
Ocupando quase metade da América do Sul, o Brasil concentra, em seu território, a maior biodiversidade do mundo. Em seis biomas terrestres e três grandes ecossistemas marinhos, abrigamos mais de 116 mil espécies animais e mais de 46 mil espécies vegetais.
Os dados são do Ministério do Meio Ambiente e Mudança do Clima, que apontam ainda que a variedade de biomas existentes no país faz com que o Brasil seja o detentor de 20% do total de espécies do mundo, encontradas em terra e água.
E o que esses dados têm a ver com a chácara que a advogada aposentada Suely de Paula Silva mantém no Distrito Federal e onde cultiva espécies pouco conhecidas pela maioria das pessoas, como a serralha e o cará? Ou com o biólogo Fabio Neves Vieira, que passou a identificar plantas comestíveis nas ruas, terrenos baldios e até em cercas-vivas. Isso é o que vamos descobrir nas próximas páginas.
Diversidade
Os biomas brasileiros são a Floresta Amazônica, maior floresta tropical úmida do mundo; o Pantanal, maior planície inundável; o Cerrado, com suas savanas e bosques; a Caatinga, composta por florestas semiáridas; os campos dos Pampas; e a floresta tropical pluvial da Mata Atlântica. Além disso, o Brasil possui uma costa marinha de 3,5 milhões km², que inclui ecossistemas como recifes de corais, dunas, manguezais, lagoas, estuários e pântanos.
De Norte a Sul
A biodiversidade impacta, diretamente, na alimentação do brasileiro, que tem, à sua disposição, inúmeros vegetais, frutos, legumes e verduras, tanto os típicos quanto os importados, que se adaptam bem ao nosso clima.
Algo que exemplifica bem como os diferentes biomas influenciam a alimentação é observar as gritantes diferenças gastronômicas encontradas nas regiões brasileiras. Enquanto no Pará, faz parte da cultura local consumir maniçoba, prato feito com a folha da mandioca-brava, é incrivelmente difícil encontrar o alimento no Rio Grande do Sul.
Quando pensamos em tanta variedade logo vem à mente espécies exóticas que se escondem nas profundezas do oceano ou no coração das matas, mas esquecemos que toda essa abundância pode ser encontrada no meio da calçada ou no terreno ao lado de casa.
E é nesse cenário, ainda envoltas em mistério e desconhecimento, que encontramos as chamadas plantas alimentícias não convencionais (PANCs). O termo, criado pelo biólogo Valdely Kinupp e pela nutricionista Irany Arteche, em 2008, refere-se a plantas que têm uma ou mais partes comestíveis e que não fazem parte do cardápio cotidiano da grande maioria das pessoas e nem são facilmente encontradas em mercados e hortifrutis.
A definição enfrenta algumas controvérsias em função de plantas muito usadas em um estado e pouco conhecidas em outros, mas as que estão dentro do termo, de fato, são pouquíssimo consumidas na maioria do país, apesar de muitas delas serem abundantes.
Sócia na Agro Biodiversidade, empresa de tecnologia em agricultura e biodiversidade, com mais de 25 anos de experiência na área, Clarissa Taguchi argumenta que a jabuticaba pode ser uma PANC na Amazônia, e não em Minas Gerais. O guaraná, como fruta, é uma PANC para o restante do país, mas não na Amazônia. “Isso ocorre entre espécies de continentes diferentes, de países, de regiões. Mas há um aumento, sim, no consumo de espécies não convencionais. Ainda temos um mundo de descobertas”.
A maior fã da serralha
E aqui, voltamos para a história da nossa consumidora de PANCs Suely de Paula Silva, de 67 anos, que se diverte ao comentar que sua atual ocupação como aposentada permite que tenha tempo de sobra para procurar e colher as plantas que tanto gosta de consumir.
De origem mineira, desde sempre consumiu taioba, ora-pro-nobis e serralha, que eram preparadas pela mãe. “A gente saía procurando pelas calçadas e catando onde quer que encontrássemos. Na rua, em terrenos abandonados e em cercas-vivas pela cidade”, lembra.
Atualmente, ela cultiva as suas espécies preferidas na própria chácara. A que Suely mais gosta é a serralha. A planta, considerada por muitos uma erva-daninha, é rica em vitaminas A, D e E e tem sabor que lembra o espinafre.
Suely desenvolveu, inclusive, um olho clínico para ver a serralha por aí. “Em qualquer lugar que estiver, eu coleto. Uma vez, em São Paulo, em frente ao apartamento da minha irmã, eu vi no canteiro de um shopping. Pedi ao vigilante para pegar e ofereci um café em troca, trouxe um monte e semeei na chácara”, conta, rindo.
