Cinema

André Sturm investiga ditadura militar em 'A conspiração Condor'

Filme exibido no Festival do Rio, coloca em cena o suspeito cenário político de Brasília nos anos 1970

Cena de A conspiração   Condor: Mel Lisboa é um dos destaques -  (crédito: Pandora Filmes)
Cena de A conspiração Condor: Mel Lisboa é um dos destaques - (crédito: Pandora Filmes)

Quando o chamado ano que não terminou, 1968, deu as caras, com o acirramento das violações pela ditadura no Brasil, o cineasta André Sturm não tinha nem dois anos. Passados nove anos, ele foi contagiado pelo ano que o confundiu: com a conjuntura avizinhada da ação de O agente secreto, filme pré-selecionado para o Oscar, no longa A conspiração Condor, Sturm explora roteiro capaz de exumar mortes de autoridades da política do naipe de Juscelino Kubitschek e de Carlos Lacerda (expressão conservadora no Brasil).

"Lacerda acabou sendo um personagem posto de lado, por ele ter sido um cara de direita, e ter apoiado o golpe. Quando eu descobri que o Lacerda tinha morrido quatro meses depois do Jango (João Goulart, deposto pelos militares), foi uma epifania. Eu falei: 'Cara, aqui tem uma história, aqui tem um filme'", pontua o cineasta que, sob orçamento de R$ 7 milhões, remexeu e confabulou as mortes dos expoentes políticos. Brasília empresta sua ambientação, por meio de cenas documentais, para a fita que tem estreia prevista para março de 2026.

Mel Lisboa, no filme, vive a protagonista, Silvana, que trabalha em coluna social de um jornal. "Ela é uma pessoa bastante comum que é escalada para cobrir um velório. E, lá, ouve umas coisas, e ela é mordida por essa dúvida e começa a ir atrás de mais dados. Aos poucos, vai descobrindo uma série de eventos que estão acontecendo sem serem noticiados. Ela tenta noticiar; não consegue. A partir disso, vai se enredando na investigação", explica o diretor.

O filme foi praticamente todo gravado em Iguape, a cidade no litoral sul de São Paulo, que viveu apogeu econômico do qual restaram muitos casarios que enriqueceram o cenário de A conspiração Condor. Numa brincadeira à la Hitchcock, Sturm faz participação mínima, encarnando "micro-micro" personagem, como adianta. Quem também teve pouco espaço na trama foram militares e torturas.

Na costura por enredos mirabolantes, uma escolha de Sturm para o posto de corroteirista veio ao acaso. "Quis arranjar um escritor de livros policiais e, passeando na Feira Literária da USP, em estande de uma editora, me deparei e segui a recomendação de um anônimo que até achei fosse vendedor (risos). Ele disse: 'Olha, esse autor aqui é muito bom, viu?!'. Era Victor Bonini (jornalista, mestre em documentário e autor finalista do Jabuti, por Tortura branca, além de integrante da Associação Brasileira dos Escritores de Romance Policial, Suspense e Terror), que 'super gosta' de cinema, e se tornou um parceiro sensacional", conta Sturm.

Entrevista com André Sturm, cineasta

CB: Há confirmação de dados quanto a mortes suspeitas dos políticos citados na trama?

AS: Não, o filme é totalmente ficção; claro, mas traz base em fatos reais. Usamos imagens de arquivo da época, até para a produção trazer caráter aproximado da verdade. Além de fatos históricos, ele tem uma trama que criei e está ligada aos fatos. Assumidamente, busquei imagens de arquivo e tem um momento em que são colocados dois personagens dentro das imagens de arquivo — justamente de Brasília, no dia do velório do Juscelino. O dia em que o caixão chegou à cidade, esteve no aeroporto, foi retirado do avião e levado até a Catedral. Depois, lidamos com as cenas das pessoas acompanhando, a fila, enfim. Lidamos no filme com todo esse clima. Conseguimos imagens com a TV Globo e com a TV Cultura. Houve um custo razoável e viável para o tamanho do filme, que é de orçamento médio.

CB: Qual a proposta?

AS: Quis fazer um filme muito inspirado nos dos anos 1970, sem muito atalho: é a personagem Silvana (Mel Lisboa), uma pessoa comum, indo em frente. Há outros tipos em volta dela: uma repórter veterana, que cobre política, feita pela Maria Manoela. Há jornalista brasileiro enfronhado, por anos, na Argentina, chamado Juan (papel de Dan Stulbach). No elenco, tem o Zécarlos Machado, o Marat Descartes e o Carlos Meceni, esse na pele de um editor de jornal.

CB: Como vê a capital dentro do teu ofício?

