
PRISCILA SEIXAS, presidente do Instituto Burburinho e MARCELA PALOMA, coordenadora de Comunicação Institucional e de Projetos do Instituto Burburinho
A escola é, historicamente, um dos espaços mais potentes de formação na vida de crianças e jovens. Mas também é, muitas vezes, o lugar onde culturas e histórias são apagadas — reflexo de uma herança estrutural que define quais narrativas merecem ser contadas e quais devem permanecer à margem.
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Esse apagamento não é uma abstração. A pesquisa Panorama da Primeira Infância: o impacto do racismo, realizada pelo Datafolha a pedido da Fundação Maria Cecília Souto Vidigal, revelou um dado alarmante: uma em cada seis crianças de até 6 anos já foi vítima de racismo no Brasil. E, mais grave ainda, creches e pré-escolas são os espaços onde a maioria desses episódios acontece.
Os números escancaram uma contradição que o país insiste em naturalizar: a mesma instituição responsável por ensinar cidadania reproduz práticas discriminatórias que afetam o desenvolvimento emocional, social e cognitivo das crianças negras. Isso compromete a formação de toda uma geração e perpetua desigualdades como se fossem parte inevitável da vida escolar.
É por isso que, embora novembro seja marcado pelo Dia da Consciência Negra, o combate ao racismo não pode ser tratado como pauta sazonal. Não há transformação possível se a escola — espaço central da vida social — reforça o racismo nos meses silenciosos e tenta repará-lo apenas na data comemorativa. A consciência negra não cobre lacunas: ela as revela. E exige compromisso diário.
É justamente nesse ponto que a cultura se torna aliada estratégica. Inserida no campo educativo, a arte é capaz de deslocar estruturas simbólicas, recontar histórias e ressignificar pertencimentos. É o que temos testemunhado com o espetáculo A história de Aya, apresentado pelo programa Arena Viva, do Instituto Burburinho Cultural.
Ao colocar uma protagonista negra no centro da narrativa — uma menina que lidera, aprende, atravessa tempos e se reconhece como rainha — o espetáculo oferece aquilo que muitas vezes o livro didático não alcança: um espelho positivo onde antes havia ausência. A construção de referências positivas na infância não é detalhe estético; é fundamento emocional, cognitivo e político. Afeta autoestima, desempenho escolar, capacidade de imaginação e senso de pertencimento.
Quando o teatro chega acompanhado de material pedagógico estruturado — como o guia Resistência ontem, hoje e amanhã, escrito por sete pesquisadoras negras —, ele amplia sua potência. A cena emociona; o guia aprofunda. Juntos, criam continuidade crítica dentro da sala de aula e dão suporte aos educadores para aplicar a Lei nº 10.639/2003, que tornou obrigatório o ensino da história e cultura afro-brasileira.
A lei aponta o caminho. Mas é a escola — fortalecida por políticas públicas, formação docente e iniciativas culturais — que lhe dá vida. Sem práticas educativas que enfrentem o racismo desde a primeira infância, a legislação permanece como promessa não cumprida.
Ver uma figura negra protagonizando a cena não é gesto simbólico isolado: é reparação, é pedagogia, é futuro. É dizer às nossas crianças que o Brasil que elas podem imaginar não precisa ser uma repetição das desigualdades que as ferem desde cedo.
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Inspirados no provérbio africano que ensina que "é preciso uma aldeia inteira para educar uma criança", reafirmamos o compromisso de toda a sociedade — não apenas da escola — de enfrentar o racismo e fortalecer uma educação que acolha, proteja e valorize cada criança em sua integralidade.
Porque educar é também reconhecer que diferentes culturas formam o Brasil e ampliar as narrativas que chegam às crianças, trazendo à luz partes da nossa história que não foram contadas, para que todos possam se ver como parte viva deste país.

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