Júlia Giusti*
postado em 13/04/2025 06:00 / atualizado em 13/04/2025 06:00

João Mattar, presidente da Abed, propõe que o referencial de qualidade e o decreto voltem para consulta
- (crédito: ABED)
Nos últimos anos, a Educação a Distância (EaD) vem ganhando cada vez mais espaço no ensino superior brasileiro. De acordo com dados do Censo Superior 2023, o último divulgado pelo Ministério da Educação (MEC) e pelo Instituto Nacional de Estudos e Pesquisas Educacionais Anísio Teixeira (Inep), foram registrados 4,9 milhões de matrículas em cursos EaD naquele ano, próximo aos 5,06 milhões de estudantes matriculados no ensino presencial em todo o país.
Desde 2018, a quantidade de cursos EaD saltou 232%. Em 2023, o número cresceu 15% em relação a 2022, totalizando 10.554 ofertas de cursos EaD registradas. Havia, 10 anos antes, apenas 1.258 cursos a distância no país, número que se multiplicou com a expansão da modalidade, especialmente no setor privado.
Apesar do crescimento, a regulamentação da EaD tem caminhado a passos lentos. Em 6 de junho de 2024, o Ministério da Educação (MEC) publicou a Portaria nº 528, estabelecendo o prazo de 31 de dezembro daquele ano para a elaboração de novos referenciais de qualidade para os cursos a distância. O objetivo era modernizar as diretrizes da modalidade, cuja última revisão foi em 2007, e oferecer maior segurança jurídica a alunos, professores e instituições.
Contudo, desde então, o marco regulatório vem sendo sucessivamente adiado. Inicialmente previsto para março deste ano, o documento foi remarcado para 10 de abril. Porém, uma nova portaria, publicada no Diário Oficial da União da última quarta-feira (9/4), prorrogou o prazo novamente, agora, para 9 de maio.
Para o presidente da Associação Brasileira de Educação a Distância (Abed), João Mattar, é urgente que o MEC finalize e publique o novo marco, garantindo previsibilidade e diretrizes claras para o setor, além de garantir segurança jurídica para as instituições, os alunos e os professores. Em entrevista, ele comenta os principais desafios da regulamentação, os impactos da paralisação e as expectativas em torno do novo documento. Confira a íntegra da entrevista:

Na sua visão, quais os principais benefícios da educação a distância?
Normalmente, a gente destaca a flexibilidade para o aluno, tanto de espaço quanto de horário, porque ele não precisa se deslocar muitas vezes até uma instituição presencial distante da casa dele, onde o transporte, às vezes, é deficiente. E ele tem muita liberdade de tempo. A educação a distância tem muitas atividades, mas o aluno faz no tempo que quiser, com um desafio de se organizar, claro. A outra vantagem é que, normalmente, os cursos a distância têm um custo menor do que os presenciais, o que acaba sendo positivo. Há benefícios, também, no sentido de que o aluno usa muita tecnologia para estudar. Isso tudo leva à inclusão tanto dos que vivem nos grandes centros, mas que não conseguem fazer um curso presencial, quanto dos que vivem longe dos grandes centros.
Como é possível garantir que essa educação seja aplicada de forma segura, sem que o aluno saia prejudicado?
Uma parte das atividades dos cursos a distância no Brasil é feita nos polos de apoio presencial e outra parte ocorre de forma síncrona, quando professores e estudantes estão conectados ao mesmo tempo. Nesses dois casos, é possível ter mecanismos de controle sobre a aprendizagem, mas, como a educação a distância busca gerar flexibilidade, muitas atividades são assíncronas. Isso pode ser avaliado a partir de provas e trabalhos, inclusive, em grupo. Então, a EaD realmente exige um aluno mais autônomo, mais independente. Porém, nos momentos presenciais, aulas síncronas e avaliações, é possível medir quanto ele está aprendendo. Na verdade, às vezes, na sala de aula, ele preenche a lista de presença, mas está totalmente aéreo, como pode ocorrer no ensino presencial, que não dá garantia do envolvimento dele. Mesmo assim, o sistema dos ambientes virtuais de aprendizagem tem ferramentas para acompanhar o aluno acessando o conteúdo: você pedir a eles para fazerem diário de bordo, registrando o seu progresso.
Qual o nível de participação da Abed no novo marco regulatório da EaD?
Nós já estávamos esperando um novo adiamento em abril. Fomos convidados a participar das reuniões do CC-Pares (Conselho Consultivo para o Aperfeiçoamento dos Processos de Regulação e Supervisão da Educação Superior) e também fizemos visitas técnicas às sedes levando três participantes internacionais. Então, participamos ativamente. Nós defendemos, desde o início, a revisão do referencial de qualidade do ensino superior, porque o último data de 2007, ou seja, estava há quase 20 anos atrasado. E nós também solicitamos que fosse revista a legislação, que estava confusa, ainda considerando que as coisas vão mudando muito rápido com as tecnologias.
Quais os principais problemas dos materiais até então apresentados pelo MEC?
Na portaria original, havia um escalonamento de três momentos. O primeiro momento seria a produção de um referencial de qualidade novo, que seria discutido com o CC-Pares e publicado depois. Um segundo momento seria um novo decreto; e um terceiro, os instrumentos de avaliação. O problema é que essas coisas não saíram, nenhuma das três. Agora, vai sair tudo “encavalado”, quer dizer, vão sair três documentos conjuntos que não estavam previstos para sair dessa maneira. E aí, nós não sabemos o que vai ter no marco, na verdade, ninguém sabe. Não houve tempo de o setor, nem mesmo do CC- -Pares, absorver a primeira versão da revisão do marco, depois absorver a primeira versão do decreto. Há alguns pontos com que a Abed não concorda, por exemplo, exigir que algumas atividades tenham, no máximo, 50 alunos para cada professor, sendo que é possível fazer atividades mais expositivas com centenas, milhares de alunos, além de trabalhos em grupo. Há uma tendência do documento de requisitar que haja mais atividades presenciais nos cursos a distância, com o que também não concordamos, porque há muita tecnologia que permite o estudo a distância com qualidade, com acompanhamento e interação.
