
O Supremo Tribunal Federal (STF) enfrenta um de seus maiores testes desde a redemocratização. No centro do julgamento da trama golpista, que apura a tentativa de ruptura institucional após as eleições de 2022, a Corte se vê desafiada a reafirmar seu papel de guardiã da Constituição em meio a uma onda global de ataques ao Judiciário. O embate brasileiro ecoa em um cenário internacional marcado pela ascensão de líderes populistas e pelo avanço de medidas destinadas a enfraquecer tribunais constitucionais.
No mês passado, durante sessão do Conselho Nacional de Justiça (CNJ), o vice-presidente do STF, ministro Edson Fachin, alertou para a gravidade desse processo. O magistrado assume a presidência do STF no final deste mês e terá o ministro Alexandre de Moraes como vice-presidente da Corte. "Vivemos tempos de apreensão, com tentativas de erosão democrática e com ataques à independência judicial na América. E aí que se situam essas próprias tentativas de enfraquecimento da convenção e das decisões da Corte Interamericana", afirmou.
Fachin destacou que o Brasil tem obrigações internacionais que precisam ser cumpridas, sobretudo no campo dos direitos humanos. "Temos à nossa frente o dever de dar efetividade aos compromissos assumidos soberanamente pelo Brasil. Dever de respeitar, de defender e de proteger os direitos humanos em nossa região, integrando e harmonizando a legislação doméstica à legislação internacional", disse.
O alerta não se restringe ao Brasil. Nos últimos anos, diferentes países têm registrado choques entre Executivo e Judiciário. No México, o presidente, Andrés Manuel López Obrador, tentou aprovar uma reforma para submeter juízes a eleições diretas, provocando forte reação popular e resistência da Suprema Corte. Em El Salvador, Nayib Bukele destituiu magistrados da Câmara Constitucional em 2021, substituindo-os por nomes alinhados ao governo.
Em Israel, a proposta de Benjamin Netanyahu para reduzir o poder da Suprema Corte provocou protestos massivos. Na Polônia, o partido nacionalista PiS foi condenado pela União Europeia por criar câmaras disciplinares para juízes e tentar controlar a atuação do Judiciário. No Mali (África), a dissolução da Corte Constitucional pelo então presidente, Ibrahim Boubacar Keïta, antecedeu um golpe militar que permanece até hoje.
Mais recentemente, o Equador entrou no radar da Comissão Interamericana de Direitos Humanos (CIDH). Em agosto, o órgão expressou preocupação com as ameaças sofridas pelo Tribunal Constitucional do país, após decisões que suspenderam trechos de leis aprovadas pelo Executivo e pelo Legislativo. Autoridades acusaram magistrados de "aliados do crime organizado" e convocaram manifestações contra a Corte. A CIDH reagiu, lembrando que a independência judicial é condição essencial para o Estado de Direito.
Esses episódios revelam um movimento articulado em diferentes regiões, em que líderes políticos tentam restringir ou capturar o poder das cortes constitucionais. A narrativa é semelhante: tribunais seriam "ativistas" ou "obstáculos" à vontade popular. Na prática, a erosão da independência judicial abre espaço para retrocessos democráticos.
No Brasil, o embate mais recente é travado no Congresso. Deputados e senadores têm apresentado projetos que buscam limitar o poder do STF, com propostas que vão desde a redução do tempo de mandato de ministros até a possibilidade de o Legislativo anular decisões da Corte. O debate se soma ao histórico de ataques do ex-presidente Jair Bolsonaro e aliados, que marcaram os últimos anos, e coloca novamente a Justiça no centro da disputa política.
Siga o canal do Correio no WhatsApp e receba as principais notícias do dia no seu celular
Resistência
Se no cenário internacional cortes constitucionais enfrentam pressões para se alinhar a governos autocráticos, no Brasil o Supremo tem sido alvo de ataques sistemáticos que, segundo especialistas, são articulados para corroer sua legitimidade.
A professora Eloísa Machado, da Fundação Getulio Vargas (FGV Direito SP), observa que essas ofensivas não surgem de forma espontânea. "O STF tem sido atacado por grupos políticos e sociais extremistas, que querem destruir o tribunal pelo controle que ele exerce. Há um interesse nesses ataques, uma coordenação, com propósito de minar a legitimidade do tribunal e sua capacidade de tomar decisões", destaca.
A jurista ressalta que a campanha contra o Supremo produziu efeitos concretos na percepção pública. "A ressonância desses ataques reiterados vai incutindo na população uma sensação de desconfiança e desprezo, o que é muito negativo, já que, na verdade, o STF tem sido fundamental para implementar o projeto constitucional de 1988", frisa.
Para Eloísa, o julgamento da trama golpista não é apenas um teste para a Corte, mas para o próprio sistema democrático. "É a partir dele que saberemos se as salvaguardas constitucionais funcionarão, se somos capazes de julgar e punir levantes autoritários e se o Judiciário é capaz de resistir às pressões internas e externas. Todas as razões republicanas e democráticas exigem um julgamento para esses fatos."
- Gilmar Mendes rebate críticas de Tarcísio e nega autoritarismo no Judiciário
- Rui Costa critica declaração de Tarsísio sobre STF: "Se perdeu completamente"
- Moraes diz que o Brasil "deu um basta ao golpismo"
Ativismo
As acusações de "ativismo judicial" contra o STF, frequentemente repetidas por críticos da Corte, também são rebatidas pela professora. "Muitas vezes, foi acusado de ativista quando simplesmente fez cumprir a Constituição, generosa em direitos, pluralista e com forte demanda de inclusão. Na minha avaliação, não houve ativismo durante o governo Bolsonaro. Não pode, de forma alguma, ser acusado de ativista. Tampouco faz sentido creditar ao STF qualquer tipo de ativismo judicial no julgamento da trama golpista", afirma.
