Eu, Estudante

INCLUSÃO

Trabalho no espectro autista: respeito à diversidade

Empresas com mais de 100 funcionários precisam reservar 2% das vagas para pessoas com deficiência e devem garantir um ambiente inclusivo

A professora Maristela Nunes de Oliveira, 52 anos, descobriu que tem autismo há três anos. Muito antes disso, há quase três décadas ela trabalha com tecnologia e leciona cursos técnicos no Senac. Ela sempre percebeu que tem comportamentos atípicos e desde os 20 anos faz tratamento, mas o diagnóstico sempre veio como depressão e ansiedade. A partir de 2016, ela começou a procurar novos médicos para entender melhor o quadro de saúde. Inicialmente, os exames apontavam altas habilidades e superdotação, mas com uma investigação mais completa, foi fechado o diagnóstico de TEA de suporte 2. "O autismo em adulto é muito complicado. Porque a pessoa se acostuma a mascarar os sintomas e aprende a conviver com as pessoas, se força a muitas coisas e aí o diagnóstico é mais complicado", comentou ao Correio.

Ela relata ainda que, após o diagnóstico, começou a estudar muito sobre o assunto e conseguiu ajudar outras pessoas — especialmente os alunos —  a entender as próprias condições e buscar auxílio profissional. "Quando você passa uma vida indo de médico em médico, mudando de medicação e nada dá certo, tem uma hora que desespera. O diagnóstico foi um divisor de águas na minha vida e da minha família. O autoconhecimento é importante para qualquer um, mas para um autista muda tudo, você responde a muitos porquês", desabafou. 

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A professora afirma ainda que se identifica com a área de tecnologia em função do uso do raciocínio lógico, e aponta que recebe o apoio necessário do local onde trabalha. "Normalmente, trabalho nos dois turnos, mas, no Senac, se eu não me sinto bem por algum motivo, aviso com antecedência para que os alunos não se desloquem de casa, sou substituída ou flexibilizam a aula. O Senac tem um olhar especial para as necessidades individuais", detalhou a professora. 

Material cedido ao Correio - Luis Felipe conquistou vaga administrativa em uma hospital

Em outro ponto de Brasília, Luís Felipe Lima Sena Sales, 23 anos, conseguiu um emprego recentemente. Após ficar um ano em busca de trabalho na área de jornalismo, em que é formado, ele passou em primeiro lugar em processo seletivo para atuar na área administrativa de um hospital particular. O jovem, que faz parte do programa Inclui, do Senac-DF, recebeu o diagnóstico de TEA ainda na infância e relata que sentiu na pele os efeitos do bullying e do preconceito. "Eu não me comportava em sala de aula e vivia brigando. Fui até agredido no ensino médio, tive que ir ao hospital e dei pontos no nariz", detalhou. 

Agora, ele diz que se sente confortável com as condições e o local de trabalho. "Eu aprendo muito rápido, se me ensinar uma vez, eu já começo fazer. Aqui eu trabalho normalmente de segunda a sexta. Sou bem tratado, as pessoas me respeitam bastante, gosto muito do meu trabalhar", detalhou o jovem Luís Felipe, que também é criador de conteúdo nas redes sociais. 

Meta pela equidade 

O Brasil tem uma meta, firmada com a ONU, por meio dos Objetivos de Desenvolvimento Sustentável (ODS) para alcançar o emprego pleno e produtivo para todas as pessoas, inclusive as com deficiência, além de remuneração igual para trabalho de igual valor. 

O Ministério Público do Trabalho (MPT) atua com uma coordenadoria específica para alinhar ações de fiscalização e conscientização no sentido de garantir que o país cumpra a meta e garanta os direitos dos trabalhadores com autismo. 

