
Azul ou vermelho? Em Parintins, as cores não são só preferência estética, são questões de identidade. Neste fim de semana, a ilha no coração da Amazônia voltou a parar para assistir ao duelo que há mais de cinco décadas transforma arte em competição. São três noites de apresentações, 21 itens em disputa e uma torcida de 30 mil espectadores que cantou do início ao fim da festa, prevista para hoje. E neste 58º Festival Folclórico de Parintins, a pergunta que não cala, é: qual boi vai ganhar mais um título neste ano, Caprichoso ou Garantido?
Para a edição de 2025, os ingressos — com valores que variaram entre R$ 550 e R$ 4.800, em opções avulsas ou passaportes para as três noites — esgotaram num piscar de olhos. As vendas abriram em dezembro do ano passado e, em apenas 15 minutos, todos os setores estavam preenchidos. Os camarotes, disponibilizados on-line, acabaram ainda mais rápido: em apenas 60 segundos.
O coração de Parintins vive pela lendária rivalidade entre o Boi-Bumbá Caprichoso, o azul, e o Boi-Bumbá Garantido, o vermelho. E essa não é uma mera disputa, mas um motor cultural. A cidade é dividida simbolicamente em vermelho e azul, com a Catedral Nossa Senhora do Carmo servindo como linha imaginária para demarcar os territórios das torcidas.
A tradição dita que os torcedores não usam as cores do boi adversário, especialmente em seus currais. E a rivalidade é tão forte que até mesmo o "amo do boi", um dos itens julgados na competição, compõe versos provocativos para o oponente durante o festival.
Suzan Monteverde, membro da comissão de artes do Garantido, explica que nem mesmo fala o nome do "boi contrário". "Fora de Parintins, eu peço licença às pessoas com quem estou falando para chamar o boi contrário de Caprichoso, porque entendo que, quando falamos da nossa cultura para o mundo, um não faz festival sem o outro. Mas dentro da ilha, ele é simplesmente 'o boi contrário'", ressalta.
Até mesmo as grandes marcas que patrocinam o festival se rendem. A Coca-cola, parceira desde 1995, adapta sua identidade visual, abraçando o vermelho e o azul em homenagem aos bois. Outras empresas, como Bradesco, Santander e Azul Linhas Aéreas, também ajustam suas cores em respeito à festa.
As amigas Priscila Neves, 27, e Rayssa Muniz, 30, representam a rivalidade e, ao mesmo tempo, a convivência pacífica entre os bois. Rayssa, torcedora do Caprichoso, descreve a disputa entre os bois como saudável. "São raros os momentos em que você vai ver alguma pessoa agressiva. Pequenas provocações são raras e vistas mais como brincadeiras do que agressões", avalia. Priscila, do Garantido, concorda, ressaltando que as provocações são para "zoar" e que o segredo é levar na boa, sem revidar. Para ambas, a disputa acontece na arena.
Sessenta anos de tradição
O Festival de Parintins nasceu em junho de 1965, organizado pela Juventude Alegre Católica (JAC), como uma celebração, movida pela fé e pela vontade de animar a comunidade local. Sessenta anos depois, o evento se transformou em um espetáculo de escala nacional e internacional, reconhecido pelas toadas, coreografias grandiosas e alegorias que misturam tradição e inovação.
Foi a partir da década de 1990 que o festival ganhou os holofotes e passou a projetar Parintins para além das margens do rio Amazonas. Mais do que uma disputa folclórica, virou vitrine da cultura amazônica, conectando diferentes territórios de identidade — como indígenas, ribeirinhos e quilombolas.
"É uma 'brincadeira' que acolhe outras culturas e abraça regionalismos e elementos globais na música, na dança e nas alegorias, mas sempre com o olhar voltado para as culturas originárias", explica o sociólogo e doutor em processos socioculturais da Amazônia Wilson Nogueira. Para ele, o festival é uma invenção genuinamente parintinense, que traduz a confluência de identidades culturais da Amazônia.
