Deflagrada na semana passada, a Operação Poço de Lobato reforçou a discussão sobre o tema do uso de refinarias e de outras empresas ligadas ao setor de combustíveis em práticas fraudulentas, como a lavagem de dinheiro. A força-tarefa liderada pela Receita Federal cumpriu 126 mandados de busca e apreensão em quatro estados do Brasil e no Distrito Federal na quinta-feira (27/11) e revelou um esquema de fraudes bilionário que envolvia o grupo Refit — antiga Refinaria de Manguinhos.
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O fato retomou a discussão em torno do PL 125/2022 que estabelece regras mais duras para o devedor contumaz e está na mesa do presidente da Câmara, Hugo Motta (Republicanos-PB), após ter sido aprovada no Senado. Na noite do mesmo dia em que ocorreu a operação, ele nomeou o deputado Antônio Carlos Rodrigues (PL-SP) como relator da proposta na Casa e sinalizou que o texto pode ser votado nesta semana, o que causou uma repercussão positiva dentro do governo federal, que defende a aprovação do texto tal como está escrito.
Na sexta-feira (28), o secretário especial da Receita Federal, Robinson Barreirinhas, comemorou o andamento do texto e se mostrou otimista em relação à aprovação na Câmara. “Essa legislação permite que nós tenhamos, por exemplo, uma suspensão do CNPJ e impeça que elas façam isso. E também o devedor contumaz deixa de ter o recurso da recuperação judicial. Se ela não tem condição de funcionar, ela tem que quebrar, entrar em falência e sair do mercado”, destacou, em entrevista ao portal UOL.
Caso o projeto de devedor contumaz seja aprovado no Congresso e sancionado pela Presidência, Barreirinhas acredita que ele abriria espaço para “empresas saudáveis” atuarem no mercado de combustíveis. “Então, ele (PL) é essencial nesse nosso esforço de sanear o mercado, tirar essas empresas e abrir espaço para bons contribuintes, para bons empresários atuarem no setor”, acrescentou o secretário.
Sobre a atuação do grupo Refit nos esquemas fraudulentos, ele lembrou que a empresa está em recuperação judicial há mais de 10 anos, apesar de firmar negócios bilionários com outras empresas dentro do país e no exterior. O grupo possui diversas empresas menores dentro do próprio guarda-chuva, que também são utilizadas para esconder a real situação financeira do conglomerado gerido pela refinaria.
“Ou seja, tem um processo judicial, há um juiz acompanhando esse processo de recuperação judicial e ela está lá quebrada, praticamente, há mais de dez anos. Enquanto isso, ela continua fazendo negócios bilionários dentro do país. (...) Nós estamos levando todas essas informações para o Judiciário e questionando isso”, disse Barreirinhas.
Já o novo relator da proposta na Câmara, Antônio Carlos Rodrigues, afirmou, em nota, que não se pronunciará publicamente sobre o conteúdo do projeto até que uma reunião com a consultoria técnica seja realizada e haja autorização do presidente Hugo Motta. No comunicado, Rodrigues destacou que sua postura segue os procedimentos institucionais que orientam o trabalho legislativo, reforçando o compromisso com o devido processo interno antes de qualquer declaração sobre o relatório.
O posicionamento do relator ocorre em meio a expectativas de que o projeto, já aprovado pelo Senado, avance rapidamente na Câmara, especialmente após Motta incluir a pauta na lista de prioridades da Casa.
O PLP 125/2022 estabelece critérios para identificar devedores contumazes, incluindo dívidas reiteradas e significativas, e prevê sanções como impedimento de participação em licitações e restrições a sócios de empresas inadimplentes. A expectativa é que, após a reunião com a consultoria técnica, Rodrigues apresente o relatório a Motta, que poderá pautar a votação do projeto no Plenário nas próximas semanas.
