
Morto aos 14 anos, Abdul Jawad Al-Ghalban está envolto em uma mortalha branca, no chão do Hospital Nasser, em Khan Yunis, cidade no sul da Faixa de Gaza. A fome castigou o garoto, reduzindo-o a um conjunto de ossos e pele. Calados, os pais de Abdul observam o que restou do filho. Pouco antes, um fotógrafo da agência de notícias France-Presse registrou o momento em que um médico limpou o corpo de Abdul, no necrotério do hospital. Mais ao norte, na Cidade de Gaza, o médico Mohamed Abu Salmiya, diretor do Hospital Al-Shifa, revelou que, desde domingo passado, 21 crianças morreram de desnutrição e de fome no estabelecimento e nos hospitais Nasser (Khan Yunis) e dos Mártires de Al-Aqsa (Deir el Balah).
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O secretário-geral da ONU, António Guterres, condenou a rápida deterioração da crise humanitária. "Basta olhar para o horror que se desenrola em Gaza, com um nível de morte e destruição sem precedentes na história recente. A desnutrição está aumentando. A fome está batendo em todas as portas", advertiu, durante reunião do Conselho de Segurança.
Nos centros de distribuição de ajuda, multidões famintas correm com panelas e bacias nas mãos, em busca de um pouco de alimento. Algo a que o repórter fotográfico Abood Abusalama não tinha acesso havia 72 horas, quando falou ao Correio, na tarde desta terça-feira (22/7). "Não me lembro exatamente de quando comi pela última vez. Mas foi um único pedaço de pão, creio que no último sábado", relatou. "Não há nada para comer. A fome está consumindo meu corpo e meu coração", acrescentou.
Enquanto registrava as imagens da guerra, nesta terça-feira, ele desmaiou e precisou ser levado até o hospital. "Há tanta coisa a dizer — tanta dor, tristeza profunda, opressão avassaladora e fome crescente. A fome dentro de cada um de nós aumenta a cada dia", comentou Abusalama , por meio do WhatsApp. Assim como ele, outros jornalistas palestinos, inclusive da agência France-Presse (AFP), relatam trabalhar à beira da exaustão física e mental, em meio à fome extrema e à falta de água potável.
Abusalama confidenciou que o momento mais difícil para ele é quando precisa documentar a fome. "Meus olhos veem essas coisas pela primeira vez — coisas tão dolorosas, que fazem quebrar por dentro. Infelizmente, a morte está em todos os lugares, em cada rua, em cada esquina", desabafou. A ideia de morrer não o assusta mais. "Tornou-se um pensamento normal. Tenho testemunhado a morte tantas vezes desde o início da guerra..."
Bashar Taleb, um dos quatro fotógrafos da AFP selecionados este ano para o Prêmio Pulitzer, sobrevive em meio aos escombros de sua casa, em Jabaliya al Nazla (norte). "Tive que interromper várias vezes meu trabalho para buscar comida para minha família.Pela primeira vez, me sinto completamente abatido", disse. A Organização das Nações Unidas (ONU) denunciou, em junho passado, o que chamou de uso da fome como arma de guerra, ao igualar a prática a crime de guerra. Por sua vez, a ONG Repórteres Sem Fronteiras (RSF) declarou que mais de 200 jornalistas morreram em Gaza desde o ataque de 7 de outubro de 2023.
Morador de Deir el Balah (centro), cidade invadida pelas forças israelenses na segunda-feira, a dona de casa Asmaa Abo Eljidian, 38 anos, contou ao Correio que os mais de 2 milhões de cidadãos de Gaza precisam se submeter a deslocamentos forçados e a conviver com blecautes diários. "Agora, Israel utiliza dois novos tipos de armas: a fome e a sede. Infelizmente, a situação aqui é muito ruim. Não dá para aguentar mais. Uma criança, aqui, come uma vez por dia, no máximo. É difícil uma mãe lidar com isso."
Na semana passada, o marido de Asmaa percorreu os 20km até a cidade de Rafah para buscar comida. "Graças a Deus, tive a oportunidade de ter um pouco de alimento. Faço uma refeição por dia, para demorar a acabar o que guardei. Há relatos de mortes por fome nos hospitais de Gaza", disse. Na sexta-feira passada, ele levou um tiro na perna ao se aproximar do centro de distribuição de ajuda.
Corredor humanitário
Steve Witkoff, enviado americano da Casa Branca, viajará ao Oriente Médio para finalizar o estabelecimento de um"corredor humanitário" com o objetivo de levar ajuda a Gaza. Porta-voz do Departamento de Estado, Tammy Bruce disse que Witkoff embarcará rumo à região com "a firme esperança de que alcancemos outro cessar-fogo assim como um corredor humanitário para que a ajuda possa fluir, que ambas as partes efetivamente concordaram". Israel acusa o grupo terrorista Hamas de explorar o sofrimento dos civis, desviando ajuda humanitária para revendê-la a preços altos ou atirando contra palestinos que aguardam pelos alimentos. A ONU afirma que o Exército israelense assassinou mais de mil palestinos que tentavam conseguir comida desde o fim de maio.
DEPOIMENTO
"Todos estamos chorando"
"Eu fazia fotos de vítimas de massacres que chegavam ao Hospital Al-Shifa, por volta das 14h de hoje (terça-feira), quando comecei a sentir tontura e meu corpo tremia violentamente. Eu cai no chão, entre feridos e mortos. O médico me disse que tenho desnutrição e que meu corpo está fraco, por causa da falta de comida. Tentaram me dar um soro intravenoso para que eu pudesse prosseguir com minha rotina. Mas, até agora, quando me levanto, sinto-me tonto e, às vezes, caio involuntariamente.
Sofro de uma doença nas coronárias. O médico alertou-me que, se eu não me cuidar ou não parar de trabalhar, posso morrer a qualquer momento. No geral, essa guerra é brutal. Honestamente, todos os dias são difíceis — seja por causa dos massacres, seja por causa da fome. O pior momento é a sensação dolorosa quando você vê pessoas, especialmente crianças, chorando por comida. Isso faz-me chorar com elas. Todos em Gaza estão caindo no chão, com fome. Todos sofrem, porque não existe alimento. Eu choro, minha família chora, as crianças choram — todos em Gaza estamos chorando."
Abood Abusalama, palestino, repórter fotográfico na Faixa de Gaza
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