- Leia também:Festival de Parintins: tradicional disputa de bois agita Norte do Brasil
- Leia também:Festival de Parintins recebe maior honraria da cultura brasileira
Um duelo que marca quem participa
A arena do Bumbódromo, batizada popularmente em 1988, tem capacidade para 30 mil espectadores e cerca de 3 mil "brincantes". Para quem vive o festival de dentro, o espaço parece ter dimensões que vão além das medidas oficiais. Rafaela Medeiros, 30 anos, ex-integrante da Marujada de Guerra do Caprichoso — o grupo de ritmistas que dita a cadência do boi — descreve a sensação de pisar ali como algo que triplica de tamanho.
"Tudo se torna muito maior, mais lindo, mais impactante. A emoção se renova a cada ano. Fui da Marujada por oito anos e posso afirmar: não existe a menor possibilidade de se acostumar com tamanha emoção. Sempre digo que todo mundo merece viver a experiência do Festival de Parintins ao menos uma vez", diz.
A paixão também se reflete na longa tradição de torcedores, como a família Seabra, que vive o festival como um legado. Neuda Seabra, por exemplo, acompanha o Garantido há mais de 30 anos e se orgulha de fazer parte da quarta geração de torcedores fervorosos. "Já fui ao festival com minhas irmãs, meus pais, meus filhos e netos. Somos a quarta geração acompanhando o Boi Garantido", conta.
A cada noite do festival, cada boi tem 2h30 de apresentação, totalizando cinco horas de festa. O julgamento é técnico, baseado em 21 itens divididos em três blocos: quesitos gerais e musicais, cenografia e coreografia, e componentes artísticos do evento. A decisão costuma ser decidida por décimos, conta Suzan Monteverde.
E diferentemente de um desfile de carnaval, o espetáculo do Festival de Parintins não possui um enredo musical fixo. "É uma performance única a cada noite, nada se repete, e em todas as posições da arena tem algo acontecendo", ressalta Suzan.
Sarah Seabra compartilha a ansiedade que toma conta na espera por seu boi no primeiro dia de espetáculo. "A gente espera surpresa, algo grandioso. Gritar, viver aquela emoção que só quem está lá, esperando o Boi Garantido, realmente entende."
Durante a apresentação de um boi, o outro permanece em silêncio absoluto — não pode cantar nem dançar. Mais um código de conduta não escrito, mas compreendido por todos os presentes. Até a torcida, conhecida como "galera", segue essa regra à risca, e o motivo vai além do respeito: o comportamento das arquibancadas também é avaliado e pode render perda de pontos na apuração final.
Origem da rivalidade
A rivalidade entre os bois Caprichoso e Garantido começou muito antes do Bumbódromo. O sociólogo Wilson Nogueira explica que, nas origens do festival, a disputa era centrada nos versos improvisados pelos amos do boi, os mestres de cerimônia, que defendiam o azul ou o vermelho com palavras afiadas: "Ela era caracterizada pela disputa de desafios, ou seja, versos que os amos cantavam quando se encontravam. Cada um defendia o seu boi a partir da palavra", conta o pesquisador.
E, com o tempo, essa competição foi se expandindo para os territórios da cidade. Cada boi representa uma comunidade distinta: o Garantido nasceu na Baixa da Xanda, uma área marcada por forte presença de pescadores, indígenas e trabalhadores ribeirinhos, conhecidos como perrachados, por andarem descalços, com os pés rachados pela terra, barro e vegetação da região.
Já o Caprichoso surgiu no outro extremo da cidade, no bairro da Francesa, também chamado de Esconde, historicamente habitado por famílias negras.
Do improviso à arena
A profissionalização da disputa aconteceu com a criação do festival oficial em 1965, ainda na quadra da Juventude Alegre Católica (JAC). A primeira edição foi apenas uma apresentação. Só a partir de 1966 começou a haver julgamento e disputa oficial.
