Entrevista | Roberto Caldas | Advogado e ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos

"O Judiciário é o poder que garante estabilidade", diz Roberto Caldas

Jurista garante que julgamento de Bolsonaro está de acordo com a Constituição. E mostra que ataques à Justiça têm sido uma prática de governos de caráter antidemocrático

 01/09/2025 Bruna Gaston CB/DA Press. CB Poder, Roberto Caldas. Na bancada Carlos Alexandre de Souza e Denise Rothenburg
       -  (crédito: Bruna Gaston/CB/D.A Press)
01/09/2025 Bruna Gaston CB/DA Press. CB Poder, Roberto Caldas. Na bancada Carlos Alexandre de Souza e Denise Rothenburg - (crédito: Bruna Gaston/CB/D.A Press)

Para Roberto Caldas, advogado e e ex-presidente da Corte Interamericana de Direitos Humanos, os ataques que são feitos ao Judiciário, no Brasil e no exterior, é porque o Poder é o pilar da estabilidade democrática. Mas essa ofensiva não ocorre apenas no Brasil e lembra que o governo de Donald Trump tem agredido frequentemente a Justiça norte-americana. Em entrevista aos jornalistas Denise Rothenburg e Carlos Alexandre de Souza, na edição de ontem do CB.Poder — uma parceria do Correio com a TV Brasília —, assegura que o julgamento de Jair Bolsonaro, que começa hoje no Supremo Tribunal Federal (STF), segue todos os princípios constitucionais. E considera que o ministro Alexandre de Moraes "está sendo de um juiz comprometido em fazer justiça, em cumprir a lei".

Leia a seguir trechos da entrevista.

O ex-presidente Jair Bolsonaro será julgado dentro da nova redação dada à Lei de Segurança Nacional. Qual sua avaliação sobre isso?

A Corte Interamericana de Direitos Humanos vinha decidindo contra leis de segurança nacional nos vários países e pontuou a incompatibilidade com a democracia. Internamente, já se dizia da incompatibilidade da Lei de Segurança Nacional, de 1967, com a Constituição Federal, de 1988. O movimento de revogação da LSN se deu pela substituição por uma lei de natureza democrática, a qual incluiu no Código Penal alguns tipos penais, como, por exemplo, a tentativa de abolição violenta do Estado de Direito — que é um um dos crimes que está sendo imputado a esse grupo — e, também, o crime de golpe de Estado. Curiosamente, esta lei, que hoje (ontem) completa quatro anos, foi sancionada pelo presidente Bolsonaro e pelos então ministros Anderson Torres, Braga Netto, Augusto Heleno e Damares Alves. Damares é a única que não está sendo julgada.

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Segundo a defesa (de Bolsonaro), não teria ocorrido um golpe, pois, para ela, é preciso haver forças militares. O que houve, segundo a defesa, foram muitas conversas, que não se tornaram um golpe. À luz desses artigos da nova legislação, qual seria a interpretação correta desses tipos penais em que esses oito estão enquadrados?

Olha o tipo penal — tentativa de abolição violenta do Estado Democrático de Direito. Basta a tentativa para que se consolide o crime. Outra discussão vai ser sobre se o golpe de Estado precisaria ser executado ou apenas tentado. Uma coisa curiosa para o nosso debate é que, hoje, já não é preciso arma, já não é preciso soldado. Basta a chamada lawfare. Basta se utilizar mal o Judiciário, se processar um adversário para se conseguir os seus objetivos. Por isso, o Judiciário, hoje, é tão importante. Mas este ataque não é só no Brasil. (O presidente norte-americano Donald) Trump está atacando o Judiciário dos Estados Unidos todos os dias. Em Israel, o primeiro-ministro (Benjamin) Netanyahu tem atacado, violentamente, o Supremo Tribunal. Ele é processado por corrupção e, então, ataca o Judiciário. Vamos à Hungria, com (o presidente Viktor) Orbán, que praticamente dissolveu o Judiciário em 2016.

Na Venezuela ocorre exatamente isso...

Toda vocação autocrática leva a querer, em primeiro lugar, controlar o Judiciário. Porque o Judiciário é o poder da independência, da estabilidade. É o poder da prudência, é o que faz jurisprudência. Essa estabilidade, que interessa a todos os países que querem se desenvolver, desenvolver a democracia e combater o crime. Isso não interessa a quem pratica crimes, a quem atenta contra a democracia ou quer uma democracia, entre aspas, à sua moda.

Os Estados Unidos se proclamam a maior democracia do mundo, mas isso parece estar mudando. Tanto que atacam até mesmo o Judiciário brasileiro...

