
Em meio a mais uma crise política entre Executivo e Legislativo, por conta da derrubada pelo Congresso dos decretos de aumento do Imposto sobre Operações Financeiras (IOF), o governo do presidente Luiz Inácio Lula da Silva caminha a passos largos para um colapso fiscal em 2026, em pleno ano eleitoral, mas continua com o discurso otimista, ignorando o problema. Essa é a avaliação da economista e escritora Zeina Latif, sócia da Gibraltar Consulting.
"Não dá mais para negar que tem problema fiscal. Esse é o único lado positivo. E esse problema caiu no colo do atual governo, porque, muitas vezes, acabava ficando para o seguinte. O dinheiro está acabando mesmo", alerta Latif, em entrevista ao Correio.
A economista critica o discurso do governo, que nega problemas, e reforça o consenso entre analistas de contas públicas que o arcabouço fiscal não se sustenta e o Executivo só consegue cumprir a meta fiscal graças a "puxadinhos" no Orçamento. Entre esses "puxadinhos" para cumprir a meta fiscal, o governo segue pedindo ajuda ao Supremo Tribunal Federal (STF), que deu o aval para descontar os pagamentos de precatórios (dívidas judiciais), e, agora, para o desconto do pagamento do reembolso das vítimas das fraudes nas aposentadorias do Instituto Nacional do Seguro Social (INSS), revelado em maio.
Na avaliação de Zeina Latif, o cenário macroeconômico poderia estar em situação bem mais favorável, e o país deveria estar crescendo a um ritmo superior ao atual. Embora o governo comemore indicadores positivos, como o crescimento do Produto Interno Bruto (PIB) acima das expectativas do mercado e a queda do desemprego para níveis historicamente baixos, os efeitos colaterais da política de aumento de gastos têm impactado diretamente a taxa básica de juros (Selic), atualmente em 15% ao ano — o maior patamar em quase duas décadas —, o que acaba freando a expansão econômica. A seguir, os principais trechos da entrevista:
O Supremo deu aval para o governo contabilizar despesa com a restituição das vítimas do INSS fora da meta fiscal, como fez com os precatórios. Qual sua avaliação do quadro atual? Isso mostra que ele segue preocupante?
Esse é nosso calcanhar de Aquiles, porque a questão fiscal tem um problema concreto do Orçamento do ano que vem. Estamos falando de um Estado que não funciona. O Orçamento não aguenta nenhum desaforo. Não tem margem nenhuma. Quando tem uma receita extra, ela já vira gasto. A despesa fica para depois, e o governo acaba fazendo puxadinhos no Orçamento. Há problema de desenho, de governança, com decisões que acabam aumentando o gasto. O problema é em várias frentes. A confusão do IOF é só mais uma manifestação desses problemas.
O governo só consegue fechar as contas com artifícios contábeis para cumprir a meta, como descontar da conta precatórios, o reembolso do INSS, a chuva no Rio Grande do Sul…
Exato. Ainda falta um plano estruturado para os próximos anos de ajuste, como reformas, revisão de gastos. Não há uma política conseguindo dar conta desses desafios. O quadro é ruim e não há um plano de voo traçado, como aconteceu na transição do governo Dilma Rousseff (PT) para o Michel Temer (MDB) — após o impeachment (em 2016). Era possível enxergar um plano de voo muito claro no discurso e nas movimentações dos times econômico e político, com agenda fiscal. Tinha a regra do teto, e, depois, a reforma da Previdência, que ficou para o governo seguinte. Com esse plano de voo, as expectativas melhoraram e o Banco Central conseguiu cortar os juros, mesmo com a dívida pública aumentando e um deficit nas contas públicas que não era brincadeira.
E como fica o cenário fiscal atual, com as eleições se aproximando e o fim da licença do STF para o excluir parte dos precatórios para o cumprimento da meta em 2027?
