A Necessidade é um clássico do samba que explora a condição humana com ironia e crítica social, marcas registradas de Bezerra da Silva. Diz a letra: "A necessidade obrigou / você me procurar / você era orgulhosa / mas a necessidade acabou com a sua prosa". Foi mais ou menos isso que se viu no Senado nesta quarta-feira, na aprovação do PL da Dosimetria pelo plenário, por 48 votos a favor e 25 contra, com uma abstenção. O projeto altera critérios de cálculo e execução de penas e, na prática, reduz condenações impostas aos envolvidos na tentativa de golpe de Estado de 8 de janeiro.
A aprovação do texto na Comissão de Constituição e Justiça (CCJ) não decorreu de consenso jurídico, mas de um acordo político de bastidores entre governo e oposição para limpar a pauta do Senado e destravar votações de interesse do Planalto. A articulação envolveu o líder do governo, Jaques Wagner (PT-BA), e o líder da oposição, Rogério Marinho (PL-RN), e acabou por expor fissuras internas na base governista, que optou por votar contra o projeto, sem, contudo, obstruir sua tramitação.
Enquanto o senador Flávio Bolsonaro (PL-RJ) comemorou abertamente o resultado, Renan Calheiros (MDB-AL) protagonizou um dos discursos mais duros e politicamente reveladores da essência da questão. Comparou o projeto a um "peru de Natal entregue pelo governo a Jair Bolsonaro" e acusou o Senado de participar de uma encenação para atender a conveniências momentâneas. "Eu não vou participar de farsa nenhuma", afirmou, ao criticar a tentativa de votar uma matéria de profundo impacto institucional "a toque de caixa", em menos de 24 horas.
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Renan revelou, ainda, que fora procurado pelo próprio Jaques Wagner, que lhe teria confidenciado o interesse do governo em "limpar a pauta" do Senado para viabilizar a votação de matérias econômicas consideradas estratégicas, como a taxação das apostas esportivas, estimada em gerar mais de R$ 20 bilhões em receitas para o Tesouro Nacional. Para Renan, a negociação expôs uma contradição grave: sacrificar o debate institucional sobre crimes contra a democracia em nome de conveniência fiscal e aritmética legislativa.
Graças ao acordo, a CCJ aprovou parecer do relator Esperidião Amin (PP-SC) por 17 votos a 7, acolhendo emenda do senador Sergio Moro (União-PR), que tenta restringir os efeitos da redução de pena aos crimes contra o Estado Democrático de Direito. Amin sustentou que o projeto não configura anistia, mas corrige excessos cometidos na aplicação das penas. "Há um consenso de que a mão foi pesada, muito pesada", declarou. Ainda assim, o próprio relator admitiu que o texto pode beneficiar outros condenados por crimes contra a democracia, inclusive réus da chamada trama golpista julgada pelo Supremo Tribunal Federal.
O ponto mais controverso do processo foi a classificação da emenda de Moro como "redacional". Para Renan Calheiros; para o presidente da CCJ, Otto Alencar (PSD-BA); e para outros senadores, trata-se claramente de uma emenda de mérito, que altera o alcance do projeto e exigiria o retorno do texto à Câmara dos Deputados. Renan alertou que forçar a classificação como ajuste formal era uma manobra para acelerar a tramitação e evitar novo debate. "Ninguém pode obrigar o Senado a votar uma matéria dessa complexidade em 24 horas", disse.
Jogo combinado
Ao aprofundar sua crítica, Renan alertou para os efeitos institucionais do projeto. Segundo ele, o PL da Dosimetria desestimula militares legalistas, que se recusaram a aderir à tentativa de golpe, e fragiliza o trabalho da Polícia Federal, que reuniu provas robustas contra os articuladores e executores dos atos golpistas. "Nós vamos frustrar a investigação da Polícia Federal. Nós não podemos permitir que isso aconteça", afirmou, associando o projeto a um recado político perigoso de leniência com crimes contra a ordem constitucional. Nada adiantou.
Do ponto de vista normativo, o projeto altera a Lei de Execução Penal, redefine percentuais mínimos para progressão de regime e amplia hipóteses de remição de pena, inclusive em prisão domiciliar. Ao substituir a soma de penas pelo concurso formal quando os crimes forem praticados no mesmo contexto, o efeito prático é a redução significativa do tempo total de encarceramento. Mesmo nos casos de liderança de organização criminosa voltada à prática de crime hediondo — hipótese que pode alcançar Jair Bolsonaro —, o cumprimento mínimo de 50% da pena representa, na prática, um abrandamento frente ao modelo cumulativo hoje aplicado.
Nos bastidores do Planalto, a decisão de não criar obstáculos reais à aprovação do projeto atendeu a dois cálculos políticos. O primeiro, garantir o avanço da pauta econômica no Senado, já aprovada pela Câmara; segundo, preservar para o presidente Lula o protagonismo de vetar o projeto em 2026, ano eleitoral. Vetos presidenciais, mesmo quando derrubados, ajudam a dissociar a imagem do presidente da do Congresso e reforçam um discurso de defesa da democracia diante da opinião pública.
O PL da Dosimetria nasce, assim, como resposta mal formulada a um problema real: penas desproporcionais aplicadas a figurantes dos atos de 8 de janeiro. O Supremo aplicou penas severas sabendo que seriam mitigadas; o Congresso legislou ciente do custo político e institucional; e o governo aceitou o acordo para ganhar tempo e pautar a narrativa, com o veto presidencial. Nos bastidores, ministros do Supremo também trabalharam pela aprovação.
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