Lançada em março, a minissérie Adolescência, da Netflix, ultrapassou 96 milhões de visualizações nos três primeiros dias e esteve entre os dez títulos mais assistidos em 93 países. Com quatro episódios gravados em plano-sequência, a produção acompanha a trajetória de Jamie Miller, um adolescente envolvido em um crime que mobiliza a escola, a família, as forças de segurança, os colegas e a opinião pública.
A trama criminal abriu espaço para reflexões sobre a vida dos jovens no século 21: o isolamento nos quartos, a relação com as telas, a fragilidade dos vínculos familiares, o impacto das redes sociais e a saúde mental. Para especialistas, o sucesso da produção evidencia dilemas reais da adolescência e ajuda a trazer à tona sinais de alerta que não podem ser ignorados por pais, escolas e pela sociedade.
O que mais me chamou a atenção da estudante Bruna Moraes, de 18 anos, foi a forma como a série abordou vulnerabilidades ocultas nesta idade. “Há uma cena em que o personagem tenta parecer forte e descontraído entre os amigos, mas quando está sozinho mostra angústia. Isso reflete como muitos adolescentes escondem a dor atrás de uma postura de autoconfiança, por medo de não serem compreendidos”, aponta.
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De acordo com a psicóloga Julia Silva, especialista em análise do comportamento, o sucesso da produção está no poder das narrativas culturais ligadas ao processo de construção da identidade. “O adolescente está formando valores e crenças, e tende a buscar modelos de referência fora do núcleo familiar. Filmes e séries funcionam como espelhos ou mapas, que ajudam a organizar pensamentos e emoções”.
A série mobilizou tanto do público quanto de especialistas. Para Júlia, quando produções abordam bullying, sexualidade ou saúde mental de forma realista, o efeito pode ser positivo. “O adolescente percebe que suas dores não são isoladas. Isso reduz a solidão e permite a chamada reestruturação cognitiva indireta: em vez de pensar ‘só eu passo por isso’, ele entende que pode conversar e buscar ajuda”, explica.
No entanto, a profissional alerta: “quando o sofrimento é retratado apenas pelo impacto dramático, sem mostrar possibilidades de enfrentamento, existe o risco de glamourizar problemas sérios. Isso pode levar à normalização de comportamentos de risco, sobretudo em jovens mais vulneráveis emocionalmente”.
Entre a escola e o quarto
Para o professor e escritor Hugo Monteiro, autor do livro Geração do Quarto, o dormitório dos adolescentes é um espaço que precisa de um olhat atencioso. “O quarto é, ao mesmo tempo, refúgio e sinal de alerta. Ele pode representar segurança, estudo e criatividade, mas também isolamento emocional quando os vínculos familiares estão fragilizados”, analisa.
Segundo o acadêmico, não se trata de demonizar o tempo que o adolescente passa sozinho, mas de compreender em que condições isso acontece. “Quando há diálogo e apoio, o quarto pode ser espaço de autonomia. Mas quando a família se ausenta, o adolescente busca validação nas redes sociais ou nos pares, enfrentando sozinho conflitos que poderiam ser mediados em casa”, acrescenta.
A médica pediatra, doutora livre-docente e escritora, Dra Ana Escobar lembra que o isolamento no quarto é um comportamento comum, mas pode virar um alerta quando acompanhado de mudanças de rotina. “É preciso atenção quando o adolescente não interage mais com a casa, descuida da aparência, passa a dormir demais, comer pouco ou se recusa a encontrar os amigos. Esses sinais indicam que algo não está bem”, orienta.
Para Escobar, a família precisa atuar como porto seguro. “Os pais devem ser presença constante. Eu sempre oriento que se jante junto, sem celular, porque é nesses momentos que se percebe se o filho está mais arredio, irritado ou nervoso. A família é um termômetro”, afirma a comunicadora em saúde.
Ana destaca que presença não é sinônimo de controle e que os pais não devem ser um GPS, apontando cada caminho, mas sim uma bússola, que mostra o norte e permite que o adolescente escolha a própria rota.
Cenário brasileiro
O debate levantado pela série também toca em questões legais. A polícia invade a casa do personagem principal, que é preso enquanto dormia. Embora haja quem defenda, no Brasil, adolescentes não podem ser presos.
De acordo com o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA), em casos de infrações, pessoas com menos de 18 anos são ‘apreendidas’ e encaminhadas a medidas socioeducativas. O objetivo é responsabilizar sem abrir mão da proteção integral, um dos pontos cruciais da nova Política Nacional Integrada para Primeira Infância, recentemente sancionada pelo Governo federal.
