Menos de 3km separam o metro quadrado mais caro da região Norte da comunidade que se ergueu em torno de uma barca abandonada no início do século 20. A Vila da Barca, vizinha do bairro de elite Umarizal, carrega um histórico de abandono por parte do poder público e a classificação de Zona Vermelha em segurança pública, mas não é sobre isso que os moradores querem falar.
Ana Carla Figueiredo, 49, Maria Rosângela Cardoso, 59, e outros milhares de moradores querem mostrar ao mundo a mensagem de um povo que se reinventa e se mantém unido na ausência de políticas de Estado.
Em março deste ano, a comunidade ganhou espaço nos noticiários com uma história que evidencia a importância da luta por justiça climática. Ao se depararem com uma nova estrutura montada nas mediações da vila, os moradores descobriram que o local seria uma nova estação para o tratamento do esgoto que sai das Docas, parte turística da cidade.
A prefeitura garantiu que seria uma estação “elevatória”, que não causaria mau cheiro na região, além de anunciar investimentos em saneamento no local.
Ainda assim, para uma região que luta há décadas para ter direito ao tratamento de esgoto, abastecimento de água, condições básicas de moradia, abrigar o tratamento de uma região mais abastada parece uma forma de minar a existência de vida digna.
É o que pesquisadores chamam de zona de sacrifício, quando as condições ambientais — e a população — são “sacrificadas” em nome da ideia de desenvolvimento.
Embora a revolta seja parte da luta e da identidade da Vila da Barca, os moradores contam que querem ser lembrados de outra forma. No início do mês, o Correio esteve na comunidade, mais especificamente na Barra Literária, onde Ana Carla, Rosângela, o articulador comunitário Kelvyn Gomes e outras mulheres participavam de uma reunião.
Entre pesquisas de preço, preenchimento de planilhas e planejamento de cardápios, o grupo discutia como seriam os próximos dias junto à delegação do Reino Unido. Por meio do projeto Roteiro Cozinha Periférica, o grupo fechou parcerias com a Suíça e o Reino Unido para fornecimento de refeições durante a COP30.
Oportunidades
É por meio de projetos como o Roteiro Cozinha Periférica que os moradores da Vila transformaram a COP30 em oportunidade. A iniciativa ofereceu capacitação para 24 mulheres da comunidade e realizou o 1º Festival Roteiro Cozinha Periférica.
A articulação deu origem a uma parceria importante com a Embaixada da Suíça no Brasil, principal patrocinador do projeto. “Eles vieram aqui casa fazer uma degustação e ficaram encantados”, conta Kelvin. “Originalmente, a gente tinha ideia de fazer um livro que infelizmente ainda não saiu, mas eles ficaram tão empolgados que o atual embaixador se ofereceu para fazer o prefácio do livro”.
Durante a estadia suíça em Belém, as mulheres da Vila da Barca vão ficar responsáveis pelo bufê nos eventos da embaixada. Entre os pratos do cardápio, delícias locais como casquinha de caranguejo, risoto de pirarucu e a presença forte do jambu.
“A embaixada percebeu que a gente tinha uma seriedade, desempenhava um bom trabalho, e começaram a indicar a gente para outros serviços. Um desses contratantes são os britânicos”, conta. Um dos resultados dessa parceria é a distribuição de mais de 500 refeições de café da manhã para a delegação britânica durante a estadia em Belém.
Para Ana Carla, essas iniciativas fizeram com que ela enxergasse a COP30 com outro olhar, o de oportunidade. A moradora, que é cozinheira, artesã, trabalhadora da área da beleza e que busca sempre novos aprendizados, se orgulha dos novos rumos que a vida profissional tem tomado.
“Independente de qualquer coisa, a COP30, aqui para nossa Vila da Barca, trouxe esse curso de gastronomia, que veio para agregar valores nas nossas vidas, para mulheres que não têm oportunidade, que são mães solo”, conta. “E agora eu posso falar que a COP não é só uma obra com as pessoas que vêm de fora, porque teve oportunidade de qualificação de emprego, e isso é muito importante”.
Futuro
As oportunidades mostraram um novo caminho para as trabalhadoras, que esperam novos frutos desse trabalho após a COP. No entanto, o futuro ainda é visto com uma desconfiança que as décadas de negligência governamental não deixam apagar. São anos de promessa de regularização da comunidade, que convive com o risco de remanejamento. Apenas uma área da Vila da Barca foi regulamentada com a construção de conjuntos habitacionais, mas a maioria é composta por casas de madeira e palafitas.
