
Um dia após a deflagração da megaoperação que desarticulou um esquema de fraudes e lavagem de dinheiro ligado à facção Primeiro Comando da Capital (PCC), a Receita Federal partiu para o cerco às fintechs. Uma nova instrução normativa foi publicada, nesta sexta-feira, pelo órgão, exigindo das plataformas digitais de serviços financeiros o mesmo nível de transparência aplicado aos bancos.
Segundo a Receita, o objetivo é combater os "crimes contra a ordem tributária, inclusive, aqueles relacionados ao crime organizado, em especial a lavagem ou ocultação de dinheiro e fraudes".
Na quinta-feira, horas depois da deflagração da operação, a Receita havia anunciado que publicaria a nova instrução, sob a justificativa de que "fintechs têm sido utilizadas para lavagem de dinheiro nas principais operações contra o crime organizado porque há um vácuo regulamentar, já que elas não têm as mesmas obrigações de transparência e de fornecimento de informações a que se submetem todas as instituições financeiras do Brasil há mais de 20 anos".
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O Fisco também ressaltou que, no ano passado, havia publicado uma instrução normativa que estendia às fintechs as obrigações de transparência e prestação de informações, com vigência prevista para janeiro de 2025, mas que "uma onda de desinformação e boatos, que atribuíram erroneamente a essa norma uma tributação sobre os pagamentos via Pix, acabou prejudicando o uso desses meios de pagamento, levando a Receita a retroceder e revogar a normativa".
À época, um dos principais opositores à norma foi o deputado federal Nikolas Ferreira (PL-MG). Um vídeo feito por ele, ligando a determinação da Receita à taxação do Pix, viralizou nas redes sociais.
Nesta sexta-feira, o presidente Luiz Inácio Lula da Silva atacou o parlamentar mineiro, sem citar o nome dele, e o acusou de beneficiar o crime organizado ao lançar o vídeo. "Tem um deputado que fez uma campanha contra as mudanças que a Receita Federal propôs e, agora, está provado que o que ele estava fazendo era defender o crime organizado, e nós não vamos dar trégua para o crime organizado", enfatizou, em entrevista à Rádio Itatiaia, de Minas Gerais.
Nikolas Ferreira, por sua vez, reagiu à declaração do presidente. Chamou a fala de "canalhice". "Irei à Justiça para que responda por essa difamação, assim como farei com todos os demais. Estou compilando tudo", frisou.
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Adulteração
A Operação Carbono Oculto, deflagrada pela Polícia Federal em parceria com a Receita Federal, o Ministério Público e secretarias estaduais, desarticulou um esquema bilionário do PCC de adulteração e comércio ilegal de combustíveis, que envolveu o mercado financeiro. O grupo importava metanol de forma fraudulenta — produto autorizado apenas para uso industrial — e desviava a carga diretamente para postos controlados pelo crime organizado.
Para lavar o dinheiro, a quadrilha usava instituições de pagamento digitais, as fintechs, em vez de bancos tradicionais, o que dificultava o rastreamento das transações. A Receita identificou, também, pelo menos 40 fundos de investimento, entre multimercado e imobiliários, com patrimônio estimado em R$ 30 bilhões, que eram controlados pela organização criminosa. A ação resultou no bloqueio de mais de R$ 4 bilhões em bens ligados ao esquema.
Ao Correio, a Associação Brasileira de Fintechs (ABFintechs) disse que apoia a instrução normativa publicada pela Receita e afirmou estar comprometida com a "transparência, a segurança e a conformidade regulatória".
"A atualização vem em um bom momento, mas já era necessária há bastante tempo (...) a ABFintechs continuará atuando de forma proativa, com iniciativas como o selo Fintech Segura, a criação de um selo específico de combate à lavagem de dinheiro e a formalização de convênios para colaboração estruturada com as autoridades", destacou a associação.
Fragilidade
O advogado Tiago Severo — especialista em regulação do sistema financeiro e sócio do escritório Panucci, Severo e Nebias — explicou que a nova instrução da Receita Federal não cria nenhum imposto sobre operações digitais. "Não há criação de novo tributo ou mudança de alíquotas. As instruções normativas tratam apenas de obrigações acessórias, ou seja, envio de informações, sempre sob sigilo fiscal e bancário", afirmou.
De acordo com Janny Castro, sócia da consultoria tributária Forvis Mazars, a fragilidade da supervisão do Banco Central é um dos fatores que têm permitido a atuação ilícita de algumas fintechs. "Torna-se quase impossível uma avaliação minuciosa das práticas aplicadas por cada entidade para atendimento às obrigações regulatórias", ressaltou.
Segundo ela, embora a autoridade monetária utilize processos automatizados de avaliação de risco e supervisão remota por meio de questionários, esses mecanismos não conseguem identificar irregularidades de forma tempestiva.
Outro ponto crítico está nas relações comerciais entre bancos e fintechs para liquidação de contas, conhecidas como "bolsões". Nesse modelo, os bancos não têm acesso aos dados dos clientes finais, o que dificulta a verificação das práticas de prevenção adotadas pelas fintechs. (Colaboraram Fernanda Strickland e Victor Correia)
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