LITERATURA

Autor de Torto Arado, Itamar Vieira Júnior encerra trilogia com novo livro

Novo romance de Itamar Vieira Júnior encerra trilogia iniciada com Torto arado, a história de uma mãe em busca do filho

Escritor Itamar Vieira Júnior -  (crédito: Renato Parada/Divulgação)
Escritor Itamar Vieira Júnior - (crédito: Renato Parada/Divulgação)

Rita Preta carrega milhões de mulheres brasileiras. Mãe, periférica, negra, foi mandada do campo para Salvador quando criança para trabalhar em "casa de família". Teve três filhos, cada um de um pai diferente, e, como uma boa parcela da população brasileira, é mãe solo porque nenhum pai quis assumir as crias. Um dia, o filho mais velho desaparece. Não volta pra casa. À medida que busca o adolescente, Rita Preta se depara com informações desencontradas, mas coincidentes em um ponto: ele foi levado por homens da polícia. O novo romance de Itamar Vieira Júnior, Coração sem medo, fecha a trilogia iniciada com Torto arado e Salvar o fogo com uma história tão triste quanto banal na realidade brasileira.

O autor deu início às viagens de lançamento do romance em Brasília, onde participou de uma roda de conversa na Caixa Cultural.

Em entrevista ao Correio, ele conta que a ideia de Coração sem medo surgiu quando ainda escrevia Torto arado, hoje traduzido para 33 idiomas em mais de 50 países e  detentor de quatro prêmios, entre eles o Jabuti, o Oceanos e o LeYa. "Ali, eu percebi que eu tinha tanta coisa para escrever sobre essa relação de homens e mulheres com a terra que eu não iria esgotar no primeiro romance. A ideia veio naquele momento, e dei prosseguimento depois a escrita de Salvar o fogo, pensando no fechamento dessa trilogia com Coração sem medo", diz Itamar. O romance trata, principalmente, da busca de Rita Preta pelo filho Cid, que ela não sabe se morreu, se está vivo, se fugiu ou se foi assassinado.

É, Itamar lembra, um arco narrativo clássico na história da literatura. Ele cita a tragédia Hécuba, de Euripedes, na qual uma mãe quer vingar a morte dos filhos, a peça Mãe coragem e os seus filhos, de Brecht, e Ana não, do espanhol Augustin Gomez-Arcos. "A Rita Preta é essa personagem que, apesar de nos falar de um tempo que é hoje, carrega esse drama milenar que atravessa a história da humanidade, a história da dramaturgia e da literatura", aponta Itamar.

O tema atravessa a literatura e a dramaturgia desde sempre, mas quando a perspectiva é a sociedade brasileira, toma outras dimensões. "Pensando no Brasil e nessa Trilogia da Terra, o tema é esse corpo que também é um território que nos é negado, né?", repara o autor, ao associar essas mães periféricas e pretas à história de um país que, durante séculos, se construiu sobre a prática da escravização. "Não é um drama de hoje, é um drama de sempre. Se pensarmos nas mulheres periféricas, negras e no fato de que elas já tinham se levantado durante a ditadura militar e em diversos momentos da história e que, até hoje, são assoladas por essa violência, seja do crime organizado, seja a violência estatal, e ainda precisam viver essa dor da perda dos filhos", diz o autor.

Rita Preta vem da linhagem de Belonísia e Bibiana, as irmãs descendentes de escravizados de Torto arado que encabeçam a história de desterrados narrada ao longo da trilogia. Os rios, elementos importantes dos dois primeiros livros, também têm forte presença em Coração sem medo, embora agora seja o espaço urbano o cenário. A água que corre é simbólica e forte na vida dos personagens: leva vidas e traz encantos.

Se os dois primeiros romances lidam intensamente com o mundo da magia — os encantados vão e vêm, os personagens têm visões e há entidades nem sempre associadas ao plano material —, agora são os sonhos de Rita Preta que tomam a dianteira. Impressionam menos, por serem mais comuns, mas são tão impactantes na trajetória da personagem quanto as visões de Luzia ou o jarê de Torto arado. "Como os sonhos são mais comuns, todo mundo tem, eles têm menos essa carga da magia e não carregam um estranhamento também", explica Itamar. "Mas, talvez, a intenção seja comunicar que essas experiências que transcendem a vida, que transcendem esse mundo onde nós estamos, elas são universais, seja no jarê, seja no sonho, todos nós carregamos."

A busca de Rita Preta é dolorosa e lamentável, mas ela se mantém firme, embora ameace desmoronar em diversas ocasiões. A busca sem sucesso pelo corpo do filho num descampado de desova, a tensão com os dois menores, para os quais resta pouco fôlego e carinho, o afastamento gradual do amante diante do drama, a prisão da melhor amiga, que buscou no roubo a reparação depois de ser demitida do emprego de doméstica sem o pagamento dos direitos devidos, a trajetória de Rita Preta é marcada por tropeços narrados, muitas vezes, num ritmo de suspense combinado com tragédia.

