
A imprevisibilidade que faz morada nas narrativas e na linguagem desdobrada em filmes como Cassino (1995) e Touro indomável (1980) se apresenta na contundente série, em cinco episódios, da Apple TV, O lendário Martin Scorsese. Conduzido em relatos, por Rebecca Miller (diretora e atriz, filha do autor de A morte de um caixeiro-viajante), o diretor, aos 82 anos, ganha uma proximidade com o espectador de raro alcance, e que revela dados como do pesado uso de drogas na virada dos anos 1970 para os 1980, além de dramas domésticos como o do abatimento da esposa, a ex-editora de livros e produtora Helen Schermerhorn Morris, acometida por Parkinson, desde os anos 1990.
A dificuldade de conexão na vida privada e o isolamento tornam mais claro o refinamento nas abordagens de longas protagonizados por dissidentes sociais como Taxi Driver (vencedor da Palma de Ouro em Cannes) e Os bons companheiros (Leão de Ouro, no Festival de Veneza de 1990). Vencedor tardio do Oscar, por Os infiltrados (2006), que veio inspirado na sordidez de produtos audiovisuais de Hong-Kong, Scorsese motivou cenas de filmes como Coringa (o longa de 2019, que traz ecos de O rei da comédia, com Jerry Lewis) e Pulp Fiction (1994), no qual Quentin Tarantino usou narrativa de Steven Prince (impressa no documentário de 1978 American boy, de Marty, como é amplamente chamado).
Entre entrevistados da série, Steven Spielberg comparece para atestar que "(Como Marty) não existe ninguém; e jamais existirá outro"; já Leonardo DiCaprio o considera o mestre do "lado sombrio da condição humana". Scorsese, pela vez, atesta a devoção ao precursor do cinema independente John Cassavetes e a paixão pelo requinte dos filmes de Elia Kazan. A lida com excesso de cocaína, o risco da hemorragia cerebral e a lacuna criativa, tudo seguido do renascimento pelo impulso do amigo Robert DeNiro, disposto ao projeto da cinebiografia do boxeador Jake LaMotta, ficam cravados na série.
Focos de comportamentos destrutivos, retratos de extorsão, manejo de tráfico, para além do painel de comportamentos expressos pelo roteirista (e amigo) Nicholas Pillegi, são referendados na série pelo dia a dia no Queens (a família foi expulsa de Corona e se avizinhou da violência da novaiorquina Little Italy). O jeito Scorsese de ser é revisto por amigos como Joe Morale e Robert Uricola, além de parceiros criativos como o roteirista Paul Schrader, 79 anos, e a montadora Thelma Schoonmaker, 85.
Na gangorra da carreira, feita de altos e baixos de Marty, a série ilustra as pressões dos estúdios e a crise no casamento de Scorsese, à época da realização concomitante de New York, New York (1977) e o colapso, quando da investida com integrantes da The Band, na realização de O último concerto de rock (1978). Dizendo-se muito "mais simples" do que o ex-marido, Isabella Rossellini comparece para falar dos "tormentos, na busca" por épicos, enfrentados pelo mestre (tão devoto do cinema italiano advindo com o pai de Isabella, Roberto Rossellini, quanto dos filmes da nouvelle vague).
A série de Rebecca Miller investe no exame da formulação do cinema de Scorsese, apresentando localidades que o influenciaram, jovem, como a Catedral de Saint Patrick atravessada, numa rua, por um bar referencial para o bom andamento da máfia. Há revelação do seu apreço pelo diálogo com críticos catedráticos e influentes do porte de Gene Siskel, Roger Egbert e Pauline Kael. Entusiastas de Scorsese, como Spike Lee, George Lucas, Brian De Palma e Salvaltore "Sally Gaga" Uricola — este um amigo que deu molde para o clássico personagem de Robert De Niro, Johnny Boy, de Caminhos perigosos (1973) — estão em cena.
As origens
Com imagens do mentor da juventude de Scorsese, o padre Francis Principe, a série dá espaço para o cineasta tratar da estreita ligação com os pais e ainda para ressalvar a pequena representatividade do tio Joe "The Bug" (com quê de contraventor) no clã. As filmagens, do alto, e as preferências por afrescos de cinema, se explicam pelo ângulo com que, na infância, via o mundo, das janelas, recluso em apartamento por causa dos ataques de asma. O relato de ataques de raiva como combustível de enfrentamentos dos poderosos da indústria figuram, ao se falar ainda do diretor como agente de diversificação de tema pela execução dos diferenciados Depois de horas (vencedor da melhor direção, no Festival de Cannes), Kundun (1997), O irlandês (2019) e Silêncio (2016).
O lendário Martin Scorsese dispõe traços da meticulosidade do diretor que apresenta exames sociais densos como os de Gangues de Nova York (2002), A época da inocência (1993), Assassinos da lua das flores (2023) e O lobo de Wall Street (2013). Referenciais para discussões feministas, filmes como Alice não mora mais aqui (1974) e Quem bate à minha porta? (1967) têm bastidores examinados na série.
Exímio na condução (ao lado de Michael Wadleigh, mas sem crédito) de Woodstock (1969), exemplar no pacifismo, Scorsese, na série da Apple TV, traz a reboque cabedal de polêmicas, particularmente, quando tratados os filmes de submundo e o golpe sofrido, na adaptação de Niko Kazantzakis (A última tentação de Cristo, de 1988). Atormentam seu passado, as conjunturas do atentado contra o candidato à presidência George Wallace (cometido por Arthur Bremer, com o qual associou a Taxi driver) e ainda a onda conservadora americana, pós crime contra John Lennon, por Mark David Chapman. A fim de impressionar Jodie Foster, o criminoso John Hinckley Jr., em 1981, atentou contra a vida do presidente Ronald Reagan, fato que levou Scorsese ao uso de colete à prova de balas na ocasião em que disputou Oscar por Touro indomável. Haja histórias.

Diversão e Arte
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