Desde a infância, a professora Débora Garofalo nutre uma certeza: a de que a educação é transformadora. E aquilo que viu se concretizar na própria vida, ela trabalhou para tornar realidade também para milhares de estudantes pelo Brasil. Hoje, ela é uma das profissionais do país reconhecida com o prêmio considerado o Nobel da Educação e finalista e vencedora de outros 20, e segue na atuação incansável pela melhoria da qualidade da educação pública.
Caçula de três irmãs, Débora nasceu na capital paulista, numa casa comandada e mantida por uma mãe solo que carregou a educação como trunfo para as filhas. "Minha mãe teve muita coragem. Ela se separou de um casamento infeliz em uma época em que as mulheres não se separavam", conta a professora, que relata ter sofrido o estigma da separação dos pais tanto na escola quanto no próprio círculo familiar. Cansou de ouvir frases como "essas meninas não têm futuro".
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O abandono do pai pesava. Mas a mãe, Lourdes Macario, sempre deixou claras as prioridades. "Minha mãe sempre soube a importância dos estudos", relata Débora. "Eu sempre vi a educação como uma possibilidade de transformar o mundo e a sociedade para algo muito melhor. E, hoje, nós temos diversos dados que comprovam isso: que a educação é a base da transformação de qualquer sociedade."
Ela cursou toda a educação básica em escola pública, no extremo Sul da capital, próximo ao Autódromo de Interlagos, uma experiência que definiu em grande parte os passos profissionais que seguiria. "Aquela escola foi muito marcante para mim. Apesar de ficar em um local isolado, os professores tinham uma atenção muito especial com a gente e com a escola", relembra-se, com afeto. Foi graças a esses professores que Débora teve a oportunidade de ir ao cinema pela primeira vez. O filme era Jurassic Park — O Parque dos Dinossauros, clássico dos anos 1990, dirigido por Steven Spielberg. "Foi um evento que me marcou muito."
Começava a ser plantada ali a semente da carreira na área de educação. "Eu gostava de ensinar meus colegas. Andava como uma lousinha pequena, verdinha e ficava ensinando as outras pessoas", conta, aos risos. Logo que se formou no ensino fundamental, prestou o que à época era chamado de vestibulinho para a última turma do curso de magistério da cidade de São Paulo, no extinto Centro Específico de Formação e Aperfeiçoamento do Magistério (Cefam).
Funcionava de maneira similar a uma residência, como hoje ocorre em alguns cursos, a exemplo da medicina. Os alunos estudavam pela manhã e faziam estágio à tarde. Débora guarda as melhores lembranças do período e defende que, hoje, a formação dos professores se inspire no modelo. "Precisamos resgatar isso. Dava uma bagagem importante. Os professores traziam essa consciência do que era realmente ser professor", afirma. "Ter esse olhar desde a minha escolarização — muito simples, mas muito potente — me fez ser a professora que eu sou hoje."
Ao terminar o ensino médio e o magistério, Débora sentiu o baque de não ser aprovada no vestibular de pedagogia para a Universidade de São Paulo (USP) por apenas dois pontos. Diante disso, começou a trabalhar em um banco e pagar um curso particular de letras em português e inglês. Ao mesmo tempo, ela trabalhava na área de recursos humanos de uma empresa do setor industrial. À noite, dava aulas para turmas da Educação de Jovens e Adultos (EJA).
A voz das periferias
Em 2008, a professora decidiu se dedicar exclusivamente à educação, "para devolver um pouco tudo o que eu tive", explica ela, e mostra intencionalidade também na escolha por dar aulas nas periferias, "por entender que esses meninos e meninas têm voz, e eu precisava mostrar a eles que a educação transforma vidas".
"A educação me transformou de diversas maneiras. Conviver com histórias diferentes da minha, ver os resultados em sala de aula, nas diferentes modalidades de ensino que eu tive a oportunidade de participar, fez com que eu tivesse um olhar de uma professora diferenciada: uma professora inquieta", complementa.
Em 2013, já formada também no ensino superior, Débora é aprovada para o cargo de professora na Prefeitura de São Paulo, onde passa a dar aulas de língua portuguesa e de inglês e segue na EJA. "É uma questão histórica do Brasil: as escolas do estados se concentram nos grandes centros, e as do município, nas periferias. A primeira escola em que lecionei ficava perto da favela de Paraisópolis, um local de difícil acesso", contextualiza.
Depois, foi alocada em uma escola perto de casa, o Emef Almirante Ary Pereira, onde desenvolveu o projeto que mudaria os rumos de sua carreira. A escola fica entre quatro comunidades da cidade de São Paulo, favelas com altos índices de tráfico de drogas. Entre os professores desmotivados pelos desafios diários e a desvalorização da carreira, Débora destoava com sua vontade de fazer a diferença.
"Cheguei com muita vontade e, logo abriu vaga para professor de tecnologia, que é parte do currículo da rede de ensino de São Paulo. Falei com a diretora que gostaria de tentar a vaga", conta Débora, relembrando que a gestora não entendeu o motivo do pedido.
"Eu disse a ele que era porque eu acreditava que a tecnologia poderia transformar a vida desses meninos, e aí fiz uma proposta ousada. As crianças ficaram maravilhadas e, do dia para a noite, perdi as minhas turmas para dar aula para uma escola inteira. Quando fiz a avaliação diagnóstica, porém, tomei um banho de água fria. As crianças falaram: o principal problema, para mim, é o lixo."
