FliParaíba 2025

Mulheres que narram o mundo: literatura vira arma de memória e resistência

Andreia Nunes, Inês Pedrosa e Odete Semedo exploram violência, poder, tradição e democracia a partir da escrita feminina

Debate reuniu três perspectivas distintas sobre a escrita de mulheres, todas atravessadas por violência, resistência e a transformação simbólica que a literatura é capaz de operar -  (crédito: Secult PB)
Debate reuniu três perspectivas distintas sobre a escrita de mulheres, todas atravessadas por violência, resistência e a transformação simbólica que a literatura é capaz de operar - (crédito: Secult PB)

A mesa Mulheres que fundam mundos compôs a programação de debates do 2º Festival Literário Internacional da Paraíba (FliParaíba 2025), realizado em João Pessoa durante 27 e 30 de novembro. Integrada por Andreia Nunes (Brasil), Inês Pedrosa (Portugal), Odete Semedo (Guiné-Bissau) e mediada por Marília Arnô (Brasil), a conversa evidenciou a importância da participação feminina plural na literatura.

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O debate reuniu três perspectivas distintas sobre a escrita de mulheres, todas atravessadas por violência, resistência e a transformação simbólica que a literatura é capaz de operar. Andreia Nunes, promotora e escritora de romance policial, iniciou destacando que sua vontade de criar personagens femininas fortes nasce da constatação de que “a literatura traduz a vida em linguagem”. Ela explica que, durante séculos, “não foi dado às mulheres que nos antecederam retratar relações de poder e violência”, mas que hoje autoras do gênero vêm ocupando esse lugar justamente porque participam da sociedade e testemunham “relações de corrupção, relações de violência, relações de abuso sexual”. Chamou esse gesto de escrevivência, citando Conceição Evaristo.

Andreia relatou que percebeu haver muita experiência feminina ainda silenciada no romance policial e que a ficção se tornou "um veículo condutor para que a gente pudesse levar a nossa mensagem de uma maneira interessante e lúdica". Lembrou o prefácio de José Américo de Almeida em A bagaceira ao afirmar: “Há muitas formas de se dizer a verdade, talvez uma das mais persuasivas seja contando uma mentira.” A autora também resgatou Anne Catherine Green, contemporânea de Edgar Allan Poe, que permanece pouco conhecida devido à "invisibilidade que a condição feminina trazia à mulher até hoje".

Ao comentar o momento atual do romance policial, ela afirmou que o gênero vive uma fase "muito profícua exatamente pela chegada da mulher", que flexibiliza margens e amplia perspectivas, tornando o campo mais diverso e incômodo — como deve ser.

Da perspectiva portuguesa, Inês Pedrosa retomou o tema da violência patriarcal a partir do percurso feminino no século 20. Ela lembrou que foi o primeiro século em que mulheres apareceram em público, algo extraordinário considerando que são “as parideiras da humanidade desde o início”. Destacou a brutalidade ainda presente em muitos países, citando o Afeganistão, onde “as mulheres são completamente escravizadas, e não há ONU nenhuma do mundo que se mobilize para isto.”

Seu novo romance trata desse percurso, mas também da ditadura em Portugal e da formação de famílias por amor — fenômeno recente. Para Inês, a violência patriarcal só terminará quando os homens reconhecerem que o machismo também os torna infelizes: “O patriarcado é um regime que cria infelicidade.” Ela relatou falas de mulheres que conheceu, como a que afirmou: “Não tens que ter pena de mim. Eu não sou digna de pena. Eu tenho a minha dignidade.” E criticou a ideia de feminilidade como reino da delicadeza: “É uma ideia completamente machista porque as mulheres são mais resistentes fisicamente do que os homens.”

Com humor ácido, propôs que, se os homens engravidassem, “o aborto era uma bênção” e o debate sobre natalidade seria imediato. Resistiu a enquadramentos reducionistas sobre seu trabalho: “Eu, por exemplo, vou muitas vezes à mesa de literatura e dizem: 'Os seus romances falam de amor e de morte.' Eu disse: 'Não, falam da condição humana como os do Tolstoy.' Um escritor é sempre um ser andrógeno. Parece que é proibido agora nos documentos oficiais pôr-se um indefinido. Eu acho que as línguas têm que ter o direito a mexer-se, as pessoas têm o direito a ser quem quiserem.”

Na sessão de perguntas, sintetizou que a disputa não é sobre amor, mas sobre poder: “Quem o tem não quer largar.” Concluiu que só haverá igualdade quando houver tantas mulheres quanto homens no topo das empresas e governos. Para ela, o futuro da democracia está no romance: “É a fórmula que dá voz aos que não tinham voz.”

Da Guiné-Bissau, Odete Semedo trouxe a força ancestral como fundamento da criação literária. “Abordar o tema é falar de uma genealogia, de um movimento, de uma força de memórias que nos edificam e de futuros que ainda exigem que a sonhemos”, argumentou.

Questionada sobre a capacidade das mulheres de enfrentar o mundo, foi categórica: “Eu digo que sim.” Apesar das formas de invisibilidade, elas sustentam o país: “Na volta quem são os pilares dos lares? São as mulheres.” Odete trouxe ainda o peso da ancestralidade feminina no imaginário guineense e reforçou o papel da literatura como registro quando a história tarda.

A autora lembrou as cantigas recolhidas por Marcelino Marques de Barros, que ouviu ex-escravas narrarem dores e recusas: “Já tenho o meu embrulho feito (…) não aguento tanto sofrimento.” Ou ainda: “Casamento eu quero, gosto não nego, mas o de violência, o de açoite e de maltrato eu recuso.”

Na discussão final, Odete defendeu que melhorar o mundo exige humanização e ética, desde a família até a comunidade: “Temos que apostar na educação para a cidadania”. Citou Amílcar Cabral ao lembrar que não há independência verdadeira sem dignidade material. A transformação, concluiu, depende de mulheres e homens mudarem sua forma de pensar através de uma educação para os direitos humanos.

 

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postado em 01/12/2025 15:55
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