De personagens arredios, que acusam carga de desconforto social, até uma calorosa travessia emocional, capaz de atenuar vidas de solidão e um legado de constante rejeição: o enredo do mais novo filme brasileiro da Netflix, O filho de mil homens, traz embutido o mérito de gerar empatia.
Aos 49 anos, o diretor paulistano Daniel Rezende, sempre lembrado pela indicação ao Oscar e pela vitória (em cima de filmes de Peter Jackson e Martin Scorsese) do prêmio inglês Bafta, com a montagem de Cidade de Deus, embarcou na adaptação literária com agudo respeito pelos "personagens que conseguem se encontrar e se apoiar apesar de seus profundos traumas". Coproduzido, entre outros, pelo brasiliense René Sampaio, o filme, gravado entre Búzios e pontos da Chapada Diamantina, tem a presença central de Rodrigo Santoro e a narração de Zezé Motta.
A promoção de bem-estar coletivo e a reconsideração de papéis sociais, com a recriação de novos espaços para cada personagem, faz do protagonista Crisóstomo uma testemunha ativa, ao intermediar transformações. Na trama, um pescador complacente viverá com o órfão Camilo (Miguel Martins), designado seu filho; e agrupará em torno de si, Isaura (Rebeca Jamir) e Antonino (Johnny Massaro, na fase adulta, antecedido por Antonio Haddad), ambos abatidos por preconceitos.
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A vida de Crisóstomo impulsiona trechos no livro como: "Disse à natureza que, por fraca compensação, arranjara um boneco para abraçar e que tentara ensinar-lhe alguma coisa sobre como deitar as redes à água. Confessou que lhe falava como se falasse a uma pessoa de verdade, como se estivesse maluco". A publicação veio em 2011, sob autoria do angolano Valter Hugo Mãe, que adotou cotidiano português, e, tendo assistido ao filme, chorou, diante da sensibilidade da equipe com o material adaptado.
Diretor de filmes melancólicos como Bingo, o rei das manhãs e de adaptações solares do universo criado por Mauricio de Sousa (nos dois Turma da Mônica — Laços, de 2019, e Lições, de 2021), com O filho de mil homens, Daniel Rezende, se volta ao introspectivo, num longa-metragem que traz a fotografia de Azul Serra e belos personagens para as atrizes Juliana Caldas e Grace Passô.
Entrevista // Daniel Rezende, cineasta
Qual foi a temática do novo filme que mais quis impregnar no espectador?
O que mais me tocou na leitura do livro O filho de mil homens foi a abordagem poética e sensível da conexão humana. Os personagens conseguem se encontrar e se apoiar apesar de seus profundos traumas e das angústias geradas por uma sociedade que os oprime com seus padrões sociais e crenças limitantes. No filme, foquei especialmente na escuta mútua e no acolhimento que levam as protagonistas a formar uma família intencional, unida pelo afeto genuíno e pela empatia.
No que na literatura de Valter Hugo Mãe dialoga mais agudamente com o contemporâneo? O que você mudou para mais se aproximar dos espectadores de cinema?
O livro toca em questões universais. Partimos de personagens que sentem a angústia do não pertencimento e a solidão, sendo conduzidos a um acolhimento verdadeiro e sensível que cura feridas e abre espaço para relações interpessoais autênticas. Apesar de atemporais, esses sentimentos se tornam urgentes em um momento de extrema solidão social, onde a conexão humana verdadeira é essencial em meio a algoritmos e artificialidades. Crisóstomo nos convida a um olhar empático, curativo e não julgador. A maior dificuldade na adaptação foi transformar a poética da palavra de Valter em uma poética imagética. Para isso, apostamos nos silêncios, nos olhares, nas interações sem palavras, nos símbolos e nas metáforas. O olhar do Crisóstomo é curativo; ele não só cura as personagens, mas também o espectador, que terá uma sensação parecida com a da leitura, por meio de uma experiência cinematográfica completamente diferente.
Como arriscar em situações com doses de realismo mágico, sem incorrer no grotesco?
O realismo mágico entrou no filme como sonhos e metáforas, algumas vezes com o uso de efeitos especiais, como nas imagens do fundo do mar e o uso das borboletas. Mas também se manifestou na escolha das locações, no figurino e nos objetos. Tudo o filme existe, mas quando e onde? Não sabemos, e essa incerteza nos transporta para uma outra frequência. Nesse não lugar e não tempo, podemos olhar o outro e nos enxergar. O mágico está no filme quando entramos nos sentimentos das personagens, nas suas projeções. E esse é o lugar onde tudo pode. Por isso, toda a nossa abordagem foi feita com muita sutileza e delicadeza.
