VIOLÊNCIA

Casos de bullying e cyberbullying revelam marcas profundas nas vítimas

Episódios de violência envolvendo bullying e cyberbullying crescem nas escolas. Vítimas relatam traumas. Especialistas alertam para os sinais e cobram atuação conjunta entre família e Estado

Mariana Saraiva
Carlos Silva
postado em 03/07/2025 06:00
Estudo do IPEDF mostrou que mais da metade dos estudantes do ensino médio da rede pública do DF relatam ter sido vítimas de bullying -  (crédito: Maurenilson Freire)
Estudo do IPEDF mostrou que mais da metade dos estudantes do ensino médio da rede pública do DF relatam ter sido vítimas de bullying - (crédito: Maurenilson Freire)

O bullying nas escolas tem assumido novas faces e invadido espaços antes impensáveis. Se antes as provocações se limitavam ao recreio ou aos corredores, hoje elas ultrapassam os muros das instituições e alcançam as telas dos celulares, muitas vezes sem pausa, vigilância ou limites. Cancelamentos, desafios cruéis e exclusões em grupos de WhatsApp são algumas das manifestações modernas de uma prática antiga, que se reinventa com a tecnologia e se torna ainda mais difícil de combater.

Segundo estudo realizado pelo Instituto de Pesquisa e Estatística do Distrito Federal (IPEDF) em maio deste ano, mais da metade dos estudantes do ensino médio da rede pública do DF relatam ter sido vítimas de bullying no ambiente escolar. A pesquisa, intitulada Bullying no Ambiente Escolar do Distrito Federal: percepções e implicações práticas, foi aplicada em 34 escolas e ouviu mais de mil alunos, professores e gestores.

Além disso, 50,3% afirmaram ter presenciado episódios do tipo com colegas. A percepção do problema também é forte entre os profissionais da educação: 76,4% dos professores relataram ter lidado com casos de bullying em sala de aula, e 91,7% dos gestores afirmaram ter atuado em situações do tipo em suas escolas.

Os episódios de violência emocional entre estudantes não se restringem mais a apelidos maldosos ou empurrões. Atualmente, basta uma foto, um comentário fora de contexto ou um boato compartilhado para desencadear um linchamento virtual. No Distrito Federal, entre janeiro e dezembro do ano passado, a Polícia Civil (PCDF) registrou 120 denúncias relacionadas ao crime de bullying em escolas, um aumento de 243% em relação ao mesmo período de 2023, quando foram contabilizadas 35 ocorrências.

Ações de combate

A secretária de Educação do Distrito Federal, Hélvia Paranaguá, afirma que o combate ao bullying e ao cyberbullying é prioridade da rede. "Precisamos garantir que as escolas sejam ambientes seguros, tanto nas interações presenciais quanto nas digitais. Por isso, temos promovido oficinas, formações e ações educativas, orientando estudantes, professores e gestores sobre como identificar e enfrentar essas violências. Mas esse trabalho precisa ser coletivo: a família tem um papel fundamental e deve caminhar ao lado da escola, escutando, acompanhando e apoiando nossos estudantes."

Ações de prevenção

A Secretaria de Estado de Educação do DF (SEEDF) afirma que atua de forma contínua na prevenção e no enfrentamento à violência nas escolas, com ações articuladas entre unidades escolares, coordenações regionais de ensino, órgãos de proteção e os sistemas de segurança pública.

Segundo a pasta, o monitoramento das situações de violência é feito de forma integrada, com atuação conjunta de áreas técnicas específicas, como a Assessoria Especial de Cultura de Paz (AECP), responsável por coordenar ações preventivas e promover a cultura de paz no ambiente escolar. A atuação inclui oficinas, rodas de conversa e formações sobre bullying, cyberbullying, mediação de conflitos e convivência escolar.

A Gerência de Orientação Educacional (GOE) oferece suporte aos estudantes em situações de conflito, enquanto a Diretoria de Atendimento à Saúde do Estudante (Diase) acompanha questões relacionadas à saúde mental. A Diretoria de Qualidade de Vida no Trabalho (DQVT) presta apoio psicológico aos servidores, e a Gerência de Serviços Especializados de Apoio à Aprendizagem (GSEAA) oferece suporte técnico com psicólogos, pedagogos e outros profissionais.

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No DF, entre janeiro e dezembro do ano passado, a Polícia Civil registrou 120 denúncias relacionadas ao crime de bullying em escolas (foto: kleber sales)

A SEEDF também mantém interlocução com a Secretaria de Segurança Pública, por meio do Batalhão Escolar da Polícia Militar do DF, que realiza ações preventivas e atende a emergências. As iniciativas são planejadas com base em dados regionais e nos registros das próprias escolas. Em 2024, foram realizadas oficinas sobre bullying, cyberbullying, gestão de incidentes e situações com agressores ativos, alcançando milhares de profissionais da educação.