Otimismo
Apesar da expectativa pelo relatório, a orientação na base governista é avançar. Em entrevista ao Correio, o líder da bancada e presidente da Comissão de Finanças e Tributação, Rogério Correia (PT-MG), afirma que o tema é prioritário e que a operação contra o grupo liderado por Ricardo Mago apenas expôs a necessidade de um marco legal mais robusto.
“A bancada do PT é favorável ao avanço do PLP 125/2022, conhecido como do ‘Devedor Contumaz’. O projeto é fundamental para combater as fraudes fiscais estruturadas e as organizações empresariais que atuam de forma permanente para driblar o fisco, uma prática que prejudica o Estado, distorce a concorrência e financia redes criminosas. A megaoperação contra o Grupo FIT apenas reforça a urgência de um marco legal capaz de enfrentar esse tipo de contumácia profissional”, afirmou.
Correia rejeita a tese de que o projeto possa atingir empresas que enfrentam dificuldades temporárias ou disputas fiscais legítimas. Para ele, esse argumento tem sido usado de forma equivocada para tentar desacelerar o debate. “Eu e o PT não vemos sentido em frear o combate ao crime organizado sob o pretexto de proteger contribuintes regulares, até porque esses contribuintes serão justamente os beneficiados por um ambiente concorrencial mais justo. Empresas de boa-fé também terão seus mecanismos de salvaguarda. O foco do projeto é claro: atingir quem faz da sonegação um modelo de negócio, não quem atua de forma transparente e correta.”
À frente da Comissão de Finanças e Tributação, o deputado diz que vai trabalhar para calibrar o texto e garantir segurança jurídica. A preocupação, reforça, é impedir que o termo “devedor contumaz” seja aplicado de forma banal ou inadequada. “Vou atuar no Plenário seguindo a nossa orientação de endurecer o combate ao devedor contumaz e assegurar total segurança jurídica para os contribuintes regulares. O objetivo é calibrar o texto para distinguir de forma inequívoca o sonegador profissional do empresário legítimo. Isso envolve aprimorar definições, fechar brechas e evitar qualquer banalização do conceito de contumácia, garantindo que o enquadramento recaia exclusivamente sobre estruturas empresariais criadas para fraudar o Estado e obter vantagens competitivas ilícitas”, concluiu.
Presidente da Frente Parlamentar pelo Brasil Competitivo, o deputado Júlio Lopes (PP-RJ) acredita que o projeto deve passar pela casa por unanimidade na Câmara e ser aprovado sem nenhuma alteração em relação ao texto enviado pelo Senado. Ele considera que o PL já está “bastante equilibrado e eficiente” e pode ser votado até o próximo dia 3 de dezembro. “A gente não pode permitir que os desvios e que essa disfunção concorrencial continue ocorrendo no Brasil.”
O deputado fluminense destaca ainda que esse é um problema que não fica restrito apenas ao setor de combustíveis. “A gente tem na área do cigarro empresas que devem bilhões no Rio de Janeiro. Empresas na área de bebidas, que fazem do seu negócio a sonegação”, acrescentou Lopes, que revelou ter se surpreendido com a quantidade de dinheiro não declarado pela Refit nos últimos anos. “A gente sabia que essa empresa era uma empresa problemática e que tinha questões de sonegação, mas eu pelo menos nunca imaginei que fosse nessa proporção. É algo realmente assustador”, afirmou.
Além do PLP 125/22, o presidente da Câmara definiu os relatores de outros projetos que visam combater ilicitudes no setor de combustíveis. Entre eles, está o PL 399/2025, que estabelece penas mais duras para a adulteração desses produtos e terá a relatoria do deputado Alceu Moreira (MDB-RS).
Também foi nomeado o deputado Júnior Ferrari (PSD-PA) para relatar o PL 1923/24, que cria o Operador Nacional do Sistema de Combustíveis (ONSC), que funcionaria de maneira semelhante ao órgão criado para o setor elétrico. O autor deste último projeto é o deputado Júlio Lopes, que também comemorou o andamento do texto: “Acho que a combinação dessas medidas vai, no mercado de combustíveis, mudar o patamar do Brasil em termos concorrenciais, em termos de impostos e da realidade do mercado brasileiro de combustível”.
