Entrevista | Ana Carolina Rosignoli | fundadora do Desapeguei Bonito

"A moda precisa estar no centro da agenda climática", alerta especialista

Criadora do primeiro brechó Lixo Zero do Brasil, Ana Carolina Rosignoli vê o mercado de segunda mão como aliado da economia circular e do combate às mudanças climáticas, mas critica a ausência da indústria nas discussões da COP30 e cobra engajamento

Com mais de uma década de atuação no país e no exterior, Ana Carolina Rosignoli se tornou referência ao integrar negócios de impacto, sustentabilidade e inovação social -  (crédito: Arquivo Pessoal )
Com mais de uma década de atuação no país e no exterior, Ana Carolina Rosignoli se tornou referência ao integrar negócios de impacto, sustentabilidade e inovação social - (crédito: Arquivo Pessoal )

A moda está entre as indústrias mais poluentes do mundo, mas também figura entre os setores com maior potencial de transformação quando vista sob a ótica da economia circular. Nesse contexto, ganha destaque a trajetória de Ana Carolina Rosignoli, fundadora do Desapeguei Bonito, primeiro brechó certificado como Lixo Zero no Brasil, com sede em Brasília. Com mais de uma década de atuação no país e no exterior, ela se tornou referência ao integrar negócios de impacto, sustentabilidade e inovação social.

Em entrevista ao Correio, Rosignoli explica por que acredita que a indústria da moda precisa ocupar lugar central na agenda do clima. Para ela, roupas de segunda mão são muito mais do que alternativas de consumo: representam ferramentas para reduzir resíduos, gerar renda e contribuir de forma concreta no enfrentamento das mudanças climáticas.

Apesar do potencial, a empreendedora alerta que o tema segue invisível nos grandes fóruns internacionais, como a 30ª Conferência das Nações Unidas sobre Mudança do Clima (COP30), que será realizada este ano em Belém. "Em fóruns internacionais, como a COP, a moda quase não aparece. Até hoje, só existe uma carta relevante, publicada em 2018 pela ONU, mas com pouco avanço desde então", afirma.

Ana Carolina também reforça que a responsabilidade não deve recair apenas sobre o consumidor. "Empresas e setor público precisam agir. O setor público, em especial, tem papel crucial: regular, fiscalizar e fomentar práticas mais sustentáveis", defende.

Presença confirmada na Semana de Inovação 2025, que acontecerá de 30 de setembro a 2 de outubro na Escola Nacional de Administração Pública (Enap), ela ministrará a palestra "Com que roupa eu vou? Um panorama dos impactos da indústria têxtil nas mudanças climáticas". Confira, a seguir, os principais trechos da entrevista.

O que te motivou a criar o Desapeguei Bonito? Como surgiu essa ideia de buscar a certificação de Lixo Zero?

Eu sempre falo que o Desapeguei Bonito é um negócio feminino, materno e de muitas conexões. Ele nasceu de um momento muito pessoal, minha gravidez da primeira filha. Eu tinha 22 anos, estava em casa, com muitas roupas paradas no armário, e precisava gerar uma renda. Foi aí que comecei a vender peças de segunda mão. Com o tempo, percebi que não era apenas sobre vender roupas: havia uma conexão direta com sustentabilidade e economia circular. Passei a estudar os impactos da indústria da moda no meio ambiente e nas mudanças climáticas e me engajei nessa pauta. Em 2021, tive uma experiência transformadora no Egito, trabalhando em uma startup que vendia roupas de segunda mão para apoiar projetos sociais. Voltei muito inspirada, entendendo o quanto esse mercado impactava pessoas e o quanto eu podia evoluir a minha empresa. Uma cliente nossa, bióloga e auditora da certificação Lixo Zero, me disse: 'Vocês precisam buscar esse selo, porque o trabalho de vocês tem tudo a ver com sustentabilidade e gestão de resíduos.' Isso me fez repensar tudo, se falamos em sustentabilidade, precisamos também olhar para os resíduos que geramos. Foi um processo intenso, que durou seis meses. Mudamos práticas internas, passamos a medir o lixo produzido, a planejar para onde os resíduos iam e como eram tratados. Até que conquistamos a certificação Lixo Zero do Zero Waste International Alliance (ZWIA), um marco importante para nós.

Você fala muito em conectar moda e justiça climática. Como equilibrar essas duas coisas?

Primeiro, precisamos entender a conexão. Quando falamos da indústria da moda, estamos falando de produção feita, em grande parte, por mulheres. Muitas vezes, em fábricas precárias, recebendo salários baixos, acompanhadas de filhos nesses ambientes. Essa é uma questão de justiça social. Quando juntamos justiça social e climática, percebemos que os impactos da moda não se limitam ao lixo: afetam vidas, principalmente de mulheres em condições vulneráveis. Equilibrar isso é um desafio coletivo. Não é só o consumidor que deve assumir a responsabilidade. Empresas e setor público também precisam agir. O setor público, inclusive, tem papel crucial: regular, fiscalizar e fomentar práticas mais sustentáveis.

Por que a indústria da moda ainda é tão invisível nas negociações climáticas internacionais?