A partir daí, Débora começou a montar o quebra-cabeças entre falta de estrutura, pobreza e defasagens de aprendizagem, retirando os obstáculos um a um. "Pensei: 'Bom, eu só tenho dois caminhos: ou vou me lamentar por aquilo que eu não tenho ou vou abraçar esse lixo e transformar essa realidade'." E assim ela fez, e batizou o projeto de Robótica com Sucata.
Barreiras transpostas
Mesmo depois de encontrar parte da solução, as dificuldades se acumulavam. A expectativa dos alunos para uma aula de robótica não era sair pelas ruas catando lixo. Queriam usar computadores e acessar vídeos no YouTube. Mas o pior foi ouvir deles que robótica "não era para estudante de favela, é para aluno de escola particular".
"Isso mexeu muito comigo, vi que precisava fazer um trabalho de autoestima. Fiz um trabalho de escuta ativa e criei esse projeto que ficou na escola por três anos e meio, que consistia em tirar o lixo das ruas, limpar, pesar, entregar paras as organizações governamentais e acionar os órgãos públicos", detalha.
Depois, foi a hora de criar protótipos — barco, carro, avião — e também de pensar em soluções para os problemas da comunidade. Os estudantes criaram um sensor de movimento para a cadeira de rodas de uma estudante com deficiência que só movia o rosto; um temporizador para economizar energia na escola; e montaram uma rede elétrica sustentável, já que a população local sofria com muitas quedas de energia devido ao número de ligações irregulares.
Os resultados se refletiram nos desempenhos individual e coletivo: 95% de redução do trabalho infantil e de 93% da evasão escolar. O Índice de Educação Básica (Ideb) da escola subiu de 4,2 para 5,2 nos anos finais do ensino fundamental, e mais de uma tonelada de lixo foi retirada das ruas de São Paulo.
"É muito complexo pensar que 82,9% dos nossos estudantes estão nas escolas públicas. É muito significativo pensarmos que essa educação precisa dar muito certo, e pensar também na história da nossa educação, que por muito tempo não foi acessível. À época que eu estudei, era difícil você ter acesso à educação. Hoje, nós temos, mas falta ainda alcançar a qualidade e ressignificar essa educação. Falta olhar de forma muito significativa para a evasão escolar. Que escola é essa que os jovens deixam entre os anos finais do fundamental e o ensino médio? Por que poucos ainda têm o privilégio de chegar à universidade?", reflete.
Melhor do mundo
Débora, por sua vez, foi condecorada com o Global Teacher Prize, considerado o Nobel da Educação, e reconhecida como um dos 10 melhores professores do mundo em 2019. Também recebeu uma carta de que se lembra com carinho até hoje e que dizia: "Obrigada, professora, por compreender que na favela moram pessoas".
"Eu deixei a minha sala de aula, em 2019, para levar meu trabalho para a rede estadual de São Paulo, colocar a tecnologia e a inovação no currículo", orgulha-se Débora, destacando que conseguiu devolver para os estudantes, em forma de políticas públicas, aquilo que a educação a concedeu.
O trabalho no estado impactou 5,4 mil escolas e culminou na inauguração do Centro de Inovação da Educação Básica Paulista (Ciebp), que recebe estudantes da rede pública, com materiais e professores preparados. "Nasce uma política pública de grande sucesso, que foi dando o espaço para outras políticas", celebra.
Débora também foi convidada a participar da estruturação de ginásios tecnológicos no Rio de Janeiro, espaços para valorizar a cultura maker, com programação e com robótica. Em seguida, volta para São Paulo, onde participa da criação da Escola de Formação para Profissionais da Educação, com foco na formação continuada de professores.
Atualmente, ela está licenciada do cargo. O foco agora é atender a todos os convites, do país e do mundo, e se dedicar a consultorias e formação docente, para "democratizar mais ainda o acesso à tecnologia e educação".
Futuro em construção
Paralelamente, mantém conversas com o Ministério da Educação com o objetivo de ajudar na implementação da Base Nacional Comum Curricular (BNCC) do Pensamento Computacional. As barreiras são várias: conhecimento, equipe técnica e recursos, mas Débora segue otimista. "Eu acredito muito, porque vi a vida ser ressignificada perante os meus olhos."
"O William foi meu aluno e chegou ao 8º ano sem saber ler e escrever. E ele fez um helicóptero na minha aula. Um dia ele me pediu: 'Se eu voltar aqui todo dia depois da aula, você me ensina a ler e a escrever?' Eu senti uma alegria enorme, porque, como professor, você espera esse despertar, mas também me senti extremamente frustrada por me deparar com essa situação", relata a professora, que até hoje acompanha a trajetória do estudante. "Ele aprendeu a ler, terminou o ensino médio e está cursando o segundo ano de física na USP. O William foi excluído do sistema por muito tempo", emociona-se.
Para que mais histórias como essa se repitam, Débora considera essencial preparar os professores. "Eu não fui preparada para lidar com a tecnologia", exemplifica. "Mas ela está posta. Ter uma formação para lidar com essa situação é muito potente e necessário", afirma.
Débora passou a última semana na Ucrânia, a convite do presidente Volodimir Zelensky, para participar da 5ª Cúpula de Damas e Cavaleiros, com representantes do mundo inteiro, com o objetivo de discutir a educação. "Eles acreditam que o trabalho de robótica com sucata pode ajudar a reconstruir o país", relata.
"A educação é uma semente para transformar realidades, independentemente do lugar onde a gente cresça. Ela me ajudou a transformar a realidade dos meus estudantes e continua possibilitando que eu dê voz a diferentes colegas, a diferentes estudantes, mostrando essa força que tem a educação brasileira."
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