operação contenção

Guerra no Rio: perícia nos corpos é nova fronteira de embates

Defensoria Pública do estado diz ter sido impedida de participar das necrópsias e recorre ao STF. DPU também entra com pedido na Corte para acompanhar procedimentos. Polícia Civil afirma que o acesso ao IML é limitado a agentes da corporação e membros do Ministério Público

Emoção em frente ao Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro após reconhecimento de mortos na megaoperação das forças de segurança -  (crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil)
Emoção em frente ao Instituto Médico-Legal do Rio de Janeiro após reconhecimento de mortos na megaoperação das forças de segurança - (crédito: Fernando Frazão/Agência Brasil)

A perícia dos corpos dos 117 mortos na megaoperação da polícia nos complexos do Alemão e da Penha, Zona Norte do Rio de Janeiro, tornou-se nova fronteira de embates no estado. A Defensoria Pública local denunciou ter sido proibida de participar do procedimento no Instituto Médico-Legal (IML). Por sua vez, a Defensoria Pública da União (DPU) pediu ao ministro Alexandre de Moraes, do Supremo Tribunal Federal (STF), autorização para acompanhar a necropsia. O magistrado é o relator temporário da ADPF das Favelas.

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A presença dos defensores públicos durante as necropsias é um direito constitucional, além de ser considerada fundamental para garantir a transparência dos procedimentos. O órgão atende 106 famílias das comunidades, que pediram ajuda para identificar corpos, conseguir documentos e obter gratuidade de sepultamento.

Segundo os defensores estaduais, a entrada foi autorizada apenas até o pátio e outras áreas do prédio, sem permissão para acompanhar os exames. O órgão também argumenta que o acompanhamento da perícia faz parte da atuação na ADPF das Favelas, determinada pelo STF.

"Estamos providenciando esse acesso e correndo contra o tempo, porque esses corpos não vão ficar à disposição da Defensoria. Eles vão ser provavelmente encaminhados para o sepultamento; por isso, nós estamos aqui desde cedo buscando participar da produção dessa prova, mas nos foi impedido", denunciou a defensora pública Rafaela Garcez, em coletiva de imprensa em frente ao IML do Rio Centro.

Na manhã desta quinta-feira, o órgão pediu ao STF autorização para fazer laudos paralelos à perícia oficial nos corpos e afirmou que "privilegiou-se a letalidade" durante a operação. "As declarações do governador do Rio de Janeiro, segundo as quais a operação teria sido um sucesso, afirmando que as únicas vítimas mortas foram os policiais, causam espécie, considerado o acórdão prolatado por este Supremo, no qual se estabeleceu como meta a reocupação territorial sem modus operandi letal", sustentou o órgão. "Ocorre que, além de o escopo da operação não ter sido esse, e, sim, o cumprimento de mandados, privilegiou-se a letalidade, contrariando o dever de redução significativa imposto por esta Corte", destacou.

A Defensoria do Rio também solicitou à Polícia Militar do Rio de Janeiro as gravações das câmeras corporais e a identificação dos policiais envolvidos na operação. A solicitação é alinhada à decisão de Moraes — que determinou ao governador Cláudio Castro uma explicação, "de maneira detalhada", sobre a megaoperação, além de informações sobre o número oficial de mortos, feridos e pessoas detidas, bem como quais providências foram adotadas para assistências às vítimas e famílias.

Por meio de nota, a Polícia Civil informou que o acesso ao IML está limitado aos policiais civis e membros do Ministério Público. "A Polícia Civil está cumprindo todas as regras estabelecidas pela ADPF 635. O trabalho é desenvolvido por peritos oficiais da Polícia Civil e acompanhada por peritos independentes do Ministério Público. Esta é uma rotina técnica, e o ambiente é controlado", argumentou.