Essa é uma questão que me intriga diariamente. Acredito que a moda, por estar ligada à estética e à expressão pessoal, acaba sendo vista como algo fútil. Isso gera pouca visibilidade e, consequentemente, pouca cobrança. Mas o cenário é grave; a moda é uma das indústrias mais poluentes do planeta. É responsável por 8% das emissões de gases de efeito estufa e por 9% dos microplásticos que chegam aos oceanos. Ainda assim, quase não se fala dela nos grandes fóruns climáticos. Parte desse silêncio é conveniente para a própria indústria, que evita expor seus impactos e, assim, foge de cobranças.

Como você vê a mudança dos últimos anos com o crescimento dos brechós?

Existe uma tendência clara de valorização do mercado de segunda mão. Há estudos que apontam que, até 2030, ele poderá se igualar ao de roupas novas em intenção de consumo. A pandemia acelerou essa virada. De um lado, trouxe mais consciência sobre consumo, de outro, reduziu o poder de compra das pessoas. Quem queria comprar buscava algo mais barato, quem precisava de dinheiro começou a vender suas roupas. Esse movimento trouxe um hype dos brechós, o que considero positivo. Roupas de segunda mão sempre existiram em nossa cultura. Nossas avós passavam roupas para filhas, irmãs, vizinhas. Nas periferias, essa prática nunca deixou de existir. Então, na verdade, estamos resgatando algo que sempre foi socialmente relevante.

Falando de inovação, como o cânhamo pode substituir fibras convencionais em larga escala?

O cânhamo tem muito potencial, é resistente, durável e de qualidade. Mas ainda enfrenta barreiras regulatórias e culturais. Muitos consumidores não conhecem ou confundem o que é cânhamo. Acredito que a inovação vai além da matéria-prima. Ela envolve pensar produtos que sejam feitos para durar, que não precisem ser descartados rapidamente. Também passa por mudar o modelo linear de consumo — 'extrair, produzir, comprar, descartar' — para um modelo circular, em que o ciclo de vida das peças seja mais longo.

Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular

Quais políticas públicas poderiam transformar a moda em uma aliada da mitigação climática?

A cadeia da moda é extensa, e cada etapa demanda políticas específicas. No plantio, com incentivos para algodão orgânico e outras fibras sustentáveis. Hoje, é mais caro e trabalhoso, o que desestimula produtores. Na produção, com políticas que fomentem logística reversa e aproveitamento de resíduos têxteis. Na venda, a partir da regulamentação sobre embalagens de e-commerce e obrigatoriedade de recolher roupas usadas para evitar o descarte inadequado. Infelizmente, esse debate ainda é muito restrito ao próprio setor da moda. Em fóruns internacionais, como a COP, a moda quase não aparece. Até hoje, só existe uma carta relevante, publicada em 2018 pela ONU, mas com pouco avanço desde então.

E o que você espera ver sobre moda e clima na pauta da COP?

O que eu mais espero é transparência. As marcas precisam divulgar seus impactos e assumir compromissos reais de redução de emissões. Também é fundamental que haja cobrança do setor público. As empresas só respondem a leis quando são obrigadas. Se não houver regras claras, elas não mudam. O consumidor pode ter consciência, mas não deve carregar a culpa sozinho. A responsabilidade maior está nas marcas e nos governos.

Apesar disso, qual seria o primeiro passo para o consumidor em direção a um consumo mais responsável?

O primeiro passo é refletir: 'Eu realmente preciso dessa peça?' Parece clichê, mas é essencial. Hoje, o fast fashion lança coleções novas toda semana. As marcas não vão se questionar por você, elas só querem vender. Então, o consumidor precisa assumir esse papel crítico. Se for mesmo necessário comprar, que tal considerar o mercado de segunda mão? Essa é uma alternativa sustentável e acessível, que prolonga o ciclo de vida das peças e reduz impactos ambientais.

Na sua atuação em diferentes frentes, poderia falar um pouco sobre o Projeto Modera e também sobre a Reframe, como cada iniciativa se conecta ao propósito de levar a moda circular para consumidores, comunidades e empresas?

O Modera nasceu da vontade de conectar moda circular, geração de renda e enfrentamento à crise climática. Ele atua em capacitação, impacto ambiental, projetos culturais e na conexão de roupas com mulheres em situação de vulnerabilidade, que podem gerar renda extra vendendo peças que já existem. A Reframe é uma consultoria que surgiu de nossas vivências. Diferente do Desapeguei Bonito, que fala com consumidores, e do Modera, que dialoga também com governos, a Reframe fala com empresas. Muitas delas não sabem como lidar com os resíduos que geram. Nosso trabalho é mapear suas operações, propor melhorias e ajudar na gestão ambiental. É organizar a casa para que a sustentabilidade seja parte real do negócio.

Serviço

Semana de Inovação 2025

  • Onde: Escola Nacional de Administração Pública - Enap (SPO Área Especial 2-A, Asa Sul), Brasília-DF
  • Data: 30 de setembro a 2 de outubro
  • Formato: Presencial e On-line
  • Investimento: Gratuito
  • Mais informações e inscrições: semanadeinovacao.enap.gov.br

  • Google Discover Icon
postado em 21/09/2025 04:00
x