Segurança jurídica
Especialistas ouvidos pelo Correio afirmam que o PLP 125 estabelece salvaguardas claras para evitar que empresas em dificuldades temporárias ou envolvidas em disputas legítimas sejam enquadradas como devedores contumazes. A advogada tributarista Maísa Pio destaca que o texto exige “mecanismos de fiscalização baseados em processo administrativo formal, objetividade e garantias processuais”. Segundo ela, o projeto determina a abertura obrigatória de processo administrativo prévio, com indicação dos créditos que motivam o enquadramento, decisão tecnicamente fundamentada e prazo de 30 dias para defesa com efeito suspensivo.
Além disso, o PLP exclui da caracterização de inadimplência substancial débitos com exigibilidade suspensa, créditos garantidos, parcelados, transacionados ou em moratória adimplente, bem como valores em controvérsia jurídica relevante. Para a especialista, esses dispositivos “asseguram que apenas o devedor contumaz estrutural seja alcançado, preservando contribuintes que enfrentam dificuldades econômicas transitórias ou que discutem legitimamente o crédito tributário”.
Já o analista Ian Lopes, da Valor Investimentos, vê impacto imediato e robusto para as contas públicas. “Tem um impacto fiscal absurdamente alto. Isso gera um caixa relativamente grande para a União”, afirmou. Ele destaca ainda que o projeto afeta diretamente empresas que sonegam, o que, segundo ele, acaba impulsionando padrões mais elevados de governança.
“Quando a gente fala de regras para devedores, isso vai pegar principalmente quem está sonegando. Esse tipo de regra aumenta a qualidade da gestão das empresas, porque se existe um nível de sonegação, existe falta de profissionalismo no mercado em que essa empresa está atuando. E isso com certeza vai fazer com que estas ajam da maneira mais correta.”
Poço de Lobato
A megaoperação liderada pela Receita em parceria com a Polícia Federal e o Ministério Público deram mais uma luz ao grande esquema de fraudes no setor de combustíveis. Como destacou o secretário Barreirinhas, na sexta-feira, o grupo alvo atuou no mesmo caso desvendado na Operação Carbono Oculto, lançada no último mês de agosto. Na segunda metade do ano passado, a Refit teria substituído a então empresa que atuava para facilitar a lavagem de dinheiro em uma artimanha que também envolveu fintechs e outras empresas no mercado financeiro. Em apenas um ano, o grupo movimentou R$ 72 bilhões e possui uma dívida total de R$ 26 bilhões em impostos, sendo considerado o maior sonegador do país.
Na avaliação do especialista em direito tributário e sócio da Ernesto Borges Advogados Sandro Miguel Jr., a operação deflagrada na quinta pelo Fisco expõe fragilidades da legislação tributária brasileira, que, segundo ele, não diferencia bem a inadimplência tributária legítima, que ocorre quando há dificuldades momentâneas e busca por negociação, da sonegação estruturada, que é realizada por meio de fraudes fiscais para obter vantagem competitiva. “A ausência de mecanismos preventivos faz com que o combate dependa de grandes operações policiais, como Poço de Lobato e Carbono Oculto, que são reativas e não resolvem a raiz do problema”, considera.
Kiko Omena, que também atua na área do Direito Tributário, pelo escritório Veloso de Melo, acredita que o caso tende a reforçar no Congresso a urgência e a relevância do projeto de lei para o devedor contumaz. “A dimensão do esquema, sua capacidade de distorcer a concorrência e o impacto bilionário para a arrecadação criam um ambiente político favorável para o avanço da proposta”, considera. O advogado explica ainda que a operação fornece um exemplo concreto de como esses grupos podem usar brechas legais para manter atividades econômicas mesmo após acumular enormes dívidas tributárias. “Isso só fortalece o argumento de que é necessário um marco legal mais rigoroso para identificar, restringir e punir devedores contumazes”, conclui.
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