O uso da tecnologia por crianças e adolescentes voltou ao centro das discussões no Distrito Federal. Com a sanção no início do ano da Lei Federal nº 15.100/2025, que proíbe o uso de celulares e aparelhos eletrônicos por estudantes em instituições públicas e privadas, escolas da capital começam a sentir os efeitos da medida. Além disso, nos últimos dias, o debate de um tema relacionado ganhou força, a adultização de crianças e adolescentes.
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Um questionário aplicado pela Secretaria de Educação (SEEDF) a professores mostrou, no primeiro semestre, que 70% dos profissionais da rede pública avaliam a restrição a celulares em sala como eficaz, apontando avanços claros no comportamento, na atenção e no engajamento dos alunos.
"Essa medida é fundamental para que o estudante volte a perceber a sala de aula como espaço de aprendizado. O celular compete com o conteúdo e, muitas vezes, vence, porque oferece estímulos imediatos. Sem ele, conseguimos resgatar a concentração e o convívio saudável", destacou o delegado Thiago Rodrigues, da Polícia Federal, durante a palestra Prevenção aos Crimes Cibernéticos contra Crianças e Adolescentes, promovida em parceria com SEEDF para 1,2 mil estudantes das 14 regionais de ensino do DF, na quinta-feira (21/8).
O delegado, um dos voluntários do projeto Guardiões da Infância, alerta que o uso desenfreado das telas não se limita a prejudicar o rendimento escolar. "O celular tem muito mais atratividade do que uma aula de matemática, mas é a matemática que prepara o aluno para o futuro. Se deixarmos que o digital dite as prioridades, abriremos caminho para riscos sérios e crimes on-line. O que preocupa é a falsa sensação de intimidade. Muitos adolescentes acreditam que alguém com quem conversam on-line há semanas é confiável, mas, na prática, trata-se de um desconhecido. Essa ingenuidade abre caminho para abusos, chantagens", afirma.
Rodrigues destaca que o objetivo do projeto não é demonizar a tecnologia, mas dar informação. "Quando o estudante entende como os criminosos agem, ele se torna mais capaz de se proteger. Conhecimento é a principal ferramenta contra a exploração digital."
Adultização
Além da restrição tecnológica nas escolas, outro fenômeno preocupa educadores e autoridades: a adultização de crianças e adolescentes, intensificada pelas redes sociais. A questão ganhou força após a repercussão de um vídeo do youtuber Felca, que expôs conteúdos digitais com forte erotização infantil. A pressão foi tamanha que a Câmara dos Deputados aprovou, na quarta-feira (21/8), um projeto de lei que estabelece o "dever de cuidado" das plataformas digitais em relação a menores de idade, impondo responsabilidades às empresas que não protegerem esse público.
Para a SEEDF, a adultização é um problema social que atinge em cheio o ambiente escolar. "Estamos diante de um fenômeno que compromete o desenvolvimento integral das crianças. Ao se depararem precocemente com conteúdos adultos, elas reproduzem discursos e atitudes inapropriadas e se tornam mais vulneráveis a criminosos que se escondem no ambiente digital", explicou Ana Beatriz Goldstein, da Assessoria Especial de Cultura de Paz da pasta.
Ana Beatriz Goldstein, da Assessoria Especial de Cultura de Paz da SEEDF, detalha as consequências. "Crianças adultizadas podem apresentar comportamentos mais agressivos, autoritários ou sexualizados, dificultando a socialização saudável com os colegas. Muitas vezes sofrem de ansiedade, estresse e falta de foco, o que prejudica diretamente o aprendizado. Além disso, passam a se isolar ou tentam liderar de maneira inadequada, criando desigualdades nas interações escolares", afirma.
Ela acrescenta que o fenômeno ainda rouba da infância algo essencial: o brincar. "Quando o tempo de brincar é substituído por coreografias sensuais do TikTok ou pela imitação de influenciadores, as crianças perdem um espaço vital para a criatividade, a imaginação e a socialização. Isso fragiliza a autoestima, gera distorções da autoimagem e, em alguns casos, abre portas para abusos", alerta.
Na avaliação de Ana Beatriz, iniciativas como palestras sobre crimes cibernéticos e programas de integridade são cruciais. "Projetos desse tipo educam nossos estudantes sobre os perigos do ambiente digital e promovem uma cultura de responsabilidade. Quanto mais cedo a criança desenvolve senso crítico, mais preparada ela estará para navegar com segurança e preservar sua privacidade", conclui.
Para enfrentar os desafios, a SEEDF tem investido em iniciativas de conscientização. Um exemplo é o programa Na Moral, criado em parceria com o Ministério Público do DF, que trabalha valores como ética, empatia, respeito e responsabilidade. Em 2024, a iniciativa impactou mais de 30 mil estudantes e, neste ano, foi transformada em política pública, alcançando 76 escolas da rede.
O olhar das escolas
O Correio ouviu o diretor-geral do Colégio Sigma, Marcelo Tavares, sobre o tema. Para ele, é positivo que o debate tenha sido reaberto, mas não se trata de um problema novo. "Nos anos 1980 e 1990, víamos crianças em programas de TV dançando músicas de teor erótico, muitas vezes orientadas por apresentadoras em trajes mínimos. O que muda agora é que vivemos em uma sociedade mais crítica e consciente, que não aceita essas práticas. Mas a adultização se tornou mais difícil de controlar, pois está enraizada no anonimato das redes e na lógica da monetização rápida", avalia.
Segundo ele, o risco maior está na forma como os próprios menores passam a enxergar a infância. "Há uma percepção de que ser criança é algo bobo, ingênuo ou dispensável. Isso cria uma lacuna enorme na formação, já que a infância é o período em que se consolidam experiências e repertórios essenciais. O resultado são comportamentos artificiais, voltados apenas para a busca de popularidade, que aumentam os casos de bullying e preconceito contra quem não segue as tendências", afirma.
Tavares defende que a escola deve assumir um papel central nesse debate, promovendo ações pedagógicas que valorizem o universo infantil. "É preciso estimular o prazer pelo brincar, celebrar conquistas acadêmicas, promover a convivência ética e discutir responsabilidade digital, incluindo o uso da inteligência artificial. Só assim conseguimos equilibrar riscos e potencialidades das tecnologias", ressalta.
Tecnologia
Para o professor João Nunes Modesto, pesquisador da Universidade Estadual de Goiás, a questão não é simplesmente proibir ou liberar o uso das telas, mas encontrar um ponto de equilíbrio. "Respeitando as faixas etárias recomendadas por entidades como a Sociedade Brasileira de Pediatria e a Organização Mundial da Saúde, o celular pode, sim, ser um recurso pedagógico válido. O problema é o uso excessivo, que compromete a atenção, a memória e a concentração. Cada notificação que chega fragmenta o foco do estudante, reduzindo a qualidade do aprendizado", explica.
Ele defende que escolas adotem políticas claras sobre tecnologia. "É fundamental que professores, gestores e alunos saibam até onde o uso é permitido e de que forma. Esse diálogo evita frustrações e ajuda a construir um ambiente de aprendizagem mais equilibrado e saudável", completa.
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