
No segundo dia de julgamento do núcleo crucial da tentativa de golpe de Estado, as defesas dos réus se concentraram em desqualificar, novamente, a delação premiada do tenente-coronel Mauro Cid. Para os defensores do ex-presidente Jair Bolsonaro e os generais da reserva Augusto Heleno (ex-ministro do Gabinete de Segurança Institucional), Paulo Sérgio Nogueira (ex-ministro da Defesa) e Walter Braga Netto (ex-ministro da Casa Civil e candidato a vice na chapa a reeleição, em 2022), o acordo fechado pelo ex-ajudante de ordens da Presidência da República com a Polícia Federal (PF) tem várias inconsistências, omissões e direcionamentos indevidos.
O advogado Celso Vilardi, que representa o Bolsonaro, argumentou que não existem provas concretas que possam incriminar seu cliente. "Não tem um e-mail, não tem uma comunicação, não tem uma pessoa que atrele o presidente ao 8 de Janeiro, ao [plano] Punhal [Verde e Amarelo]. Não tem nada. A denúncia está baseada num general, que imprime uma minuta no Palácio [do Planalto], e no mesmo dia vai ao Palácio da Alvorada. Essa é a prova? Não existe absolutamente nada", enfatizou.
Vilardi lembrou episódio revelado pela revista Veja de um perfil no Instagram que o tenente-coronel teria usado para se comunicar com advogados de outros réus e, por meio do qual, fez críticas à condução das investigações. A conta em nome de GabrielaR702 foi criada a partir de uma de e-mail identificado com o nome de Mauro Cid. Ele é suspeito de ter vazado informações sobre seu acordo de delação premiada sobre a trama golpista.
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"Na verdade, ele apresentou uma versão e alterou essa versão. Para além disso, agora durante o seu interrogatório, fiz a pergunta a respeito de um perfil de Instagram falso: Gabriela R. Onde está esse perfil do Instagram? No celular dele, com a senha. Juntei isso no processo. Então, vem essa conversa... Não é ata, com todo o respeito ao professor (Cezar) Bitencourt [advogado de Mauro Cid], professor de todos nós: não, não tem ata. Não tem. O que tem é uma conversa em que ele está revelando a delação para terceiros", explicou, referindo-se a uma ata em cartório em que a defesa do tenente-coronel afirma que a conta foi uma manobra para tumultuar o processo e questionar a validade da delação.
Vilardi também citou contradições e mudanças nas declarações de Cid nos depoimentos prestados à PF. Segundo ele, tal comportamento descredibiliza a delação. "O colaborador era importante antes de ser desmoralizado. Agora que ele está desmoralizado, porque foi pego na mentira pela enésima vez. E agora com duas questões: ele rompeu a delação formalmente, porque, na verdade, rompeu o contrato; ele mentiu e colocou sua voluntariedade em xeque", ressaltou.
"Mentira"
No mesmo caminho foi a defesa do general Walter Braga Netto, que classificou a delação do ex-ajudante de ordens de "mentirosa". "O réu colaborador mente descaradamente. Vai condenar alguém por uma mentira, por sete ou oito versões diferentes?", argumentou o advogado José Luís Oliveira Lima.
O defensor disse que o acordo foi fechado com um réu que estava preso por mais de quatro meses. Além disso, citou a demora de 15 meses para Mauro Cid falar na suposta entrega de dinheiro vivo por Braga Netto para financiar o plano de assassinato do presidente Luiz Inácio Lula da Silva, do vice Geraldo Alckmin e do ministro Alexandre de Moraes, então presidente do Tribunal Superior Eleitoral (TSE).
"Nesse caso, o Ministério Público instalou um procedimento para que o réu colaborador apresentasse provas — e não apresentou. É apenas uma narrativa. Uma narrativa que a Polícia Federal fez e que o Ministério Público abraçou de todas as formas, que é uma narrativa bem colocada, bem escrita, mas absolutamente desprovida de provas", afirmou.