Com a transformação do evento em competição, a rivalidade ficou mais estruturada e controlada, migrando da rua para a arena, com regras, pontuações e jurados. Foi nesse contexto que surgiu o Bumbódromo, em 1988, espaço onde a disputa passou a ser democrática, mas também "controlada", como aponta o sociólogo.
"O Bumbódromo virou um exemplo de democracia, né? Mas que é uma democracia controlada pela disputa do festival. Porque a 'galera', as torcidas, é um dos itens do festival. Ou seja, elas estão disputando tanto quanto. Elas são avaliadas tanto pelo comportamento, se ficam comportadas sem interferir na apresentação do outro, quanto por como se manifestam pelos seus valores", avalia.
Itens do festival
O sociólogo afirma que a competitividade do festival se formalizou com a criação dos itens de avaliação, que hoje compõem a alma do espetáculo. São 21 itens distribuídos em três blocos: musicais e gerais, alegorias e coreografias, e os componentes artísticos, como amo do boi, cunhã-poranga, pajé e galera. São eles:
01 - Apresentador
02 - Levantador de toadas
03 - Batucada ou marujada
04 - Ritual indígena
05 - Porta-estandarte
06 - Amo do boi
07 - Sinhazinha da fazenda
08 - Rainha do folclore
09 - Cunhã-poranga
10 – Boi-bumbá (Evolução)
11 – Toada (Letra e música)
12 – Pajé
13 – Povos indígenas
14 – Tuxauas
15 – Figura típica regional
16 - Alegorias
17 - Lenda amazônica
18 - Vaqueirada
19 - Galeria
20 - Coreografia
21 - Organização do conjunto folclórico
Parintins respira boi
Ir a Parintins durante o festival é mergulhar em uma experiência imersiva, na qual a cultura do boi pulsa em cada esquina. "Parintins é uma cidade de festa", resume Suzan Monteverde, membro da comissão de artes do Garantido, ao descrever como a tradição atravessa o cotidiano local. Nas escolas, por exemplo, as crianças aprendem a amar e a se identificar com o boi desde cedo — as toadas viram tema de aula, de redação e até de análise musical.
Mas o festival vai muito além da emoção da arena. Seu impacto econômico e social transforma a cidade meses antes das apresentações e se estende até muito depois de as luzes do Bumbódromo se apagarem. "Estima-se que 50 mil pessoas se deslocam das cidades brasileiras e do exterior a cada ano", afirma o sociólogo Wilson Nogueira. Hotéis, comércios, restaurantes, serviços de transporte e, claro, a cadeia de produção artística vivem em função do festival.
Em 2025, o evento movimentou pelo menos R$ 26 milhões em patrocínios oficiais. Cerca de 2 mil profissionais, entre alegoristas, aderecistas, músicos e coreógrafos, deram vida ao espetáculo.
Wilson Nogueira também destaca que a recente visibilidade nacional, ampliada pela participação da cunhã-poranga do Garantido, Isabelle Nogueira, no BBB 2024, ajuda a fortalecer as reivindicações por mais investimentos em infraestrutura. Mas ele lembra que os desafios sociais locais continuam.
"Por trás do espetáculo, existe uma cidade marcada por altos índices de pobreza, com bairros e ocupações sem acesso a saneamento básico. O festival, claro, não é uma varinha de condão. Mas, quando bem administrado e valorizado cultural e politicamente, pode carrear mais benefícios para os autores da grande festa", avalia o sociólogo.
O Garantido
Na edição de 2025, o Festival de Parintins levou para a arena uma celebração potente de identidade, memória e resistência. Como de costume, os dois bois apostaram em narrativas que atravessam gerações e territórios, cada um com seu jeito de contar a própria história.
