
Se imaginarmos um triangulo ligando o Brasil aos Estados Unidos e à China, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva precisa traçar uma bissetriz entre os dois países que possibilite achar um ponto de equilíbrio e sair do impasse em que se encontra, a partir de relações bilaterais com o presidente Donald Trump, que hoje não existem, e com o presidente Xi Jinping, cada vez mais próximas. O multilateralismo, no curto prazo, não dá conta de evitar a escalada da crise.
Na geometria, um triângulo possui dois tipos de bissetrizes: internas e externas. Para não complicar a analogia, o que nos interessa aqui é o ponto de encontro das bissetrizes internas do triangulo. Imagine uma circunferência dentro do triângulo — seu centro é equidistante de todos os lados. Por isso, é chamado de "incentro". Bissetrizes são traçadas com régua e compasso; na analogia política, é muito mais difícil achar esse ponto de equilíbrio e equidistância.
Ontem, Lula disse à agência de notícias Reuters que só pretende ligar para Trump quando sentir que há disposição real para diálogo. Até lá, não vai se humilhar para isso. Na mesma entrevista, anunciou que pretende debater o tarifaço com o Brics — grupo de países em desenvolvimento do qual o Brasil faz parte, junto com a China, a Rússia e a Índia, dentre outros. Lula e Trump nunca conversaram. Enquanto isso, a crise diplomática e comercial se consolida com a entrada em vigor do tarifaço de 50% sobre os produtos brasileiros.
A postura de Lula diante de Trump, expressa na recusa em "se humilhar" e na decisão de acionar a Organização Mundial do Comércio (OMC) e mobilizar o Brics, deve levar mais em conta a longa e complexa tradição da política externa brasileira, considerando ainda uma contradição interna que contrapõe o "iberismo" conservador e hierárquico, herdado do período colonial, ao americanismo democrático e igualitário que inspirou nossa modernização.
O ponto de sustentação da política externa brasileira deve ser a vocação universalista, multilateral e emancipatória, porém, sem perder de vista que somos uma nação — simultaneamente enraizada no Ocidente e protagonista do Hemisfério Sul, com o qual dividimos o passado colonial e a ambição do desenvolvimento.
Em um artigo recente, publicado na Revista Política Democrática (Fundação Astrojildo Pereira), o embaixador e ex-ministro da Fazenda Rubens Ricúpero ressalta que, desde o século XIX, a relação Brasil-EUA tem sido marcada por uma assimetria estrutural. Ao mesmo tempo, revela que o Brasil sempre oscilou entre o desejo de reconhecimento como nação ocidental e o impulso autonomista.
Lula, ao colocar o Brics como eixo alternativo de diálogo diante da agressão tarifária de Trump, reafirma essa ambiguidade estratégica. Ele é coerente com a política externa independente inspirada nos governos Jânio Quadros, João Goulart e Ernesto Geisel, que marcaram a busca por autonomia na ordem mundial, sem abandonar os valores do Ocidente.
Regressão de valores
O que mudou? Ricúpero ressalta que o retorno de Trump ao poder representa uma regressão nos valores iluministas que os EUA legaram ao mundo. Sua retirada do Acordo de Paris e da Organização Mundial da Saúde (OMS), seu unilateralismo econômico e seu ataque ao sistema multilateral enfraquecem os princípios que tanto o Ocidente liberal quanto o Sul cooperativo valorizam. Lula, ao se recusar a aceitar o tarifaço como fato consumado e ao buscar apoio no Brics, rechaça esse "americanismo regressivo" e reivindica um novo equilíbrio, sem o servilismo ideológico de Bolsonaro. Mas isso não pode reeditar o antiamericanismo da Guerra Fria.
A autoridade internacional do Brasil precisa da legitimidade multilateral, da institucionalidade democrática e do prestígio dos fóruns plurais, como o Brics e a OMC — mesmo enfraquecidos. Mais "pragmatismo responsável" de Geisel e do chanceler do então general presidente Azeredo da Silveira, e menos alinhamento automático de Oswaldo Aranha. Embaixador nos Estados Unidos de 1905 a 1910, Joaquim Nabuco, porém, dizia que "não se fica grande por dar pulos". Essa crise não se resolverá no gogó.
Havia um certo consenso nacional e continuidade em torno da política externa brasileira pós-redemocratização, a partir do governo de José Sarney, que restabeleceu as relações com a Cuba e a China. O ex-presidente Jair Bolsonaro rompeu essa tradição, alinhando o país aos EUA a tal ponto que chegou a bater continência para Trump, no primeiro mandato. Entretanto, por pressão dos interesses do agronegócio, teve que retroceder em relação às hostilidades com a China. Não à toa, Trump utiliza todo o poder dos EUA para anistiar Bolsonaro e livrá-lo da inelegibilidade e de condenações penais por tentativa de golpe de Estado.
Quando se olha a balbúrdia no Congresso, tomado de assalto pela bancada bolsonarista, há que se considerar que o posicionamento desses parlamentares a favor de Trump e do tarifaço não é estranho à nossa realidade: somos um país marcado por uma tradição ibérica de Estado forte e sociedade hierárquica, tensionada pela modernidade igualitária e democrática do Ocidente, da qual o modelo americano historicamente, até recentemente, foi a principal referência. A política externa de Lula precisa ser calibrada levando em conta essa equação.
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