“Teve uma época que a maré encheu e levou todo meu assoalho, ficou uma cratera debaixo da minha casa, aí eu resolvi mexer”, conta. “Ficava aquele temor de faz ou não faz, consegui fazer uma casa de alvenaria, isso tem 20 anos e nada dessas habitações”.
Maria Rosângela mora na comunidade desde que tinha um mês de vida e conviveu, durante todo esse período, com a promessa da construção dos conjuntos habitacionais. Foram 18 anos pagando aluguel até conseguir construir uma casa própria, onde moram duas famílias. “Quando tem eleição, é tanta gente que vem aqui que ninguém sabe nem daonde”, conta. “Esperando esse projeto [dos conjuntos habitacionais] até hoje, morei muito pela casa dos outros, ajeitei as casas dos outros”.
Apesar das dificuldades, para ela, não há melhor lugar para morar. “Eu só tenho que agradecer a Deus por um pôr do sol desse, esse vento aqui, o vento da natureza, é muito lindo para nós todos aqui”, declara. “A nossa comunidade é muito humilde e unida também, a gente sempre ajuda quando por, aí para fora é cada um por si”.
Justiça climática
“A primeira torneira pública da comunidade é dos anos 1980, a rede de abastecimento de água é do final da mesma década. Não havia, como até hoje não há, uma rede de coleta de esgoto. E aí, do nada, o governo do estado achou que seria uma boa ideia trazer o esgoto do bairro nobre para uma comunidade periférica”, explica Kelvin. “O que eles não esperavam era que nós tivéssemos formação intelectual, formação social e nos mobilizássemos contra essa ação."
Para o historiador, o caso da Vila da Barca lembra um acontecimento histórico de uma comunidade muito distante, nos Estados Unidos, em 1980. Na época, o ativista negro Benjamin Franklin Chavis Jr. usou pela primeira vez o conceito de racismo ambiental nos protestos contra o descarte de resíduos tóxicos em uma região da Carolina do Norte onde a maioria da população era negra.
Em julho, o governo do Pará anunciou investimentos no saneamento da região, com a promessa de que o abastecimento de água aconteceria em cerca de três meses e o tratamento de esgoto até abril de 2026. A declaração aconteceu na mesma ocasião da assinatura da concessão do abastecimento e esgotamento sanitário para a Águas do Pará, empresa que passou a gerir os serviços em 1º de setembro na grande Belém.
Em nota, a companhia afirmou que a Vila da Barca é uma das regiões prioritárias desde que assumiu a gestão. “ Em parceria com a Companhia de Saneamento do Pará (Cosanpa), a Águas do Pará está investindo R$ 220 milhões, sendo que R$ 144 milhões foram aplicados até a COP 30, enquanto os demais recursos serão investidos ao longo do primeiro semestre de 2026”, diz o texto.
O abastecimento de água iniciou neste mês, mas os moradores ainda têm um pé atrás com a promessa do saneamento. Um dos motivos, afirma Kelvyn, é que eles ainda não foram informados sobre para onde iria o esgoto da Vila.
Segundo a Águas do Pará, o projeto “combina engenharia adaptável às características das moradias sobre palafitas e à dinâmica das águas, contando com forte atuação comunitária, por meio de diálogo e programas de capacitação e educação ambiental”.
Resgate cultural
“O imaginário que se criou sobre a Vila da Barca é o imaginário que se cria sobre as periferias, o lugar onde só tem bandido, o lugar onde as ausências imperam, o lugar onde a desordem é o que prevalece, isso é fruto da forma como os jornais retratavam, mas a gente que vive aqui, que enfrenta os desafios do dia a dia, que reconhece e conhece as pessoas, a gente sabe que não é assim”, explica Kelvyn.
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O Roteiro Cozinha Periférica é mais um dos projetos criados para que a Vila da Barca se mostrasse ao mundo. Ele faz parte de algo muito maior: o resgate da cultura e da memória de um povo. Dessa iniciativa, surgiram projetos como o Museu Memorial Vila da Barca, a biblioteca Barca Literária e a Revista Vozes, um periódico feito por jovens da comunidade.
“É muito legal a gente conseguir sair das páginas policiais, que era uma demanda que a gente tinha, e figurar nos cadernos de cultura, nos cadernos que discutem sociedade, políticas públicas. A nossa meta, que está sendo alcançada, é mostrar que nós somos fazedores de cultura, produtores de cultura, produtores de saber, que a gente tem história e que a gente respeita essa memória”, finaliza.
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