O próximo presidente, assim que chegar, vai ter que pedir outro waiver para pagar precatório fora do Orçamento. E vai ter que reformar o regime fiscal, porque o arcabouço não pára em pé. Talvez tenha que mudar a meta fiscal de 0,5% do PIB de superavit primário (economia para o pagamento dos juros da dívida pública), em 2027. Vai chegar, por esse aspecto, vulnerável e não vai poder só fazer ajustes. Vai ter que apresentar uma agenda de reformas, senão a lua de mel vai embora rapidinho. Hoje, não dá para saber qual é o plano de voo. Na questão tributária, pode ser qualquer coisa. Uma hora é o IOF, outra hora pode ser outra coisa, como a taxação de dividendos prevista na medida provisória (MP) que está no Congresso. Teremos um ambiente macroeconômico difícil, mas que poderia ser bem melhor. Era para o Brasil avançar nessas discussões, mas o país não só não avançou como teve retrocesso. Agora, ninguém está esperando nada diferente. O discurso do governo é ruim, porque continua culpando o que recebeu do (ex-presidente Jair) Bolsonaro, mas já se passaram dois anos e meio.
O ministro Fernando Haddad vem batendo na tecla de justiça tributária e que falta fazer o ajuste pelo "pessoal da cobertura"...
Isso atrapalha, porque porque eles falam assim: 'olha, a gente fez tudo certo'. Mas não, não fizeram tudo certo. Esse discurso, é claro, tem um componente político que enfraquece o ministro. A postura meio em cima do palanque atrapalha do ponto de vista de criar credibilidade na agenda econômica. É uma mistura de papéis que atrapalha. O discurso é ruim, porque o governo insiste em falar que estão fazendo tudo direitinho, que recebeu uma herança terrível, mas cumpriu a meta fiscal. Essa é a retórica. E quando eles negam o problema, perdem o chão.
A agenda de revisão estrutural dos gastos foi abandonada pela equipe econômica?
Essa agenda (de revisão de gastos) nunca existiu. Havia ali gente técnica, de qualidade, trabalhando. Mas nunca foi uma agenda da área política do governo. Era uma agenda isolada de pessoas de perfil técnico. E, por esse aspecto, ela nunca foi abandonada porque nunca foi abraçada.
E, com isso, os alertas de analistas sobre um colapso fiscal em 2026 aumentam, com mudança de meta do arcabouço…
Essa é a única coisa boa dessa história. Não dá mais para negar que tem problema fiscal. Esse é o único lado positivo. E esse problema caiu no colo do atual governo, porque, muitas vezes, acabava ficando para o seguinte. O dinheiro está acabando mesmo. O governo vai ter que lidar com suas escolhas, sem poder empurrar os problemas para o próximo, como nas gestões anteriores. Mas eles batem na tecla de que estão fazendo tudo certo. O Bolsonaro fez isso também. E é verdade que ele deixou problemas fiscais, mas menos do que o ministro colocou.
Mas a pedalada dos precatórios no governo Bolsonaro foi vergonhosa…
É, precatórios e furos no teto de gastos… Se formos pensar friamente, a pandemia salvou a reputação do governo anterior, por esse aspecto. Houve o furo no teto e a culpada foi a pandemia. Não estou dizendo que não era para gastar, porque, em situação de pandemia, a própria regra do teto previa essa válvula de escape. O problema é que, depois, isso foi se repetindo, e, com a PEC Kamikaze (que aumentou as despesas do governo com medidas populistas e flexibilizou o teto de gastos). Não havia mais justificativa para um auxílio emergencial maior e os furos no teto de gastos.
Mas, mesmo com esse problema fiscal grave agora, o PIB deste ano está sendo revisado para cima. O desemprego continua baixo, em 6,2%, perto do pleno emprego. Isso não é um tanto contraditório?
Eu não vejo nada contraditório, porque, se tivesse tudo bem mesmo, a Selic não estaria em 15% ao ano e nem a inflação estaria acima da meta. O governo está fazendo uma escolha, essa escolha por mais gastos. E sabemos que a arrecadação não vai conseguir compensar na velocidade que eles querem. Até porque os gastos crescem automaticamente. Eles aumentaram com a revinculação da receita dos gastos com saúde e com educação, e com a regra do salário mínimo. Mas não tem jeito, essa conta não fecha. Fizeram essa escolha que joga o país numa outra dinâmica, num outro equilíbrio macroeconômico.
