A organização sem fins lucrativos Educação e Cidadania de Afrodescendentes e Carentes (Educafro) afirma, perante a Procuradoria da República na Bahia, que a universidade federal do estado (UFBA) prejudicou durante quase cinco anos a população afro-brasileira em processos seletivos para professores. De acordo com a entidade, haveria “fraude na aplicação das cotas raciais” entre 2014 e 2018, mas, segundo posição da instituição, diretrizes da legislação que pautava a reserva de vagas teriam sido incorporadas desde a promulgação.
Em andamento como processo extrajudicial desde janeiro deste ano, a ação da Educafro tem por objetivo fazer com que as vagas reservadas para ações afirmativas, garantidas por lei, “parem de ser suprimidas” na UFBA — que afirma que “a implementação dessa política tem sido conduzida em conformidade com a legislação vigente e com as orientações dos Órgãos Superiores de Fiscalização”.
Em ofício emitido em10 de abril, a organização apresenta nota técnica do Observatório das Políticas Afirmativas Raciais (Opará), feita por pesquisadores da Universidade Federal do Vale do São Francisco (Univasf), que “atesta inconsistências dos argumentos trazidos pela Universidade Federal da Bahia” e evidencia suposta fraude.
A nota traz "evidências seguras da manipulação dos editais de forma a afetar negativamente" a então válida Lei nº 12.990/2014 — que reservava a negros 20% das vagas oferecidas nos concursos públicos e foi revogada, em junho, pela Lei nº 15.142, que garante o percentual de 30% dos mesmos lugares às pessoas pretas e pardas, indígenas e quilombolas.
Segundo o Opará, a UFBA induziria “destinatários da política de cotas raciais ao erro”, ao “garantir equivalência entre cargos e áreas do conhecimento”. As leis — inclusive a nº 12.772, de 2012, que dispõe sobre a estruturação do Plano de Carreiras e Cargos de Magistério Federal — garantem a reserva de quatro cargos públicos efetivos de docência, dos quais somente dois estariam sendo contemplados pelas ações afirmativas da UFBA.
O observatório afirma que essa confusão impediria “a reserva do número mínimo de vagas à aplicação da lei (3 vagas), o que, por si só, é uma ilegalidade”. Além disso, para a organização, “ao fracionar o cargo” previsto em lei por área de conhecimento — o que já havia sido vedado em 2015 pela Secretaria de Promoção de Políticas de Igualdade Racial da Presidência da República —, “a UFBA concorreu para a ineficácia da norma”.
A universidade admite, em resposta divulgada por meio da nota técnica do Opará, que, entre 2014 e 2018, “adotou uma interpretação mais restritiva da norma, aplicando a reserva de vagas apenas em concursos, ou áreas de conhecimento, que contassem com pelo menos três vagas no edital”.
Assim, como não é comum que seja disponibilizado esse número de cargos para concursos de alta especialização, “o número de vagas reservadas para candidatos negros ficou significativamente abaixo dos 20% previstos na legislação, quando comparado ao total de vagas ofertadas nos editais”, segundo a própria UFBA. Ou seja, a instituição se apoiava no fato de cada especialidade, de forma individual, ter, na maioria das vezes, apenas uma vaga em cada concurso para que os certames não se aplicassem à reserva.
A nota do governo de 2015 deixava claro, porém, que o percentual de reserva “deve ser aplicado sobre o percentual total de vagas ofertadas, as quais não devem ser consideradas de forma individual, pois essa fragmentação não se justifica legalmente”.
O Opará reforça que “as especialidades não são impeditivas ou restritivas à aplicação da reserva de vaga, visto a plena eficácia alcançada em editais de outras instituições”; e que é “falsa e ilícita a equivalência de áreas a cargos efetivos”. Assim, denuncia, “durante quase 5 anos a UFBA fraudou a lei de cotas raciais na contratação de docentes, sem ser incomodada por nenhum órgão de controle”.
Outro ponto levantado pela nota técnica do observatório é que, em tabela divulgada pela Universidade Federal da Bahia que mostra distribuição de cargos, o único indicador para vagas a pessoas negras é a “autodeclaração”. Para a entidade, isso não seria “suficiente para dizer sobre a reserva de vagas”, uma vez que a Lei nº 12.990/2014, em vigor à época, indicava que pessoas negras aprovadas pela ampla concorrência não poderiam ser consideradas cotistas.
Mesmo que elas tivessem sido aprovadas por meio de reserva, porém, as vagas para negros até 2018 foram equivalentes a 2,7% do total de vagas — “percentual, para uma aplicação formal, muito aquém do previsto na legislação”.
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A partir de 2018, quando a instituição alterou a forma de aplicação da reserva de vaga, foram reservadas formalmente para negros 86 de 429 vagas totais imediatas — o equivalente a 20,04%. Apesar disso, o Opará indica que a eficácia ao preenchimento das vagas imediatas reservadas pela lei de cotas, sem contar o cadastro reserva nem as aprovações de pessoas negras por ampla concorrência, foi de 38,8% — das 86 vagas reservadas, portanto, apenas 33 teriam sido de fato preenchidas por meio das cotas e não de outras vagas.
“Primeiro, a instituição passa quase cinco anos sem aplicar a reserva de vagas”, afirma a nota técnica. “Quando aplica, alcança uma eficácia muito pequena frente ao desafio imposto pela própria lei.”
Para o Opará, “mecanismos de burla para impedir a plena eficácia” de normas que garantem cotas raciais explicam o fato de que “a cada 1.000 pessoas negras destinatárias da reserva de vagas às pessoas negras para o cargo de magistério Superior, apenas cinco delas tomaram posse”.
O observatório ainda elenca outros elementos que produzem “diferenças materiais na competitividade dos certames”, como objetos de pontuação de currículo usados como eliminatórios para concursos de magistério e a presença de processos seletivos simplificados que não levam em conta a reserva de vagas.
- Leia também: Visão do Correio: Fraude nas cotas universitárias
“Para garantir a plena eficácia da política de cotas raciais, é necessário garantir que todos os elementos formais estejam preservados às regras editalícias”, diz a nota técnica. “Se os elementos subjetivos do processo seletivo criam impedimentos ou dificuldades adicionais às pessoas negras por conta do racismo institucional e estrutural.”
Por fim, o Opará aponta para a necessidade de reparação de danos à comunidade negra devido à não implementação da reserva pela UFBA desde 2014, conforme reconheceu a própria instituição. Outras universidades que passaram pelo mesmo processo, por exemplo, se adequaram às normas a partir da reparação de “100% das vagas não implementas pelo déficit formal (inexistência de reserva de vagas nos editais nos termos da lei)”.
A nota técnica consta como elemento justificador em processo da Educafro que corre na Procuradoria da República na Bahia. O Correio tentou contato com a UFBA a fim de obter manifestação a respeito, mas, até a última atualização desta matéria, não obteve retorno.
Confira íntegra da nota técnica do Opará:
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