. O nordestino mestiço contraria esse desejo do Brasil de ser branco.  O nordeste nasce contrariando interesses políticos e a um projeto de embranquecimento do país.

Quais são as camadas do preconceito aos nordestinos?

Os estereótipos não surgem do nada, não surgem por acaso, nunca são neutros, sempre cumprem um propósito. No momento inaugural, ajudam a construir a narrativa de que havia um Brasil que dava certo e um Brasil que dava errado. Havia um branco que era o futuro do país e um miscigenado, que seria responsável pelo atraso nacional. Essa seria pedra fundamental desse preconceito. A base dele era e é racista. Não é a toa que ao STJ passou considerar a xenofobia como racismo em 2002 no contexto das eleições presidenciais. E, a partir daí, vamos  tendo camadas para além do racismo, elitistas e  clacissistas. No fim das contas, o empregador teria de ser sempre esse suposto brasileiro branco do Sul e o empregado do chão de fábrica é o nordestino miscigenado. Essa falso Brasil que se divide com a inferiorização do outro para que alguém se coloque em posição de privilégio. E a desconstrução passa por aí, quando  você acende a luz da sala.

E como o preconceito se desenvolveu?

Ao longo do século 20, esses estereótipos alimentados no discurso político, no campo das artes, nas novelas, no rádio, no  cinema e, agora, na internet, vão dando gás à manutenção dessa estrutura que garante privilégios para quem domina a narrativa. O muro foi erguido com a suposta hierarquia de brasis, de regiões e de brasileiros. Se apresenta na sala um brasileiro bom e outro ruim. É  essa narrativa que a gente  tenta desconstruir.

Como esse preconceito e essa imagem depreciativa persistiram e prosperaram se os artistas, os intelectuais e cientistas nordestinos se destacaram como referências inescapáveis da inteligência, do talento e da cultura?

Essa pergunta é interessante. A gente não se dá conta dessa imagem de nordestina nos jornais, na literatura, no cinema e na televisão. Não verá imagens desse nordestino protagonista que você descreveu. Não são esses nordestinos que ocupam a vitrine desse suposto centro. Não é esse o lugar que a gente ocupa, majoritariamente. E quanto há essa evidência o fato de ser do Nordeste não é valorizado. Isso também é Nordeste. Temos hoje protagonismo na ciência, na tecnologia e na inovação, mas isso ocupa muito pouco espaço na mídia, muitos menos do que os momentos de seca e estiagem. Isso mostra a vontade de sempre mostrar o nordestino dessa maneira. E, quando se coloca Itamar Viera, um dos escritores de destaque na atualidade, não é como nordestino, mas como escritor nacional. Ele não escreve sobre a seca, escreve sobre o homem e a terra. Existe a visão falseada de que o nordestino não é letrado, não tem acesso à educação,  não compreende a língua portuguesa, mesmo sendo os nordestinos campeões em concursos públicos e tendo as mairoes notas no Enem. Sempre fomos e ainda somos região de expoentes das letras, mas colocados no lugar da desqualificação.

O que mudou em relação à imagem dos nordestinos com as redes sociais?

Com relação às redes sociais ocorreu a emergência de uma produção elevadíssima de pessoas do nordeste desconstruindo esses estereótipos por meio da crítica e  do humor. Há um esforço de conterrâneos. Estamos no meio de um processo. Tanto que é a gente viu a decisão do STJ reconhecendo a xenofobia como racismo porque houve um aumento de 800%  de discriminação em relação ao Nordeste depois das eleições de 2022. Não acredito que as urnas despertem o ódio em relação ao Nordeste, mas é um gatilho para ser extravasado. Não acho que o Brasil  mudou o  olhar, persiste o olhar torto contra nós. Mas a turma de conterrâneos está fazendo  um esforço para  desconstruir essa imagem.

Em que medida esse preconceito afeta a política e as políticas públicas?

Esse preconceito afeta primeiro porque o Nordeste é colocado como a região de uma pauta única. Há uma atenção com as particularidades de São Paulo, do Paraná ou do Rio Grande do Sul. Existe uma complexidade do Nordeste que  precisa ser respeitada. A para do Nordeste ficou reduzida ao acesso à agua. Em 1920, quando enfrentava a questão da escassez da água, o  presidente paraibano Epitácio Pessoa entendia queria fortalecer os orgãos que lidavam com a questão para reestabelecer o nordeste. Logo em seguida, o presidente Arthur Bernardes desfez o esforço e reorientou os recursos para estados do Sudeste. Cem anos depois,o Nordeste  é muito mais complexo. O acesso à água é uma pequena parte da agenda.  A gente quer discutir tecnologia, ciência, universidade e inovação. Mas a única coisa que ocorre nestas visitas de candidatos a presidente e na maneira de dialogar com o Nordeste é o acesso a água. Então, veja, o que poderia nos restabelecer havia 100  nos foi negado e tudo que nos é oferecido é algo que não garante esse reestabelecimento.

Como superar o preconceito contra os nordestinos? E isso é algo superável?

Não é uma mudança que se faz da noite para o dia. Mas sou muito otimista em relação ao livro e com o movimento que pude visualizar melhor no lançamento. Somente com informação a gente consegue combater o preconceito. Vejo os jovens influenciadores e os artistas produzindo cultura no sentido de desconstrução dos estereótipos. Esse movimento será, sim, capaz de provocar mudanças. Houve um movimento de acordar.  Se não é um desfecho, é um excelente começo de virada de chave.

Serviço

Só sei que foi assim — A trama do preconceito contra o povo do Nordeste

257 páginas/Ed. Autêntica. Lançamento na terça-feira (7/10), às 19h, na Livraria Circulares (113 Norte)

 

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postado em 05/10/2025 00:01 / atualizado em 05/10/2025 14:59
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