
A escolha de María Corina Machado para o Nobel da Paz causa desconforto e revela as ambiguidades do nosso tempo. De um lado, o reconhecimento de uma mulher que enfrenta um regime autoritário e denuncia a destruição das instituições venezuelanas. De outro, a sensação de que o comitê cedeu à política travestida de moral, premiando não a coragem em si, mas o cálculo diplomático
É justo reconhecer o mérito de quem se opõe a uma ditadura. Nesse sentido, a decisão do comitê acerta ao cobrar, ainda que de forma indireta, o restabelecimento da democracia na Venezuela. Um dos erros da esquerda latino-americana tem sido a ambiguidade diante do autoritarismo de Nicolás Maduro. A defesa da democracia não pode ser seletiva. Não é coerente condenar o autoritarismo da direita e silenciar diante das violações de um regime dito "progressista". A liberdade, como a paz, não tem lado.
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Mas coragem não é um salvo-conduto moral. O que causa incômodo é o tipo de alianças que Corina tem cultivado, esse flerte perigoso com a extrema-direita internacional, numa lógica conhecida do "inimigo do meu inimigo é meu amigo". Esse tipo de pragmatismo destrói qualquer causa legítima, porque substitui princípios por conveniências.
O comitê do Nobel, ao que tudo indica, fez uma escolha política disfarçada de neutralidade. Donald Trump passou meses tentando se vender como candidato ao prêmio — o mesmo homem que armou o governo israelense que hoje promove massacres em Gaza e depois quis posar de artífice da paz. Diante desse absurdo, o comitê não teve coragem de enfrentá-lo. Não quis premiar o facínora — mas também não quis irritá-lo.
Eis então a solução de compromisso: premiar Corina, uma aliada ideológica de conveniência, com trânsito entre a direita americana e setores que orbitam o trumpismo. Um jeito de dar o prêmio contra Trump sem parecer contra ele. Uma fuga política — covarde, mas calculada. Talvez o gesto mais emblemático do que se tornou o nosso tempo: a tentativa de conciliar o inconciliável, de agradar a todos, mesmo às custas da verdade.
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Se o comitê quisesse ser realmente corajoso, teria dado o Nobel ao Alto Comissário da ONU para os Direitos Humanos, Volker Türk, que vem denunciando com firmeza as violações em Gaza e pedindo investigações independentes sobre os ataques a civis. Essa seria uma escolha incontestável, humanitária de verdade — o reconhecimento de quem enfrenta o horror de frente, sem calcular o custo político.
O que se vê hoje é uma tragédia moral. A extrema-direita israelense faz com os palestinos o que os nazistas fizeram com o povo judeu: nega-lhes a humanidade. Trata-se de uma inversão dolorosa, que fere a memória histórica de um povo que conheceu a perseguição e a intolerância. Dizer isso não é negar a história, é honrar sua memória. A dor não nos autoriza a reproduzir a violência.
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O comitê preferiu o caminho mais confortável — uma escolha lateral, simbólica, quase protocolar. Um gesto covarde travestido de diplomacia. Quando o tempo pede coragem, o Nobel escolheu a fuga. E, ao fazê-lo, deixou escapar a chance de reafirmar que a paz exige, antes de tudo, lucidez moral — a mesma que o mundo parece ter perdido.
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