Foi somente há cerca de cinco anos que Suely foi apresentada ao conceito de PANCs e descobriu que alguns dos seus alimentos faziam parte do grupo. Hoje, depois de se informar sobre essas plantas, adicionou ainda mais variedade ao seu paladar. A chaya e o cara-do-ar também entraram no cardápio e no cultivo da chácara. “Acho que todo mundo deveria conhecer esses alimentos. São bons para a saúde, não tem agrotóxicos e nos dão alternativas diferentes do que vemos nos mercados, que, muitas vezes, têm pouca variedade e preços altos”, acredita.

De não convencional para convencional
Em 2015, Fabio Neves Vieira, biólogo, professor, educador ambiental e criador do projeto Hortelão, entrou em contato com as PANCs pela primeira vez e se surpreendeu. Com o livro do biólogo Valdely Kinupp como companhia, passou a identificar plantas comestíveis nas ruas, terrenos baldios e até mesmo em cercas vivas. "Confesso que fiquei um pouco obcecado, toda vez que saía de casa acabava parando em algum lugar para colher o que encontrasse."
Fabio tomou gosto pela coisa e nunca mais deixou de estudar e pesquisar, o que o levou à conclusão de que o aumento no consumo das PANCs nada mais é do que o resgate de uma alimentação antiga, de outras gerações, remontando aos costumes dos povos originários do Brasil.
"É impressionante a quantidade de alimento que está distribuído pelo planeta, nas calçadas, nas ruas, nas matas e como passamos por uma espécie de lavagem cerebral sobre o que é um alimento de verdade", comenta, acrescentando que sentiu a necessidade de dividir seu despertar com outras pessoas, criando assim a página do Hortelão.
Nesse espaço, ele passou a divulgar suas descobertas e começou a vender mudas de PANCs e criar hortas para as pessoas, o que trouxe também oficinas e eventos. "O tema central é essa transição de hábitos com mais consciência sobre os alimentos não convencionais, além de reflexões sobre o tema e divulgação das riquezas que temos no Cerrado."
A ideia é que esses alimentos sejam cada vez mais comuns e passem a fazer parte da rotina das pessoas, o que é visto por especialistas como alternativas de combate à fome e à desnutrição, já que a grande maioria dessas plantas tem inúmeros benefícios nutricionais.
O biólogo ressalta que outras partes de plantas convencionais, como a folha da batata-doce e o coração da bananeira, normalmente descartados, podem ser consumidos e também são consideradas PANCs.
As trilhas
Do Hortelão, nasceu a Trilha Funghi, projeto em que Fabio se reúne com um grupo de interessados e procura por cogumelos comestíveis pela cidade. A ideia é divulgar os macrofungos, os cogumelos, como fonte de alimentação saudável e rica que é negligenciada no Brasil. "Eles têm substâncias ótimas para a saúde, como betaglucanos e nutracêuticos, só encontrados em fungos", explica.
A procura pela trilha tem crescido e em seus estudos sobre fungos, que se iniciaram em 2003, ele se deparou também com os FANCs, variação da primeira sigla e que se refere aos fungos alimentícios não convencionais. Desde 2016, Fabio já conseguiu identificar 40 espécies de cogumelos comestíveis no Distrito Federal.
"Acredito que esse panorama é muito maior. Sabemos que as pessoas passam fome, além de sermos alimentados com ultraprocessados, que são péssimos para a saúde e viciam nosso paladar", comenta Fabio, que defende que o governo federal invista em programas de educação alimentar e agroecologia, colocando a população em contato com essa biodiversidade e com alimentos fáceis de cultivar e encontrar nas ruas.
Tesouros no quintal
Em 2023, Fabio encontrou uma surpresa em terras candangas. Com intensos tons laranjas ou amarelos e com uma forma de funil, os cogumelos chanterelles, apreciados na culinária internacional, deixaram o biólogo incrédulo ao aparecer perto do Córrego do Urubu, no Lago Norte, no quintal de casa.
Com odor frutado e sabor marcante, porém delicado, é muito procurado e raro, afinal, por ser um cogumelo silvestre, não pode ser cultivado, sendo sempre colhido na natureza. Os tesouros surgiram de novo no ano passado, quando ele os colheu e vendeu para o chef dinamarquês Simon Lau. E este ano, o biólogo já está monitorando os cogumelos chanterelles, garantindo que eles cresçam bem e possam render uma boa colheita.
"Eu sabia que eles existiam no Brasil, mas fiquei muito surpreso quando os encontrei no meu quintal. É um destaque e mais uma prova da imensa riqueza que temos bem na nossa frente aqui no Distrito Federal", completa.