O Boi-Bumbá Garantido entrou em cena com o tema O boi do povo, boi do povão, uma exaltação às raízes mais profundas de sua trajetória. "É uma grande celebração das nossas origens parintinenses, amazonenses e brasileiras", definiu Suzan. A história do Garantido traz para a arena a essência de um boi que nasceu em uma comunidade quilombola — a Baixa da Xanda —, criada por Dona Xanda, no século 19.
Sua origem está diretamente ligada a uma promessa feita por Lindolfo Monteverde, fundador do boi, a São João: caso fosse curado de uma doença, brincaria com o boi todos os anos. O símbolo que hoje é a marca registrada — o coração vermelho na testa — foi desenhado por Antônio, filho de Lindolfo, e colorido de encarnado (vermelho) pelas mãos do artista Jair Mendes.
Com 32 títulos em sua trajetória, o Garantido mais uma vez reforça o orgulho de representar uma história "singular de povos e comunidades que viveram à margem da sociedade", como definiu Suzan.
O Caprichoso
Já o Caprichoso levou para a arena o tema É tempo de retomada, um grito de exaustão da Mãe Terra e a necessidade de retomar saberes ancestrais, a sabedoria banto, nagô, hauçás e yorubá. O tema também reverenciou as lutas históricas de povos indígenas, negros, quilombolas, mulheres, crianças e da comunidade LGBTQIAPN .
A história do boi azul, fundada por Roque Cid, um homem negro, carrega desde suas origens o selo da resistência. Nascido entre famílias humildes do bairro da Francesa — um antigo gueto negro de Parintins — o Caprichoso sempre foi símbolo de inclusão. Um dos nomes que marcaram essa trajetória foi o de Ednelza Cid, uma senhora que abriu sua casa para acolher artistas LGBTQIA , que muitas vezes os pais não aceitavam, e que iam para casa dela produzir fantasias.
Oficializado em 1913, o Boi Caprichoso tem origem ligada a uma promessa da família Cid a São João Batista, o santo junino. A história conta que, caso tivessem uma vida próspera em Parintins, eles colocariam um boi para brincar durante as festividades de junho. Mais de um século depois, a promessa virou tradição, e o Caprichoso chegou ao seu 23º título, em uma sequência de três vitórias consecutivas desde 2022.
O boi azul manteve o ritmo de produção acelerado, tradicionalmente iniciado após o término do carnaval do Rio de Janeiro e de São Paulo, já que boa parte dos artistas que atuam em Parintins também trabalha nos grandes desfiles das escolas de samba.
Apuração do resultado
Encerradas as três noites de festa, o festival ganha um novo capítulo: a apuração das notas. Na manhã desta segunda-feira (30/6), a tensão se transfere da arena para rádios, telões e televisões espalhados pela cidade. Bloco por bloco, item por item, os jurados anunciam as notas que definem o grande campeão.
Para muitas famílias, a apuração é um ritual tão aguardado quanto o próprio festival. Na casa de Rafaela Medeiros, por exemplo, o momento atravessa gerações. "Antigamente era pelo rádio. Vamos todos até a casa dos meus avós, ouvimos atentamente e em um caderno copiamos todas as notas ditas pelo jurado. Até a última nota, do último bloco, da última noite de apresentação, sempre ansiosos pelo título de campeão", conta a torcedora do boi negro.
O fim da leitura da última nota traz o desfecho que Parintins espera por um ano inteiro: a consagração de um boi e o início de mais uma página na história dessa rivalidade que move a ilha.
Fica a dica
Se você quiser viver essa experiência nos próximos anos, o conselho de quem entende é claro: comece a se planejar cedo. Os ingressos costumam esgotar em questão de minutos, a partir de dezembro ou janeiro.
Acompanhe as páginas oficiais nas redes sociais e não perca nenhuma atualização: https://www.instagram.com/boigarantido/ e https://www.instagram.com/boicaprichoso/.
Saiba Mais
Revista do Correio
Revista do Correio
Revista do Correio
Revista do Correio