Danielle Olivares Corrêa, coordenadora de Promoção da Igualdade de Oportunidade e Eliminação da Discriminação no Trabalho (Coordigualdade) explica que o MPT atua em vários eixos e um deles busca aumentar a contratação de pessoas com deficiência e trabalhadores reabilitados, além de promover inclusão e acessibilidade nos espaços de trabalho. "Combater a discriminação por meio de ações de sensibilização e conscientização, ajuizar ações judiciais exigindo o cumprimento da cota e promover ambientes de trabalho acessíveis e inclusivos pelas empresas também estão entre os objetivos" detalhou.

A coordenadora do Coordigualdade aponta que é necessária uma união de poderes e interesse social para garantir uma luta anticapacitista para melhorar a realidade para todas as pessoas. "É preciso ainda muita sensibilização para quebrar a cultura capacitista que persiste na sociedade, mas também é preciso fiscalização contundente e persistente, com a participação de todos os poderes, Legislativo, Executivo e Judiciário, para que os direitos fundamentais dessa parcela da população sejam de fato usufrídos pelos seus titulares e alcançado o ODS 8 da ONU", defende Danielle Olivares Corrêa. 

O Estatuto da Pessoa com Deficiência garante uma série de direitos às pessoas que têm autismo — assim como outras deficiências — nas relações de trabalho. Já a lei de cotas garante inclusão desses trabalhadores. Empresas com mais de 100 funcionários precisam reservar 2% das vagas para pessoas com deficiência e também devem garantir um ambiente inclusivo. É desejável, em alguns casos, jornadas de trabalho reduzidas sem corte de salário e oportunidades equitativas para promoções e treinamentos. No entanto, a legislação não obriga essas flexibilizações. 

Para Flávia Amaral, presidente da Comissão de defesa das pessoas com autismo da Ordem dos Advogados do Brasil no Distrito Federal (OAB/DF), a garantia dos direitos não é assegurada automaticamente e muitos trabalhadores ocultam a condição por medo de discriminação. Ela cobra uma legislação mais clara e vigilância forte sobre o assunto para garantir os direitos dos trabalhadores. "A gente precisaria ter uma fiscalização dentro das empresas para verificar se a lei das cotas está sendo cumprida, se as empresas estão atendendo o número de vagas para pessoas com deficiência e TEA", comenta Flávia. 

Programa Inclui Senac

Divulgação Senac/DF - Programa Inclui do Senac-DF capacita e encaminha pessoas com TEA para o mercado de trabalho

Para auxiliar na capacitação e inclusão das pessoas com TEA no mercado de trabalho, o Senac-DF criou o programa Inclui Senac, que capacita e garante oportunidade de trabalho pessoas com deficiências. "O Programa Inclusão é uma oportunidade, um círculo virtuoso para todos os participantes do programa, para as pessoas que têm uma formação com emprego garantido, para as empresas que ganham trabalhadores com produtividade a partir dos cursos de qualidade do Senac, e ainda cumprem a legislação, e para o Senac que faz o seu papel de inclusão produtiva para empregabilidade das pessoas e também inclusão na capacidade de consumo de trabalho", comenta Vitor Corrêa, diretor Regional Senac-DF. 

PALAVRA DO ESPECIALISTA

ÍCARO PEDRAÇA FREITAS

PSICÓLOGO PELA UNIVERSIDADE FEDERAL DE RONDÔNIA; MESTRE EM PSICOLOGIA DO DESENVOLVIMENTO E ESCOLAR PELA UNB

Material cedido ao Correio - Ícaro Pedraça Freitas é psicólogo e mestre em Psicologia do Desenvolvimento e Escolar pela UnB

O correto é dizer pessoa autista ou pessoa com autismo?

Pessoa com autismo ou pessoa autista. O ideal é que se respeite a forma como a própria pessoa se refere a si. Legislativamente, no Brasil, pessoas autistas são consideradas pessoas com deficiência, o que leva autilização do termo “pessoa com autismo” e o termo“pessoa autista” é comumente utilizado entre as pessoas autistas que fazem parte dos movimentos sociais da neurodiversidade. Os dois termos evidenciam a pessoa antes do diagnóstico, colocando o indivíduo em primeiro lugar e o autismo enquanto uma característica diversidade humana.