Novos horizontes
A chef de cozinha e ambientalista Clarissa Taguchi, da Agro Biodiversidade, comenta que quando descobriu que plantas existentes nos nossos quintais podem ser comestíveis, com cores, texturas e sabores até então inéditos, um novo mundo se descortinou.
Além de trazer possibilidades na gastronomia, inspirando receitas diferentes e até alguns pratos que podem ser tidos como exóticos, afinal, os grandes chefs têm o talento necessário para gourmetizar plantinhas encontradas nas calçadas, as PANCs e FANCs podem ser o futuro da alimentação como um todo.
Na agricultura, Clarissa acredita que falta um olhar mais atento para a variabilidade genética, que quanto maior, aumenta sua capacidade de permanecer como espécie no planeta. Como exemplo, cita o fato de que enquanto temos uma enorme variedade de bananas no Brasil, a grande maioria — se não toda a banana consumida — é clonada, tendo sido importada de regiões de clima quente que produzem a fruta a partir de um único perfil genético.
Clarissa esclarece que o modelo simplifica a produção, porque todo o cultivo segue o mesmo padrão, facilita o transporte e a comercialização, além de manter um gosto padrão na fruta. "Mas o que essa banana clonada tem como maior fragilidade? Basta uma doença que não haja controle surgir, ou uma mudança na temperatura que impeça sua produção, e logo a maior parte do mundo nunca mais consumirá banana. Agora lembremos, não é apenas a banana que é clonada. A soja, o milho, o trigo, uma ampla quantidade de hortaliças, frutas, cereais, castanhas têm o mesmo modelo", alerta.
Nesse cenário, as PANCs, com resiliência climática, são, em geral, nativas de onde estão e espécies rústicas, que não sofrem esse tipo de intervenção agrícola. Logo, surgem como alternativas sustentáveis e nutritivas. "São mais resistentes a toda essa mudança, pois têm mecanismos biológicos de defesa que as fazem mais resistentes, e há uma real necessidade de termos variação genética na alimentação, pois vivemos um momento de emergência climática com consequências imprevistas", preocupa-se.
Benefícios e nutrientes
As PANCs mais nutritivas, segundo Clarissa Taguchi, acabam sendo usadas em suplementos alimentares quando passam a ter plantio em larga escala. É o caso da ora-pro-nóbis, do camu-camu e da casca de jabuticaba. E as propriedades delas, que são benéficas para a saúde e a nutrição, são, justamente, resultado da resiliência dessas plantas.
"É lindo, porque a capacidade de essas plantas resistirem a toda intempérie, essa proteção biológica que as fez se tornarem resistentes ao clima, a vírus e outras doenças, se traduz em compostos bioquímicos superiores, transformando essas espécies em superalimentos. As PANCs no geral são superalimentos", explica.
O biólogo Fabio Neves Vieira acrescenta a chaya, a moringa, a taioba e a beldroega entre as plantas com propriedades altamente benéficas à saúde. E ressalta que ainda existem poucos estudos sobre o valor nutricional de PANCs e que, provavelmente, existem diversas outras espécies, muito nutritivas, que ainda não conhecemos.
Ricas em vitaminas, minerais, fibras e antioxidantes, elas podem ajudar a controlar a hipertensão, reduzir o risco de doenças cardiovasculares e degenerativas e melhorar o sistema imunológico. "São uma boa fonte de nutrientes para dietas vegetarianas e veganas, podem ajudar a regular a atividade intestinal e prevenir doenças."
Adaptadas ao clima local, as PANCs não precisam de muita irrigação, adubação ou produtos químicos para o cultivo. Além das vantagens para a saúde das pessoas, contribuem para a saúde do planeta como um todo, afinal, têm papel ativo na preservação do patrimônio genético e do ecossistema. "Elas são ainda parte da tradição alimentar de algumas regiões do Brasil. O consumo de PANCs valoriza espécies nativas e conhecimentos regionais", completa.
Universo gastronômico
Há 20 anos, esse chef mais brasiliense do que dinamarquês tem conquistado o público da capital federal. Simon Lau, 60, por essência, gosta de valorizar a cultura do Distrito Federal em seu cardápio, encontrado no querido e popular Aquavit, restaurante localizado no Setor de Mansões do Lago Norte. Durante os últimos anos, reinventar e explorar novos sabores sempre foi um de seus desejos. Inquieto e curioso, descobriu nas plantas não convencionais um universo de ingredientes para os pratos de seu estabelecimento.