"É um texto que tenta resgatar essa personagem que atravessa as eras, atravessa o tempo e que se atualiza nesse romance. Rita Preta é uma mulher independente, maltratada pela vida, mas que não se conforma com esse desaparecimento e vai até o fim do mundo para encontrar uma resposta. Muitas mulheres não têm essa resposta, continuam sem essa resposta, mas nem por isso desistem. Elas seguem", aponta Itamar, que conversou com o Correio sobre o livro e como ele dialoga com a realidade brasileira.

Entrevista

Como se deu a construção da personagem Rita Preta? Quem é essa mulher?

Essa mulher espelha muito as mulheres à minha volta, e não foi diferente com os outros romances. Ela espelha as mulheres dos lugares onde eu vivi, as mulheres da família, as mulheres que carregam esse peso muito duro, muito cruel de levar uma família nas costas. Como chefe de família que precisa lidar com as minúcias do cotidiano, com as dificuldades da vida e manter esse microcosmo, essa comunidade que é uma família de pé. E que muitas vezes erram, porque são humanas, são imperfeitas. Mas também estão ali, reunindo tudo que têm para poder manter essa unidade íntegra, preparar esses filhos para a vida.

Coração sem medo sai de um meio rural para um meio urbano. Como esse romancese comunica com os dois outros da trilogia?

Eu acho que nesse romance tem uma coisa que se comunica com os demais que é essa história que transcende a do mundo vivo, esse mundo real. Sempre me falam que Torto arado ou Salvar o fogo carregam esses elementos mágicos na história. E eu digo sempre que a intenção não era essa, a intenção era só reproduzir as crenças, as vidas das pessoas e como elas veem, como elas enxergam o mundo. Eu acho que Coração sem medo tem uma história muito particular com os sonhos. A todo momento, até o último capítulo, ela é confrontada com esses sonhos, que é essa dimensão onírica da existência compartilhada por todo e qualquer ser humano, então não é difícil de compreender. E isso carrega muitas chaves para aquilo que a gente não consegue compreender no nosso dia a dia, no cotidiano. Os sonhos levantam perguntas, apontam as nossas preocupações, são capazes de comunicar histórias das quais a gente não tem uma absoluta compreensão, mas que, ainda assim, a gente acorda e aceita. Nesse romance, o sonho cumpre a função que o jarê cumpre e, Torto arado ou que as visões de Luzia têm Salvar o fogo.

O romance também tem um certo suspense, uma tensão construída nesse vaivém que é a busca da Rita Preta pelo filho. É quase um thriller?

Eu acho que isso vem de tentar capturar, de alguma maneira, a expectativa que esse drama traz. Algumas vão ter a notícia de imediato. Outras passarão a vida inteira sem saber onde é que estão esses jovens, se eles vivem, se eles não vivem, onde estão enterrados, será que terão o direito ao luto? Era inevitável que não carregasse essa expectativa. E essa expectativa era minha também, enquanto eu escrevia. Até onde essa mulher vai continuar sem resposta? E eu acho que a chave está no poder da imaginação que todos nós temos.

De que maneira, na ausência de uma resposta, somos capazes de imaginar?

O irmão do adolescente desaparecido é um menino que gosta de escrever histórias.

De que forma é um personagem simbólico quando pensamos em literatura ememória?

É o poder da memória, o poder da palavra, o poder da literatura para nos restituir a história. O que o autor deseja com essas histórias? Talvez imaginar uma história que nos foi retirada de uma maneira abrupta. Muitos de nós não tivemos direito a essa história. Nós, que não somos herdeiros, que não carregamos sobrenomes de uma elite social, muitas vezes só temos o direito de imaginar essas vidas e entender por que estamos aqui.

Você falou sobre o poder da literatura: pode comentar o que achou do comentário da professora Aurora Bernardini, da USP, ao dizer que seus romances não são literatura?

É uma política, né? Eu acho que o que a professora Bernardini expôs na entrevista é uma visão muito particular de mundo, de experiência dela. Claro que há outras visões sobre o que é a literatura. Eu tenho publicado fora do Brasil e acho que esse questionamento sobre se o que eu faço é ou não é literatura só apareceu aqui, em um setor da crítica. Eu gosto muito de indicar a leitura de O Direito à Literatura, do Antônio Cândido. Ele é tão generoso! E olha que o Cândido era da USP também, assim como a professora Bernardini. Ele diz que literatura não é só o que está no livro, literatura são as tradições, as histórias orais contadas de geração em geração que nos inspiram a escrever. É o canto do indígena quando vai caçar. E eu acho que é isso. Nós queremos um país de leitores, certo? A gente entende, compreende a importância da leitura. Eu acho que a gente precisa simplesmente dessacralizar o que é literatura, o que são as narrativas, a história, para chegarmos ao público leitor, porque o que sobrevive é isso.

Coração sem medo

De Itamar Vieira Júnior. Todavia,
336 páginas. R$ 89,90

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postado em 15/10/2025 04:01 / atualizado em 15/10/2025 11:32
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