AS: Tenho relação antiga com o cinema e com Brasília. A primeira sessão da minha estreia em curta-metragem foi no Festival de Brasília do Cinema Brasileiro, o meu curta Arrepio (1987). Nunca vou esquecer a emoção e o Festival de Brasília, nos anos 1980, sem desmerecer o que ele é hoje, era um dos dois principais: Brasília e Gramado eram os grandes festivais, onde qualquer um queria estar. Tive o privilégio de passar o filme com o Cine Brasília lotado de pessoas que vibravam muito. E que vibravam de modo cinematográfico. Sem essa coisa de hoje em dia do "você é meu inimigo" ou "você é meu amigo". As pessoas curtiam os filmes pelo que eles reapresentavam.

CB: Mexer com um tema político como este traz preocupação?

AS: Minha ligação com Brasília é muito boa. Estive, em prol da política do audiovisual e em muitos festivais daí. Em relação a essa coisa política, acho muito chato e, com toda sinceridade, estou zero preocupado. Quem acorda de manhã com vontade de arranjar inimigo e brigar com pessoas não me interessa. Eu, absolutamente, não pensei, um segundo, nessas pessoas quando fiz o filme. Nem porque eu quero provocá-las, nem porque eu não queira — acho que são pessoas que não valem a pena. Fiz um filme que coloca o dedo numa ferida: a suspeita da morte do Juscelino, do Jango. Teoricamente, colocar essas mortes como suspeitas, evidentemente, na cartilha de hoje em dia, me posicionaria estar na esquerda. Mas, ao mesmo tempo, o filme não propõe chegar para promover vingança. 

CB: Qual o foco?

AS: O filme se propõe, na verdade, a falar um pouco sobre o que a gente vive hoje, que já vivia, e sempre viveu, e que inventaram agora o termo fake news como se tivesse despontado agora. A gente não soube o que acontecia; sempre houve informações ocultadas ou dadas da maneira como se queria que fossem noticiadas. O ponto central do filme é a verdade, a busca pela verdade e a dificuldade de alcançá-la. Para mim, é muito suspeito, acho muito suspeito que os três principais líderes do Brasil, o da esquerda (João Goulart, morto em dezembro), o do centro (Juscelino, em agosto) e o da direita (Carlos Lacerda, morto em maio de 1977) morram, em nove meses, separadamente. Qualquer uma dessas mortes não seria estranha, mas as três mortes terem acontecido em nove meses, às vésperas da eleição de 1978, é muito estranho. Ainda mais numa época em que outros líderes de outros países também morreram.

CB: Como essas mortes bateram em você?

AS: Eu era criança nessa época. A morte de Juscelino foi um trauma, todo mundo falou. Lembro, à época, de os meus avós, dos meus tios, falarem: "Olha, muito estranho...". Sempre cresci nesse clima. A (morte do) João Goulart, à época não foi tão divulgada, evidentemente, mas, depois que virei universitário e participando da vida universitária, a morte dele sempre foi colocada como suspeita.

CB: De certo modo o clássico documentário de Silvio Tendler, Jango (1984), te auxiliou?

AS: Tive o prazer de exibir Jango no Cineclube da GV (Fundação Getulio Vargas). O filme tinha estreado, tinha ficado um tempo no cinema, saiu, e eu me lembro de ligar para o Tendler e conseguir exibir. O filme veio naquele momento, em que, com uns 18 anos, a gente está vibrando, aprendendo, se politizando — foi um filme que me marcou muito notar tudo que ele colocava no filme.

CB: Há elementos de censura no filme? Como rememora o contexto da ditadura?

AS: Temos no filme um censor, um chefe de polícia. Mas o filme não tem tortura — não tem militar. Eu quis fazer um filme em que tudo isso fosse subliminar: tudo presente, mas não visto. Há uma coisa que as pessoas de hoje — o povo da lacração — não entende. Quando eu tinha 10 anos, em 1976, naquele período, se você não fosse um professor de universidade que quisesse dar marxismo, você não percebia que tinha uma ditadura no Brasil. Não era um país como foi entre 1969 e 1972, em que pessoas tinham medo; era uma vida normal. A gente nem sabia, como a informação era limitada, não sabíamos qual livro era proibido, a gente nem sabia da proibição de ele estar disponível; você não tinha internet, você não tinha muito acesso. Quero falar um pouco disso: de como se anestesia a população. Como as pessoas vão levando a vida sem se dar conta de que tem coisas sérias acontecendo. Esse momento teve sua importância. Não é aquele momento pesado — é o mundo anestesiado, em que coisas viram normais, e a vida segue.

 


  •  A conspiração Condor
    A conspiração Condor Foto: Pandora Filmes
  •  Andre Sturm, diretor do longa A conspiração Condor
    Andre Sturm, diretor do longa A conspiração Condor Foto: Pandora Filmes
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postado em 14/10/2025 04:01
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