Que dinâmica é essa?
É de inflação mais alta e juros mais altos, e de um crescimento que poderia ser melhor. Isso aí é livro texto. Claro que tem outros agravantes, sempre tem. Estou aqui resumindo uma história para poder dizer que, nesse aspecto, do ponto de vista qualitativo, não tem surpresa. E, por trás das surpresas do PIB existe, além dos estímulos fiscais, parafiscais e tal, o efeito cumulativo de reformas anteriores. Estou no grupo otimista que vê esse efeito cumulativo de reformas que colocam o país num ritmo de crescimento um pouco melhor do que nos anos anteriores. Afinal, desde 2016, as reformas estão acontecendo, mas perdemos a oportunidade de ter um ambiente macroeconômico muito melhor. Mas não se compara ao que foi, por exemplo, no governo Dilma.
Houve ganhos das últimas reformas?
Houve, sim, ganhos potenciais. A melhora do mercado de trabalho, em alguma medida, é fruto disso. Agora, tem, sim, uma parte que é, vamos dizer assim, artificial, fruto de estímulos fiscais, que podem até ter diminuído, mas ainda há muita transferência de renda e todos esses descontroles fiscais, que acabam tendo efeitos colaterais. E os efeitos colaterais demoram para aparecer. Por isso, se continuarmos sem uma agenda muito clara, os efeitos negativos serão crescentes na economia. Não sabemos, por exemplo, quando é que vamos voltar a ter uma taxa Selic de 6,5% ao ano, que era a do fim do governo Temer. Com esse fiscal, nenhum governo consegue.
Quer dizer que, na sua avaliação, o discurso do ministro Haddad é ruim?
Sim. O discurso do ministro está ruim e atrapalha, porque é importante para os agentes econômicos enxergarem um plano de voo consistente, o reconhecimento dos problemas atuais. O discurso dele é assim: 'nós estamos fazendo tudo certinho, entregamos a meta no ano passado'... Mas a meta fiscal de 2023 foi ignorada. O governo aumentou os gastos com a PEC da Transição, buscou trabalhar para aumentar a arrecadação com zero chance de redução de despesa. E, além disso, antecipou o que pode de pagamento de precatórios. Existe uma agenda, digamos assim, para reduzir a desigualdade, aumentar a política do salário mínimo, onde a despesa cresce sem aumentar a receita. Isso piorou institucionalmente e houve retrocesso. Neste ano, já está um sufoco fechar as contas. Houve contingenciamento no Orçamento (de R$ 31 bilhões) e a receita com o pré-sal, de R$ 15 bilhões, deve ajudar no cumprimento da meta fiscal. E, no fim do ano passado, o pacote fiscal do ministro teve alguns méritos. Ele assumiu que, sem conter despesa, a regra do arcabouço não parava em pé. Demorou, mas admitiu. Antes tarde que nunca. Havia ali coisas positivas, mas, quando olhávamos para as estimativas de receita, ela era absurda e não se concretizou.
O arcabouço fiscal tem mais problemas do que o teto de gastos?
O teto de gastos, na retórica, ninguém enganou ninguém. Sempre foi claro que ele tinha a vantagem de ter tirado a vinculação dos gastos de saúde e educação da receita, mas, fora isso, se não houvesse ajuste fiscal, ele não parava em pé. Era preciso fazer a reforma da Previdência. Essa era a proposta. O governo Temer não conseguiu fazer a reforma, mas deixou o tema plantado para o governo seguinte. Agora, isso que está acontecendo com a questão do IOF é um péssimo sinalizador de que a política não conseguiu dar conta e o Supremo está certo de falar: 'vocês se resolvam aí'.
O que a senhora achou da decisão do ministro Alexandre de Moraes, do Supremo, marcando uma data para a conciliação entre Executivo e Legislativo sobre a questão do IOF?