Já a DPU justificou, no documento enviado ao STF, que "a adequada produção probatória pericial, com acompanhamento técnico independente, mostra-se essencial para a correta distribuição do ônus probatório e para a efetiva responsabilização estatal, quando cabível".

Para o pesquisador da Faculdade Latino-Americana de Ciências Sociais (Flacso Brasil) Tédney Moreira, o Rio também é responsável pelo colapso em que está na área da segurança pública. Ele aponta que a falta de acesso às perícias pode ter um componente racial, levando em conta a vulnerabilidade social das famílias envolvidas.

"Quando o Estado se exime de sua responsabilidade de aproximação não violenta à comunidade, corroborando, assim, para a adoção de uma política de morte (necropolítica), por considerar que determinadas existências são menos relevantes ou dignas em comparação a outras", frisa. "Essa seletividade dá-se por fatores de raça, gênero e classe interseccionados, promovendo-se, ainda que aparentemente de modo excepcional, mortes que, no entanto, são diárias, cotidianas e, logo, banalizadas", ressalta.

 O Rio de Paz está em Copacabana em  homenagem aos quatro policiais que perderam a vida na operação que deixou mais de 120 mortos nos Complexos do Alemão e da Penha.
O Rio de Paz homenageou, em Copacabana, os quatro policiais que morreram na megaoperação (foto: Divulgação/ @Riodepaz)

Direito

A coordenadora do Programa de Enfrentamento à Violência Institucional da Conectas, Carolina Diniz, lembra do direito das famílias em terem a perícia transparente e o acesso a documentos após as mortes. Segundo ela, os procedimentos realizados no âmbito da Operação Contenção estão em desacordo com os organismos internacionais.

"A decisão da Corte Interamericana de Direitos Humanos no caso Favela Nova Brasília, bem como as diretrizes do Protocolo de Minnesota sobre a Investigação de Mortes Potencialmente Ilícitas asseguram o direito dos familiares das vítimas de participar do processo investigativo, inclusive mediante a indicação de representantes técnicos para acompanhar as perícias e demais diligências", diz.

O advogado constitucionalista Nauê Bernardo de Azevedo avalia que uma operação que termina com esse volume de corpos empilhados nada tem a ver com a criminalidade. Ele também alerta para os riscos a que as forças de seguranças são expostas.

"O Estado precisa se empenhar seriamente na tarefa de combate ao crime organizado para livrar a população da tirania da criminalidade sem submetê-la a um risco constante de morte. Isso fica ainda pior quando lembramos que nossos policiais estão sendo constantemente mandados para um enfrentamento com a morte. O que será das famílias deles e delas nesse caso? É justo expormos esses profissionais assim?", argumenta.

Peritos

Diante da situação, o ministro da Justiça, Ricardo Lewandowski, informou, nesta quinta-feira, que enviará ao Rio de Janeiro 20 peritos estaduais para ajudar nas necrópsias. O chefe da pasta também declarou que mobilizará de 10 a 20 peritos da Força Nacional de Segurança Pública para atuar no estado. O efetivo de peritos poderá ser aumentado, a depender de avaliação.

Segundo Lewandowski, o envio é o primeiro resultado concreto do escritório emergencial de combate ao crime organizado no Rio de Janeiro, anunciado, na quarta-feira, no Palácio Guanabara.

"Nós tivemos a ideia de criar esse escritório extraordinário de enfrentamento ao crime organizado para agilizar a comunicação entre as forças federais e estaduais de segurança. Não é um espaço físico, mas uma forma de se comunicar rapidamente e transmitir as necessidades que possam ser resolvidas sem maiores delongas. Um dos resultados é o envio de peritos criminais, médicos e de diferentes áreas da criminalística", afirmou o ministro.

Os peritos vão auxiliar as forças estaduais de segurança em áreas como análise dos locais de crimes, balística e genética forense para identificação de DNA.

* Estagiária sob a supervisão de Cida Barbosa

 

 

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postado em 31/10/2025 03:55
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