Segundo o último levantamento nacional de segurança pública, cerca de 60 mil adolescentes cumprem medidas socioeducativas. Dos quais 20 mil estão internados e os demais em regime semi-aberto. No Distrito Federal, eram aproximadamente 710 jovens em 2022. Diferentemente da série, onde o personagem principal é um menino branco com recursos, no Brasil, a maioria é formada por meninos negros, de famílias com renda de até três salários mínimos.
O papel da família
Na casa da família Paniago, moradora de Águas Claras, o tema telas e redes sociais é tratado com diálogo. Erick e Roberta são pais de Luiza, de 18 anos, Maurício, de 14 anos, e Henrique, de 8 anos. “Cada um tem uma relação diferente com a tecnologia. A mais velha usa para estudos, o do meio busca entretenimento e conversa com amigos nas redes, e o mais novo ainda não tem acesso a celular nem redes sociais”, explica o pai.
Roberta acrescenta que a família segue uma rotina com limites de horas por dia para TV e videogame, sempre condicionada às responsabilidades escolares e domésticas. “Isso ajuda a equilibrar lazer e deveres", diz a mãe.
A confiança, segundo eles, veio do diálogo. “Antes de monitorar, nossa prioridade sempre foi conversar sobre os riscos e a conduta correta. A confiança surgiu desse processo”, diz Erick. “O monitoramento existe, mas é sutil e feito com respeito à individualidade de cada um”, completa Roberta.
De acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS) e a Sociedade Brasileira de Pediatria (SBP), o tempo de tela deve variar conforme a idade: até os 2 anos, o uso de dispositivos não é recomendado; entre 2 e 5 anos, o ideal é até 1h por dia, sempre com supervisão; de 6 a 10 anos, no máximo 2h diárias de lazer; e, a partir dos 11, até três horas, sem contar atividades escolares.
Já a classificação indicativa, definida pelo Ministério da Justiça e Segurança Pública, estabelece a idade mínima para consumo de cada tipo de conteúdo em cinema, TV, streaming e jogos, como forma de proteger crianças e adolescentes de produções inadequadas ao seu desenvolvimento.
Cyberbullying e redes
Luiza, a filha mais velha da família Paniago, é estudante de psicologia e acompanhou a série. “O que mais me impressionou foi a transformação do protagonista e a dor da família diante da prisão. Além disso, achei muito precisa a forma como retratou o cyberbullying. No Brasil, isso é ainda mais explícito, porque o discurso de ódio acontece de forma aberta, sem filtros ou punições”, afirma a jovem, ao revelar que se inspirou na conduta da psicóloga que atende James Miller na trama.
Para a primogênita, as redes sociais podem ser aliadas ou vilãs. “Elas aproximam pessoas e podem disseminar informação, mas sem supervisão tornam-se ambientes perigosos. Podem destruir a autoestima de alguém em segundos. É essencial que os pais ajustem classificações etárias e evitem que crianças pequenas usem redes sociais ou joguem online sem supervião”, defende a irmã mais velha.
Bruna Moraes destaca a sensação de acolhimento ao perceber que a série abre espaço para conversas difíceis, que muitas vezes não acontecem em casa ou na escola “A adolescência não é só uma fase de passagem, é o momento em que construímos nossa identidade. Os adultos precisam escutar de verdade, validar sentimentos e estar presentes. O acolhimento de hoje impacta diretamente o adulto que vamos nos tornar”.
Entre a escola, o quarto e a internet, a adolescência contemporânea é atravessada por desafios inéditos e também por possibilidades de aprendizado e diálogo. Para especialistas, não se trata de demonizar as telas ou as redes sociais, mas de reconhecer o universo em que os jovens vivem e criar pontes de confiança.
A pediatra Ana Escobar reforça que as crianças e adolescentes precisam sentir que a família é um porto seguro. “Se houver uma tempestade lá fora, ele tem onde aportar. Quando se sente apoiado, busca menos riscos e encontra mais tranquilidade e felicidade”.
Hugo Monteiro complementa que esse porto seguro depende da presença intencional dos adultos. “O quarto pode ser refúgio ou prisão. Quando há diálogo, ele representa autonomia. Mas quando os vínculos se rompem, o adolescente enfrenta sozinho conflitos que poderiam ser mediados em casa”.
Tempo de tela indicado por faixa etária
- 0 a 2 anos: nada de telas.
- 2 a 5 anos até 1 hora/dia, sempre com supervisão.
- 6 a 10 anos até 2 horas/dia de lazer, evitar telas nas refeições e antes de dormir.
- 11 a 18 anos: até 3 horas/dia de lazer, além do uso escolar.
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Fontes: OMS/SBP
Educação básica
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