Ela defende que os poderes conferidos pela Constituição ao Supremo não podem ser confundidos com extrapolação de competências. "Foi a Constituição que conferiu amplos poderes ao STF, inclusive, o de controlar omissões do legislador. O discurso de autocontenção dos tribunais pode ser perigoso também, não pode ser justificativa para deixar de garantir direitos fundamentais."
Eloísa lembra que a polarização política não pode intimidar o STF. "O tribunal não pode se sentir receoso de decidir porque poderá ser alvo de ataques. Se isso acontecer, o tribunal já fechou. Agora, há uma responsabilidade que precisa ser assumida pelo Congresso Nacional e pelas lideranças políticas, de também defender a Constituição, a democracia e o próprio tribunal", conclui.
STF é exemplo para comunidade internacional
A atuação do do Supremo Tribunal Federal (STF) também tem repercussão fora do país. Para a professora doutora Flávia Piovesan — da Pontifícia Universidade Católica de São Paulo (PUC-SP) e ex-vice-presidente da Comissão Interamericana de Direitos Humanos —, o Brasil tornou-se um exemplo observado de perto pela comunidade internacional. "Hoje o STF é o locus que tem sido, eu diria, a lupa do mundo. Basta lembrar que a revista The Economist tem o Brasil na capa. Não é só a front page, mas há mais 10 páginas sobre o país. Esse é o indicador do quanto o Brasil é um exemplo inspirador para a resiliência democrática num contexto de populismo autoritário e expansão das autocracias", ressalta.
Segundo a professora, a independência judicial é elemento inegociável para qualquer democracia. "Não há democracia, tampouco Estado de Direito, sem independência judicial. O Sistema Interamericano, que tive a honra de servir, tem parâmetros sólidos para assegurar essa proteção. E o Brasil tem dado provas de fortaleza institucional, com gestões sólidas e resilientes", diz.
Ela considera que o julgamento da trama golpista simboliza um divisor de águas. "É o ponto culminante de um processo dos últimos anos. Decisões do STF e do TSE, como a de que a liberdade de expressão não protege a desinformação, foram paradigmáticas. Em última análise, a desinformação ataca a soberania popular", enfatiza.
Para ela, a legitimidade da Corte não vem da força, mas da cultura do argumento. "O que legitima o Poder Judiciário não é a bala, não é a faca, não são as Forças Armadas. O que legitima é manter íntegra a força normativa da Constituição."
Flávia Piovesan destaca que o maior desafio agora é garantir que o julgamento do golpe seja conduzido sem brechas. "As provas são fartas e sólidas. O desafio é que haja total obediência ao devido processo legal, com contraditório e ampla defesa, para que não haja qualquer mácula", explica.
Desgaste
Se o Supremo assumiu protagonismo na defesa da ordem constitucional, isso também revela fragilidades de outras instituições brasileiras. Para o sociólogo e cientista político José Maurício Domingues, do Instituto de Estudos Sociais e Políticos da Universidade do Estado do Rio de Janeiro (Iesp-Uerj), o desgaste não é exclusivo do país, mas parte de um fenômeno global. "No mundo inteiro há um desgaste da democracia liberal. Ela tem um caráter representativo, com eleições, mas isso tem se mostrado muito limitado, o que se junta à predominância do modelo econômico-social neoliberal", ressalta.
Domingues observa que, paralelamente, o Judiciário passou a ocupar posição central. "No mundo inteiro também o Judiciário ganhou importância, seja por seus membros desejarem promover políticas próprias, seja por bloquearem avanços em políticas sociais, seja por serem provocados pela sociedade para intervir."
No caso brasileiro, a instabilidade política levou o Supremo ao epicentro das crises recentes. "Por certa inação legislativa em diversas questões, seja pela desorganização do sistema político, chegando à tentativa de golpe de Estado em 2022/2023, o STF foi cada vez mais jogado no centro do jogo político. No fim das contas, devido à crise do sistema político, o STF terminou por ter um papel destacado na defesa da democracia", frisa.
Esse protagonismo, porém, segundo o especialista, traz riscos. "Até quando isto vai durar é difícil de dizer, sobretudo tendo em vista a aliança golpista entre Donald Trump e a extrema-direita brasileira. Sem dúvida, como vários membros do STF já têm defendido internamente, é preciso que o tribunal desenvolva mais contenção. Até lá, é preciso um esforço extra para mostrar que as regras jurídicas estão sendo seguidas à risca".
Na avaliação do professor, a solução para reduzir o peso político excessivo sobre o STF depende da reorganização das forças democráticas. "Acima de tudo é preciso que as forças democráticas se reorganizem, mostrem-se responsáveis, movam-se com total lisura e apresentem uma pauta que de fato responda aos anseios da população", diz.
Para ele, só a mobilização social poderá forçar mudanças estruturais. “Será a própria mobilização da sociedade numa direção democrática que poderá resolver os problemas atuais, forçando o sistema político a se transformar. Isso sim pode fazer com que o Judiciário tenha menos destaque político”, finaliza.
Saiba Mais
Política
Política
Política
Política
Política