As tramas entrelaçadas — tecidas ao tempo irregular — foram um desafio na montagem?
A estrutura temporal do filme foi estabelecida desde o roteiro, sendo um verdadeiro quebra-cabeça concebido pela dramaturgia, de modo que alteramos muito pouco a ordem narrativa durante a montagem. O desafio da montagem foi acreditar nos silêncios, nos olhares, nas emoções. assim, entendemos até onde podíamos esticar a narrativa, quanto tempo precisávamos para sentir e nos conectar com as dores e conquistas de cada história.
Qual foi a estrutura ofertada pela Netflix? Foi producente para ti, enquanto brasileiro? Temeu pela padronização quando fez negócio com uma plataforma tão globalizada?
A Netflix demonstrou uma visão muito clara ao escolher este projeto, pois ele se alinhava perfeitamente com o tipo de narrativa que eles estavam buscando para seu catálogo. A parceria foi, de fato, a melhor possível. Entre a direção, as produtoras, Biônica Filmes e Barry Company (do brasiliense René Sampaio) e Netflix, houve uma troca constante e extremamente respeitosa com a autoralidade e a essência original do projeto. Eu só tenho a agradecer por esse apoio, pois em nenhum momento perdemos a integridade e o sonho inicial de todos que acreditaram neste filme.
Qual a cobrança da popularidade dos resultados com algorítimos? Te assustou?
Esse é um projeto ousado em todos os sentidos. Ele me tirou completamente da zona de conforto em que eu estava com os trabalhos anteriores, especialmente porque foi a primeira vez que escrevi um roteiro. Desde o início, pensamos no filme, na adaptação dessa história e na forma como as emoções das personagens e o ritmo dos silêncios conduziriam a narrativa. Em tempos de algoritmos, é sempre importante ter filmes que desafiam os caminhos já estabelecidos e que se permitem ousar. Acredito que esse público existe, e ele costuma reconhecer e agradecer a coragem de quem se dedica a projetos assim. Mais uma vez, valorizo muito a iniciativa da Netflix ao apostar neste filme.
Filmar sexo trouxe que desafios?
As cenas de teor sexual, mesmo as mais duras e difíceis, foram tratadas no filme com a máxima sutileza e cuidado. No entanto, meu foco principal estava na sequência entre Crisóstomo e Isaura. Nossa intenção ali era criar um momento de profunda conexão e presença entre duas pessoas que nunca foram tocadas com genuíno carinho. Trabalhamos os detalhes: o olhar, a respiração, o toque sutil, o cheiro, o consentimento e, acima de tudo, a presença. Acredito que poucas cenas de intimidade na história do cinema atingem esse grau de delicadeza emocional. Para alcançarmos isso, fizemos uma preparação intensa com uma preparadora corporal e uma coordenadora de intimidade. E a entrega de Rodrigo Santoro e Rebeca Jamir foi absolutamente total. Sua generosidade e vulnerabilidade em cena foram a chave para materializar esse encontro com tamanha profundidade e verdade.
A parceria com o Rodrigo Santoro tem vindo, com certa regularidade. Como vê o rendimento dele?
Rodrigo é um patrimônio cultural do nosso país. Tive a sorte de trabalhar com um ator tão inteligente, exigente, provocador, sensível e talentoso. Nossa primeira parceria, no Turma da Mônica: Laços, onde ele deu vida ao Louco, gerou uma troca tão gigante que desejávamos repetir.
Que nível de sensibilidade foi depurado, em O filho de mil homens?
Dar vida a Crisóstomo foi, definitivamente, um desafio imenso: um personagem difícil, que poderia facilmente cair no caricato ou no pueril dentro da fábula. A busca principal, feita em parceria e com a total dedicação de Rodrigo, foi humanizar o personagem e deixá-lo de carne e osso. Trabalhamos em estágios: iniciamos com a discussão racional e a construção de seu histórico. Depois, mergulhamos no trabalho corporal para definir seus movimentos e gestos, e então desconstruímos o modo como ele falava. Por último, fizemos uma imersão sensorial e emocional intensa, usando técnicas, como respiração, sutileza e meditação ativa. Rodrigo gosta de desaparecer nos papéis; assim, todo o trabalho do figurino de Manuela Mello, da caracterização de Martin Trujillo, da arte de Taísa Malouf e da fotografia de Azul Serra foi essencial para trazer nosso pescador fabuloso à vida, junto à sutileza da interpretação de Rodrigo e seu olhar curativo. Vejo que todo o elenco do filme está maravilhoso: Rodrigo brilha e seu trabalho se complementa através de toda essa família que se entregou a esse projeto com afeto e carinho.
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