Estamos em um péssimo momento dos Estados Unidos. O Trump passará, certamente. Porém, ele tem apoio daquilo que ele buscou se cercar, que são as big techs, que se interessam com o conflito. A segunda eleição do Trump é marcada por um uso excessivo e abusivo de redes sociais e dos chamados algoritmos ilícitos, que se iniciaram com a Cambridge Analytica. Hoje, não se faz mais propaganda (eleitoral) de tevê. A propaganda eficaz é nas redes sociais, por intermédio dos algoritmos dirigidos a cada cidadão. Cada cidadão diferentemente recebe uma propaganda. E aí se vai conformando o entendimento político de cada um. É um alerta de que, hoje, as redes sociais divulgam mentiras e versões. Os assassinatos de reputação viram verdades. Essa é a propaganda (política) que se quer. Vejam esta lei que completa, hoje (ontem), quatro anos. Houve um veto importante e que tem de ser lembrado — o veto que criminaliza as notícias falsas. A quem interessa a notícia falsa? E a quem quer cumprir a lei? Me parece que não. Veja quem apoia o ataque aos judiciários. O melhor que nós teremos é um julgamento (de Bolsonaro e dos outros sete réus) independente, prudente, sem afrontas do ponto de vista político. Há um ditado antiquíssimo: "Dura lex, sed lex" — ou seja, "a lei é dura, mas é a lei". Se ela existe, é para ser cumprida. E assim, nós conseguiremos estabilidade econômica, democrática e judicial para nos desenvolvermos como um país pacífico.

Qual a avaliação do senhor sobre o comportamento do Supremo? Afinal, são muitas as críticas ao ministro Alexandre de Moraes...

Essas críticas são muito mais propagandas do que, realmente, conteúdo concreto. Se houve em algum ponto, em algum momento, alguns erros, errar é humano. Mas o conjunto da obra do relator, do ministro Alexandre de Moraes, está sendo de um juiz comprometido em fazer justiça, em cumprir a lei. Ora, ele próprio e a família estão sendo ameaçados a todo momento. Isso gera instabilidade. Esse tipo de pressão o Judiciário não pode aceitar.

Como o senhor vê a situação do Poder judiciário na América Latina?

A América Latina tem uma história antiga de embate com o Poder Judiciário. Aliás, é uma tensão frequente, mas, dentro de um marco democrático, é absolutamente aceitável as críticas ao Judiciário, ao Legislativo, ao Executivo, desde que, afinal, se harmonizem e exerçam os poderes e competências que têm que que fazer. Na Corte Interamericana de Direitos Humanos, julgamos casos históricos. Por exemplo: o do Palácio de Justiça da Colômbia, invadido com tanques de guerra, há 30 anos. Mataram magistrados do Supremo e juízes auxiliares. No Equador, já se teve dissolução completa do Supremo Tribunal Federal e de um Tribunal Superior. Tudo isso foi a Corte Interamericana que julgou e condenou os países por esse tipo de prática.

Em recente entrevista a este CB.Poder, a deputada Bia Kicis (PL-DF) disse que, em caso de condenação de Bolsonaro, há um grupo preparado para recorrer ao Tribunal Penal Internacional para tentar reverter a decisão do STF. Tem ainda a proposta de anistia que querem votar no Congresso e, agora, o governador Tarcísio de Freitas, de São Paulo, promete indultar o ex-presidente caso chegue à Presidência da República — disse, inclusive, que não confia na Justiça. Como o senhor analisa tais iniciativas?

Dizer que não confia na Justiça porque a Justiça pode condenar? A Justiça tem seus problemas. Mas há dois pontos fundamentais: anistia e Tribunal Penal Internacional. Para completar os ataques de Trump, quatro magistrados, sendo três mulheres do Tribunal Penal Internacional, estão também sob a Lei Magnitsky. Por quê? Porque o Tribunal tem ordens de prisão contra que parece que são amigos (de Trump): Netanyahu, de Israel, e (Vladimir) Putin, da Rússia. Os Estados Unidos estão fora e não aceitam tribunais internacionais. Estão fora da Corte Interamericana de Direitos Humanos também. Eles nunca se submeteram. Essa frase de que os EUA são a maior democracia do mundo, não estou de acordo. A democracia é muito relativa nos EUA.

E sobre uma possível anistia? 

Os tribunais de direitos humanos, e a própria Corte Interamericana de Direitos Humanos, têm várias decisões sobre leis de anistia, inclusive, sobre a nossa. A nossa lei de 1979, que completou 46 anos na semana passada, é uma senhora. Esta Lei de Anistia, em que se buscava anistia ampla, geral e irrestrita, era para os que foram perseguidos pelo Estado. Os tribunais de direitos humanos já disseram há muitos anos que não existe lei para anistiar agentes do Estado, que, com o poder estatal, cometeram crimes, especialmente os de lesa-humanidade — como tortura, desaparecimento forçado e escravidão. A anistia vale, sim, para aqueles que cometeram algum crime, mas que não eram agentes do Estado. Quem tem o poder do Estado, tem a obrigação reforçada de manter o exercício da lei, a punição dos crimes e a prisão. Mas não a tortura e a morte.

*Estagiário sob a supervisão de Fabio Grecchi

 


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CY
postado em 02/09/2025 04:19 / atualizado em 02/09/2025 06:33
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