Outra alegação dos advogados dos réus do núcleo crucial é de que Mauro Cid teria sido coagido a colaborar, sob pena de voltar à prisão e de ter integrantes da família processados. Eles afirmam que o tenente-coronel teria mentido e omitido fatos. No primeiro dia do julgamento, porém, o procurador-geral da República (PGR), Paulo Gonet, responsável pela acusação, se manifestou pela validade do acordo de colaboração premiada. Conforme disse, os relatos foram úteis para o esclarecimento e aprofundamento de fatos relacionados à investigação, mas que já tinha sido levantados pela PF.
"Embora a Polícia Federal tenha descoberto a maior parte dos eventos descritos na denúncia de forma independente, a colaboração de Mauro Cid acrescentou-lhes profundidade", afirmou. Gonet também ressaltou que a manifestação final da PGR buscou refletir sobre o valor da contribuição ao processo investigativo, ponderando omissões.
Validação
No primeiro dia do julgamento, enquanto os advogados de Cid defenderam a validade do acordo, a defesa do almirante Almir Garnier, ex-comandante da Marinha, levantou a possibilidade de que seja anulada. Não é de agora que o acordo fechado entre o tenente-coronel e a PF é motivo de contestação. Ao apresentar a denúncia, em 14 de julho, Gonet sugeriu que os benefícios concedidos ao ex-ajudante de ordens da Presidência sejam reduzidos, com a pena diminuída ao patamar mínimo previsto em lei (um terço da condenação), em vez do perdão judicial ou de uma pena mais branda — conforme solicitam seus advogados.
Ao abrir o julgamento, o advogado Jair Alves Pereira fez questão de assegurar que o tenente-coronel não sofreu qualquer tipo de coerção ao longo dos depoimentos que prestou e rebateu críticas ao número de oitivas convocadas pela PF. Ele lembrou que o militar participou de 11 sessões com os investigadores, em grande parte, para reconhecer pessoas e locais relacionados aos atos golpistas.
"Depois de ele estar com cautelares diversas da prisão, afastado de suas funções, pediu baixa do Exército. E agora, ao final, o Estado diz: 'Não, realmente, tu me ajudou, tá tudo certo, mas eu vou te condenar'. Se fizermos isso, acabou o instituto da colaboração premiada. Ou ele vale, ou ele não vale", apontou Jair Pereira. Ainda na sustentação, o advogado defendeu as "escorregadas" de Cid e salientou que não é exigível que um delator, que se expôs como o militar, consiga "trazer detalhes" sem "contradição".
"Não posso exigir, pelo abalo emocional, pressão. É uma coisa que a natureza autoriza que ele possa dar uma escorregada, mas jamais sem comprometer o acordo", observou.
Cezar Bitencourt, que chefia a equipe de defesa de Cid, reforçou a legitimidade do acordo firmado entre Cid e a PF: "Há um elemento que ultrapassa o absurdo jurídico e entra no campo da injustiça moral. Generais, coronéis e oficiais foram claros e uníssonos: Mauro Cid jamais articulou um golpe, jamais apresentou propostas ilegais", disse.
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A defesa do ex-comandante da Marinha foi enfática ao pedir a anulação do acordo do ex-ajudante de ordens de Bolsonaro. Para o advogado Demóstenes Torres, os depoimentos de Cid não poderiam embasar a acusação de que o almirante teria colocado tropas à disposição do golpe — lembrou que Gonet qualificou o tenente-coronel como "omisso, contraditório, resistente ao cumprimento das obrigações pactuadas" e faltoso com a lealdade durante o acordo.
"Pergunto a vossas excelências: é possível convalidar essa delação ou ela tem que ser rescindida?", cobrou, destacando que aceitar uma colaboração em tais condições comprometeria a integridade do julgamento.
Para ele, a tentativa da PGR de rebaixar o acordo, mantendo a validade das informações, mas reduzindo os benefícios ao delator, é "incongruente" e fere decisões anteriores do próprio Supremo. "Essa mitigação não existe em nosso ordenamento. Ou a colaboração é homologada e cumprida em sua integralidade, ou é rescindida", afirmou. (Colaboraram Alícia Bernardes, Fernanda Strickland e Vanilson Oliveira)Saiba Mais
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