O que os sucessivos adiamentos do novo marco indicam? Qual seria o ideal?
Os adiamentos para o novo marco estão impactando severamente os estudantes e as instituições de ensino, que precisam conhecer as regras para se prepararem para essa transição. Ao mesmo tempo, entendemos que o adiamento indica que os órgãos do governo estão focados em consolidar o novo marco, com as contribuições de especialistas, estudiosos, pesquisadores, IES e entidades de classe e científicas. A Abed sempre defendeu, em posições escritas, nas reuniões dos CC-Pares, em visitas, posicionamentos na internet, nas redes sociais, que era possível fazer uma revisão do referencial, do marco, dos instrumentos, sem ter que congelar o setor.
Como essa morosidade e imprevisibilidade afetam a qualidade da EaD?
A portaria que propôs a revisão do marco regulatório também propôs uma série de suspensões. Ficaram suspensos credenciamentos de instituições de ensino que quisessem oferecer educação a distância e a criação de novos cursos por parte de instituições que estivessem com a autorização para EaD. Em cursos já criados, ficou suspensa a criação de novos polos e o aumento de vagas. Nós estamos vivendo essa suspensão há mais de um ano, o que é ruim para todo mundo, porque os alunos não sabem o que vai acontecer. Quem já está estudando a distância tem medo de não ter o diploma, e quem gostaria de entrar nessa modalidade vai ficar muito confuso. Então, isso traz um prejuízo muito grande para a tranquilidade dos alunos para escolherem seus cursos. Para as instituições de ensino, você imagina aquelas que tinham se programado para lançar novos cursos, aumentar o número de vagas, isso é bem ruim financeiramente para elas, para os alunos e os professores. Tinha prazo, não foi cumprido e é uma falha do MEC que está sendo muito criticada. O prazo inicial era 31 de dezembro, e já estamos no meio de abril, foram três meses e meio. Isso desestrutura todo o setor, gera uma sensação de insegurança jurídica.
A regulamentação também pode ajudar a combater desigualdades sociais?
Há uma questão importante que a gente não tem certeza se vai estar no marco ou não. Por exemplo, o governo lançou recentemente o programa Pé-de-Meia Licenciatura, e só tem direito a concorrer à bolsa quem é aluno de presencial, quer dizer, é uma discriminação com os alunos de educação a distância. Provavelmente, esse marco não vai acabar com essa discriminação, mas gostaríamos que ele deixasse claro que o aluno de educação a distância tem os mesmos direitos da educação presencial. Lembrando que a gente discorda abstratamente, porque não vimos o documento, e como tudo passou por discussão, pode ser que os slides não correspondam exatamente ao documento. Então, o que está todo mundo cobrando e esperando é que o MEC publique o documento ou, pelo menos, reabra para a discussão, para que, então, a gente possa se posicionar.
Com o novo adiamento para 9 de maio, o que está sendo feito para possibilitar o cumprimento desse prazo?
A Abed foi convidada a participar das discussões e contribuir com o novo marco e os documentos continuam a ser gerados: Manifesto EaD e ODs, protocolado na semana passada e o resultado de nova consulta pública sobre o novo marco, também realizada na semana passada, que terá resultado divulgado na próxima semana e também será protocolado junto ao MEC. É importante dizer que o MEC conduziu muito bem o processo, quer dizer, com escuta, participação de muitas associações, fez uma série de visitas para muitas instituições de ensino, recebeu instituições, associações, como a Abed, várias pessoas, organizações e grupos para conversar. Então, houve um processo muito interessante, mas agora é o momento de sair o decreto, e como eu disse, o ideal era ter saído as coisas separadas para que a gente pudesse ir comentando cada um dos três passos. Como não estava saindo o decreto e a gente não sabe exatamente quando vai sair, isso não é bom, então, fizemos uma consulta pública na semana passada sobre os principais pontos do marco, pelo menos, os que estão previstos no PowerPoint disponível para qualquer um acessar. Tivemos respostas muito interessantes, algumas que validam algumas ideias do MEC, outras que criticam. E a gente está em fase final para ter essa pesquisa publicada.
Como conclusão dessa pesquisa e como sugestão, o que a Abed vai passar a defender?
Como está tendo um atraso e a gente não sabe exatamente o motivo, a Abed vai propor um consenso, inclusive, a partir da pesquisa e do que temos disponível sobre o marco. Nossa proposta é que o referencial de qualidade e o decreto voltem para uma consulta. Pode haver consulta ao CC-Pares, pode haver consulta geral, aos grupos que já estão acompanhando, mas nós vamos propor que ele volte para uma avaliação técnica, ou seja, convidar um grupo, constituir um grupo por, vamos dizer, três meses. Então, teria de ter, no mínimo, um representante da UAB, que é a Universidade Aberta do Brasil; um representante da Univesp, que é uma instituição pública muito importante; representantes da EaD e dos grandes grupos privados que trabalham com EaD, quer dizer, quem está trabalhando com educação a distância mesmo são algumas associações muito ligadas ao tema, como a Abed. E que esse grupo, em 90 dias, fique responsável por rever o documento e fazer uma nova proposta que a gente entende que geraria mais consenso do que hoje. Além do grupo normal do CC-Pares, que seja envolvido um grupo de especialistas que entendam de educação a distância, tanto em larga quanto em pequena escala, caminhando para um consenso.
*Estagiária sob a supervisão de Marina Rodrigues