Quando estudantes praticam condutas que possam configurar atos infracionais, as escolas seguem os procedimentos previstos no Regimento Escolar da rede pública. As medidas têm caráter pedagógico e podem incluir advertência, suspensão e acompanhamento individualizado do estudante e de sua família, com articulação com a rede de proteção, como o Conselho Tutelar, Secretaria de Saúde, Delegacia da Criança e do Adolescente (DCA), entre outros órgãos do GDF.

Foi pelas redes sociais que a estudante Mariana Peretti, 24 anos, viveu um dos episódios mais dolorosos de sua vida. Em um momento delicado de saúde mental, ela usava as plataformas digitais como forma de desabafo. "Eu me expunha muito nas redes", relembra. O que deveria ser um espaço de acolhimento, acabou se tornando palco para ataques anônimos e cruéis. Mariana passou a receber ofensas constantes. "Diziam que meu corpo era ridículo, que tudo o que eu fazia era escroto. Falavam que não sabia nem passar batom e mandavam eu me matar", relata.

O impacto foi ainda mais devastador quando Mariana descobriu quem estava por trás das mensagens: amigos do ex-namorado. "Alguns deles se diziam meus amigos e falavam comigo normalmente, enquanto debochavam de mim pelas costas", conta. A verdade veio à tona quando seu ex teve acesso à conta de uma das envolvidas e decidiu alertá-la.

O assédio durou cerca de um mês, mas as marcas emocionais persistem. Mariana teve uma recaída e passou meses afastada das redes sociais. "Fiquei sem celular, sem WhatsApp, sem Instagram. Totalmente isolada", lembra.

Um professor, que preferiu não se identificar, conta que, quando trabalhava em uma escola na Ceilândia, presenciou diversos casos de bullying envolvendo as redes sociais. "Um caso que me marcou muito foi o de uma menina que teve fotos íntimas divulgadas por um colega da escola. Depois disso, começaram a zombar dela nas redes sociais e até presencialmente", ressalta. Segundo ele, o estudante responsável foi convidado a se retirar da escola. "Os pais dela tiveram que ir até a escola, e a polícia também foi acionada", detalha.

Crueldade

Stefany Serra Alves da Silva, 24, carrega até hoje as cicatrizes do bullying que sofreu na escola, aos 12. O alvo das agressões era seu cabelo. "Para mantê-lo preso, eu fazia várias trancinhas. Mas começaram a zombar de mim por isso, então parei de usar tranças. Com o tempo, o bullying piorou: meu cabelo solto, volumoso, passou a ser comparado à juba de um leão", lembra.

Discreta e silenciosa, Stefany tentava ignorar as provocações. "Eu fingia que não me afetava, mas era difícil. A perseguição era diária. As ofensas eram, em sua maioria, verbais: 'cabelo de bombril', 'bruxa', 'cabelo à prova d'água'. Às vezes, colegas chegavam a tocar no meu cabelo sem permissão. Isso durou cerca de dois anos, entre 2012 e 2013."

Na infância, Stefany gostava do próprio cabelo. Mas, aos poucos, essa relação se deteriorou. "Comecei a alisar na esperança de acabar com o bullying. Não funcionou. As ofensas apenas mudaram de tom: 'nega do cabelo duro', 'cabelo duro'. E não era mais só o cabelo. Meu corpo, minha cor, minhas características físicas viraram alvo de ataques", conta.

O impacto ultrapassou o aspecto físico. A autoestima caiu, o rendimento escolar despencou. "Não conseguia mais prestar atenção nas aulas. Achava que todos estavam falando mal de mim. Queria ser invisível. Quando saía da escola, ia quase correndo, de cabeça baixa. Com o tempo, me tornei uma adolescente que não gostava de nada em mim mesma." Hoje, Stefany ainda sente os efeitos. "Até hoje questiono o meu valor. Me tornei uma pessoa fechada. Isso afetou profundamente minhas relações sociais."

Sinais de alerta

A psicóloga Mônica Valéria, especialista em terapia cognitivo-comportamental do grupo Mantevida, alerta que os efeitos do bullying podem ser graves, tanto a curto quanto a longo prazo. "Os sintomas incluem depressão, ansiedade, baixa autoestima, isolamento social, insônia, pensamentos depreciativos e prejuízos ao bem-estar mental, físico e psicológico. Em casos prolongados, podem surgir transtornos como síndrome do pânico, estresse pós-traumático (TEPT), comportamentos de autolesão, mais comuns em meninas  e ideação suicida", explica.

Segundo Mônica, os pais devem estar atentos a mudanças bruscas de comportamento, como a perda repentina de interesse pelos estudos. "A criança ou adolescente passa a ter pensamentos distorcidos sobre si, os outros e o futuro, prejudicando a socialização e gerando comportamentos de esquiva, reclusão, medo e sensação de inadequação."