"A gente tem visto as PANCs no mundo todo. Quando as pessoas em determinado lugar começam a explorar o que tem nos arredores, o que tem no lugar onde elas vivem, acabam criando uma culinária única. Em Brasília, estamos tentando, ainda, criar uma culinária candanga atrelada ao que conhecemos das PANCs. Vamos gerar uma identidade para nossa cozinha. As PANCs, certamente, podem mudar a gastronomia", afirma.
No Aquavit, a experiência tem dado certo. O público, segundo Simon, está sempre aberto a degustar as inovações do chef. Quando ele serve um prato que os clientes não estão acostumados a ver, é uma oportunidade para que as pessoas possam vivenciar uma nova forma de saborear comida. E mais do que isso, fazer com que a culinária brasiliense tome um novo rumo, valorizando, principalmente, sua identidade e de uma das grandes maravilhas que existem ao redor: o Cerrado.
"Eu nunca tive problema de as pessoas não gostarem. Todo mundo se apaixona, é inevitável. Uso, aqui, boa parte das frutas selvagens e plantas do nosso bioma. Utilizo a cagaita, cajuzinho-do-cerrado, ora-pro-nobis e muitos outros no restaurante", descreve. Atualmente, uma das grandes paixões de Simon na cozinha são os cogumelos, mais conhecidos como cantarelos do Cerrado, ou chanterelles. Extremamente especiais e difíceis de serem encontrados, ele conta que, no início, tentou descobrir do que se tratava. Afinal, quase ninguém no Brasil usa os cantarelos na gastronomia.
"Tínhamos que ver se era venenoso: você morre? Fica cego? O que acontece? Nosso primeiro passo, no momento, foi entender a literatura por trás do cogumelo. Depois que soube que eram comestíveis, valeu a pena. Daqui a pouco vamos colocar o cadinho no Aquavit", revela.

Prato especial
Pirarucu marinado com tucupi, temperos cítricas e pimenta de macaco
Ingredientes
2kg de lombo de pirarucu
50g de sal
2 colher de sopa de pimenta-de-macaco
1 litro de tucupi
Flor de jambu, picadas
Raspa de 4 limões
Raspa de 1 toranja
Raspa de 1 laranja
Folhas de limoeiro (cortados grosseiramente)
Folhas de mexerica (cortados grosseiramente
Capim Santo 1 maço (cortados grosseiramente)
Folhas de verbania
Modo de fazer
Reduza o tucupi até que fique com consistência engrossada e deixe esfriar.
Passe o sal em todas as lados do peixe e esfregue bem.
Passe o tucupi reduzido nele e as flores de jambu, a pimenta-de-macaco e as raspas de cítricos.
Cubra, depois, as folhas de cítricos, capim santo e as folhas de verbania.
Coloque o peixe num saco de vácuo e ponha vácuo ou enrole com filme bem apertado.
Deixe por no mínimo três dias e até 10 dias na geladeira.
Na hora de usar, tire as folhas de cítricos , capim santo e verbania.

Passado e futuro
De acordo com Nuno Rodrigo Madeira, agrônomo e pesquisador da Embrapa Hortaliças, as PANcs têm um papel fundamental, até como um resgate de uma época em que não havia cadeias produtivas estruturadas, em que o ser humano produzia seu próprio alimento. Esse retorno ao passado não é apenas um movimento de volta às origens. É, sobretudo, a busca por uma vida mais saudável, já que essas plantas locais costumam ser mais adaptadas, resilientes e resistentes a pragas e doenças.
“Por esse melhoramento natural, por sofrer tantos impactos, de sobreviverem nesse ambiente, elas acabam produzindo compostos funcionais, elementos que causam essa resistência que são, na verdade, compostos funcionais extremamente nutritivos”, detalha o especialista. No Distrito Federal, as mais comuns encontradas são ora-pro-nobis, bertalhas, beldroega, capuchinha, jacatupé, dente-de-leão, serralha, taioba, hibisco, peixinho e azedinha.
Muitas delas, como afirma Nuno, podem ser encontradas nos quintais de casa. Mas, como algumas pessoas desconhecem tais plantas, talvez não saibam o que de fato elas são. "Brasília se destaca muito com as feiras agrícolas e os projetos de cultivo com produtores locais, como a ASPANC. Um aspecto muito interessante do DF é que tem muito do Brasil inteiro na cidade. Existem outras PANCs, geralmente de outros estados, que podem ser encontradas no quadradinho", ressalta. Na Embrapa, o maior foco do trabalho são as hortaliças PANCs, com mais de 100 espécies mantidas no espaço e o desejo para que esse universo adentre cada vez mais na vida dos brasilienses.