Eu gostei. O ministro não decidiu a favor de nenhum dos lados. Os dois estão errados. Agora, essa dificuldade da política de lidar com esse tema do Orçamento do ano que vem não é um bom sinal e, principalmente, no caso da continuação de um governo do PT.
Aliás, é bom lembrar que no Projeto de Lei de Diretrizes Orçamentárias (PLDO) de 2026, o próprio governo revela um buraco de R$ 118 bilhões de receitas descobertas para o próximo ano...
Pois é. Ainda tem esse buraco de R$ 118 bilhões. E, no anúncio do PLDO, apenas técnicos falaram. Não tinha nenhum ministro da área econômica, porque sabiam que o anúncio era vergonhoso. Será preciso uma arrumação, mas é óbvio que o calendário eleitoral dificulta isso. O ideal seria blindar minimamente a agenda fiscal e o ambiente macroeconômico, como faz um vizinho da América Latina, o Peru. Lá, cai presidente, ele vai preso, sei lá o quê, e eles estão cuidando das contas públicas. É preciso ter essa maturidade no Brasil.
Os Estados Unidos também estão com problemas fiscais, como mostra a aprovação da proposta orçamentária de Donald Trump, a “Big Bill Beautiful". Mas isso tem ajudado o Brasil indiretamente por conta do enfraquecimento do dólar…
O efeito é ambíguo porque o Fed (Federal Reserve, banco central dos Estados Unidos), não consegue cortar juros. Essa desvalorização do dólar é o conjunto da obra. Não é o fiscal isoladamente. De certa forma, o câmbio fraco não está fraco, está menos forte. E o PIB dos EUA cresce, mas abaixo do potencial. E, aqui no Brasil, como já comentei, tem muita coisa, tem efeitos cumulativos, tem o fiscal que, no primeiro prazo, no primeiro momento estimula a demanda. O Banco Central continua sendo obrigado a manter o ajuste monetário, adiando a queda dos juros, podendo até prolongar ainda mais. Ele mesmo já sinalizou isso. Ele pode nem mesmo interromper (o ciclo de ajuste), dependendo do desempenho da inflação.
Qual a sua avaliação da decisão do último Comitê de Política Monetária (Copom), quando a taxa de juros foi elevada em mais 0,25 ponto percentual?
Pode ser que eu me engane. Eu achava que, agora, o Banco Central iria interromper o ciclo de aperto monetário, mas ele subiu (os juros) por uma questão reputacional. É interessante notar a medida do hiato do produto (quando a economia opera acima do potencial) que o BC utiliza, esse excesso de demanda em relação ao PIB. Não é algo muito forte, comparativamente aos outros momentos de crise. Em boa medida, a decisão do BC ocorreu mais por questão reputacional e por causa do fiscal. O fiscal atrapalha um comportamento mais benigno do câmbio, e limita, de fato, o quanto o dólar pode cair. E era para a economia estar melhor, se não fosse a questão fiscal. Pensando num horizonte de curto prazo, é a questão fiscal que tem atrapalhado a política monetária. O Banco Central fica enxugando gelo, porque a potência da política monetária está menor. E essa percepção de que o Gabriel Galipolo (presidente do BC), por ter sido indicado pelo Lula, que tem criticado a meta de inflação, de 3%, exige um compromisso maior com o centro da meta. Isso também gera uma questão reputacional muito forte para o BC. Por isso, vemos a Selic indo para 15% ao ano e as projeções de inflação de longo prazo continuam sem alívio.
Mas o Banco Central tem batido nessa tecla do risco fiscal timidamente…
Mas nem é o papel do BC, na minha opinião. Acho que não cabe ao BC fazer julgamentos da política fiscal e nem cabe à Fazenda fazer julgamentos da política monetária. O BC não deve expor o seu pensamento sobre a política fiscal. Ele analisa o impacto da política fiscal nos preços de ativos e o sentimento dos agentes econômicos em relação a isso. Não é boa ideia ficar apontando com muito detalhe. Não cabe. Até porque quando a autoridade monetária aponta, ela guia o mercado.
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