Ela reforça a importância do papel das escolas no enfrentamento ao problema. "É essencial promover campanhas educativas, palestras e capacitações para profissionais e famílias. É preciso criar canais seguros de denúncia, agir com rapidez diante de cada caso e deixar claras as consequências e medidas disciplinares. A conscientização é o primeiro passo para transformar o ambiente escolar em um espaço de acolhimento, respeito e segurança."

Tipos de bullying

  • Bullying verbal: caracterizado por apelidos pejorativos, insultos, desdenho, discriminação, depreciação e agressão verbal visando a humilhar a pessoa.
  • Bullying físico: agressões diretas à vítima, com intuito de causar dano a ela, como socos, chutes, brincadeiras que machucam, que deixam marcas físicas e emocionais.
  • Bullying psicológico: é mais sutil e bastante danoso, devido a ser por ameaças, coação, perseguição. 
  • Cyberbullying: acontece no ambiente virtual, pode ocorrer por veiculação de fotos, vídeos, áudios nas redes sociais acompanhados por insultos, violência psicológica e humilhação, dando continuidade fora dele também.

O que diz a lei

A partir de 2024, o bullying e o cyberbullying são considerados crimes no Brasil, de acordo com a Lei 14.811. A lei adiciona os artigos 146-Ae 146-B ao Código Penal, estabelecendo punições para quem pratica essas ações, especialmente contra crianças e adolescentes. Isso significa que, agora, essas ações podem ser punidas pela Justiça, com penas que variam, dependendo da gravidade e do contexto.

Como denunciar

  • As ocorrências podem ser registradas em qualquer delegacia circunscricional do DF, na Delegacia de Proteção à Criança e ao Adolescente(DPCA), ou na Delegacia Eletrônica em “Outros Crimes”.
  • As denúncias anônimas podem ser feitas pelo telefone: 197 oupelo  WhatsApp (61) 98626-1197.

Opinião

Qualquer tipo de ataque

Marcelo Tavares, diretor de ensino do Sigma, formado em história pela UFRJ

Não é novidade que o combate ao bullying ocupa espaço central nos debates entre profissionais da educação de todo o país. Ainda assim, sinto falta de uma sistematização mais clara — e pedagógica — sobre os tipos ou facetas do bullying. Tal sistematização seria valiosa para orientar desde as ações profiláticas quanto regenerativas em torno dos agressores e das vítimas. Mas, para começar, é importante estarmos alinhados sob uma definição simples: bullying é qualquer tipo de ataque, comentário, manifestação, agressão ou gesto em direção a uma pessoa com a intenção de humilhá-la, desmerecê-la, desrespeitá-la ou desacreditá-la perante um grupo. Além disso, o bullying precisa ser sistemático: se um colega chama o outro de "perna de pau" durante o calor de uma partida de futebol, isso não é bullying. Mas se esse mesmo garoto faz comentários cotidianos, repetidos, criando cenários de humilhação ou constrangimento ao colega que joga mal, isso sim é bullying. 

Agora voltemos às facetas do bullying. A primeira é o bullying explícito — quando ele se mostra abertamente. O que o torna uma ameaça não é sua clareza, mas o fato de, muitas vezes, passar despercebido como provocações "naturais" da vida escolar. O bullying não é natural. Ele é uma ação planejada, complexa, que mobiliza mais de uma pessoa em torno da humilhação pública de outra. Esse bullying é facilmente perceptível desde que professores e coordenadores estejam com o olhar atento.

A segunda faceta é o bullying implícito. Esse, mais perigoso, porque ocorre de maneira sub-reptícia, velado, mas igualmente doloroso. Quando, por exemplo, um grupo de meninas sorri e aponta para os sapatos de uma colega, sem dizer nada, trocando gestos irônicos. Nada foi dito, nada foi escrito, mas é bullying. A terceira é o bullying virtual, talvez o mais perigoso, por se esconder no anonimato das redes, se aproveitar de recursos como inteligência artificial, e não se limitar ao espaço da escola.

Cada faceta possui subgrupos: o bullying explícito pode se manifestar como agressões verbais ou intimidações na fila da cantina. O implícito pode vir em forma de piadas "inocentes" ou comentários descontextualizados que um ouvinte que não faz parte do grupo não entenderia. Mas machucam como facas. O virtual pode surgir em vídeos, imagens ou comentários compartilhados nas redes.

Essas três formas têm algo em comum: a escola não pode acreditar que está pronta para percebê-las plenamente. Na verdade, uma escola preparada é aquela que se pergunta o tempo todo: "O que mais podemos fazer para enfrentar o bullying?" Minha dica é um tripé essencial: formação contínua dos professores; legislação interna clara e aplicada de forma firme, com matriz disciplinar discutida com a comunidade; e educação preventiva, com projetos e parcerias com instituições como o Conselho Tutelar e as Delegacias da Criança e do Adolescente. Parafraseando um ditado americano: "É preciso uma cidade inteira para educar uma criança sobre os perigos e danos do bullying." Isoladamente, não venceremos essa batalha.

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